Semear em pó: o novo Centro de Arte, Artesanato e Design de Cabo Verde

Há duas maneiras de se chegar a Cabo Verde, pelo mar ou pelo céu. Dos dois jeitos, somos surpreendidos pela paisagem de imensas massas rochosas brotando do umbigo do Atlântico antes de pôr os pés em terra. Despovoado até meados do século XV, o arquipélago vulcânico é formado por dez ilhas, nove delas atualmente habitadas, cada uma com características singulares — umas mais turísticas, como o Sal, outras mais rurais, como Santo Antão — e uma versão própria do kriolu kabuverdianu, língua que não é a oficial (o português ocupa esse lugar), mas que é de longe a mais falada.

São Vicente é a segunda ilha mais populosa do país e faz parte do grupo insular norte, chamado Sotavento, juntamente com Santo Antão, Santa Luzia, São Nicolau, Sal e Boa Vista. Sua maior cidade, Mindelo, tem vocação portuária e é historicamente ponto de partida e chegada de pessoas e mercadorias. Marcada pelo trânsito, a cidade é lugar de passagem e de trocas culturais intensas. É, também, lar do primeiro museu construído no país, o Centro Nacional de Arte, Artesanato e Design — CNAD.

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Inaugurado em fins de julho deste ano, o novo CNAD é resultado de um longo processo que contou com o apoio do Ministério da Cultura e das Indústrias Criativas de Cabo Verde e o Governo Federal. Além do novo museu construído do zero, desenhado pela firma local Ramos Castellano Arquitectos, o projeto contempla ainda a reabilitação da Casa Senador Vera-Cruz, um dos edifícios mais antigos de Mindelo, iniciada em 2019.

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Centro Nacional de Arte, Artesanato e Design — CNAD em Mindelo, Cabo Verde. Image © Estúdio Peso/ JG

O projeto foi inteiramente financiado pelo Governo de Cabo Verde e custou 120 milhões de escudos cabo-verdianos (cerca de R$ 5,7 milhões). Com área de acervo, salas expositivas, biblioteca e espaço para residências artísticas, o Centro Nacional de Arte, Artesanato e Design busca se tornar referência como plataforma de desenvolvimento e de promoção cultural sustentável. “Semeamos utopia para colher um novíssimo verso”, diz Irlando Ferreira, Diretor-Geral do CNAD, após anos de trabalho administrando demandas e necessidades de órgãos do governo, artistas e artesãos.

Se a instituição estende hoje seus braços sobre as artes e o design, ela mantém seus pés bem fincados no artesanato. É dele que ela surge, em 1976, como Cooperativa Resistência, núcleo formado por artistas e professores liderados por Manuel Figueira, Luísa Queirós e Bela Duarte. O grupo se dedicava à experimentação, investigação e promoção do artesanato cabo-verdiano, em especial a panaria, buscando nos saberes tradicionais e populares — transmitidos por mestres artesãos, como Nhô Griga e Nhô Damásio — bases para fomentar o desenvolvimento de novos artesãos e artistas. 

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Centro Nacional de Arte, Artesanato e Design — CNAD em Mindelo, Cabo Verde. Image © Estúdio Peso/ JG

Está na gênese do CNAD, portanto, a proximidade com a população. “A ideia é que esse edifício seja do povo e esteja próximo dele”, comenta a arquiteta Eloisa Ramos. “Ou seja, queríamos derrubar todas as barreiras possíveis, permitindo que as pessoas circulassem aqui à vontade, sem distanciamento. O resultado é este edifício que, apesar de imponente, não cria distância”, conclui. Eloisa, natural da Ilha de Santo Antão, é uma das arquitetas responsáveis pela reabilitação da antiga Casa Senador Vera-Cruz e pelo projeto do novo edifício do CNAD, juntamente com o italiano Moreno Castellano. Juntos, formam o ateliê Ramos Castellano Arquitectos, sediado em Mindelo, que tem em seu portfólio o Hotel Terra Lodge e a Casa Celestina, ambos nesta mesma cidade, e o Aquiles Eco Hotel, em São Pedro.

Para o projeto do CNAD, buscaram inspiração num material comum no cotidiano das ilhas de Cabo Verde: os bidons, ou tambores cilíndricos de metal ou plástico. Praticamente todas as mercadorias que chegam às ilhas, enviadas por parentes de moradores que foram procurar melhores condições econômicas em outros países, chegam dentro desses tambores. Com 560 mil habitantes residindo no arquipélago e quase um milhão vivendo fora dele, é de imaginar que o afluxo de bidons seja bastante volumoso.

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Centro Nacional de Arte, Artesanato e Design — CNAD em Mindelo, Cabo Verde. Image © Estúdio Peso/ JG

Após viajar o mar trazendo mercadorias de outros continentes — sobretudo Europa e América do Norte, mas também América do Sul e Ásia —, estes contenedores metálicos são reciclados e incorporados ao cotidiano dos moradores nas mais variadas formas. Não é raro encontrarmos casas de lata feitas com a chapa metálica dos bidons, ou panelas e outros utensílios produzidos a partir de partes deles. Os usos são inúmeros, e encontramos vestígios dos tambores por toda a parte, sobretudo nas comunidades afastadas dos centros urbanos.

“Os bidons acabam por revelar uma dimensão social, cultural e econômica do país", comenta Irlando Ferreira, “e aqui eles foram ressignificados para constituir a segunda pele do edifício”. A tampa e o fundo circular dos tambores foram usados para compor um mosaico que envolve a nova edificação. Afastada cerca de um metro da fachada de vidro que delimita os espaços internos, e acessada por um estreito corredor de serviço, essa pele funciona como um anteparo contra o forte sol saheliano. Um elaborado mecanismo manual permite rotacionar os bidons, controlando o nível de claridade e insolação nos interiores. “Não há ar-condicionado, os sistemas de conforto ambiental são todos passivos”, revela Eloisa. 

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Centro Nacional de Arte, Artesanato e Design — CNAD em Mindelo, Cabo Verde. Image © Estúdio Peso/ JG

O que mais chama a atenção, contudo, são as cores do edifício. Cada uma das centenas de tampas de bidon recebe uma cor, e nessa paleta está codificada uma partitura musical composta pelo multi-instrumentista e maestro cabo-verdiano Vasco Martins. Uma cor para cada nota (os intervalos também recebem tinta) e o ritmo da fachada está dado pela música, literalmente. Diante dessa partitura, a Casa Senador Vera-Cruz, agora já sem muros, se abre à cidade. Entre os edifícios, uma praça retangular oferece espaço adicional à programação do CNAD e conecta as ruas laterais, servindo de atalho em meio ao tecido urbano de Mindelo.

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Centro Nacional de Arte, Artesanato e Design — CNAD em Mindelo, Cabo Verde. Image © Estúdio Peso/ JG

Aberto ao povo, à cidade e ao mundo, com olhos no passado e no presente, o novo CNAD surge em Mindelo como um sonho de futuro. “Mas não um futuro qualquer, um futuro que nos traga o passado, que seja diáspora e ilha”, comenta Abraão Anibal Barbosa Vicente, Ministro da Cultura e das Indústrias Criativas. Com efeito, o Centro Nacional de Arte, Artesanato e Design parece querer honrar o passado da instituição como promotora dos saberes populares — a mostra Criação Cabo-Verdiana: Percursos, com curadoria conjunta de Irlando Ferreira e Adélia Borges, é testemunha disso. Evita, contudo, mergulhar na saudade, e mantém firme o foco no desenvolvimento de jovens artesãos e artistas.

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Centro Nacional de Arte, Artesanato e Design — CNAD em Mindelo, Cabo Verde. Image © Estúdio Peso/ JG

A realização de um projeto desta importância num país de pouco mais de meio milhão de habitantes é um feito admirável; a manutenção da programação, por sua vez, seguirá sendo um desafio. “É uma utopia”, completa Irlando. 

Mas os cabo-verdianos não são estranhos a isso: “Eu cresci ouvindo meu pai, que era um homem da terra, falar sobre a espera da chuva. Tu pões a semente na terra e esperas a água, e então tens que ter fé, porque tu acreditas que a chuva vai cair. É preciso acreditar para sobreviver”, me disse Eloisa. Há quatro anos não chovia na ilha de São Vicente e a paisagem árida era testemunha disso. “Temos uma expressão aqui que diz semear em pó", completa Irlando, "porque a terra é tão seca que já virou poeira e, mesmo assim, tu colocas a semente lá dentro esperando brotar". Eu já não sabia mais se ele falava das plantações no interior rural do país ou do árduo trabalho envolvendo a instituição que dirige, mas senti que, após feita a semeadura, estávamos todos — eu, inclusive — a acreditar que a colheita era, enfim, possível.

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Sobre este autor
Cita: Romullo Baratto. "Semear em pó: o novo Centro de Arte, Artesanato e Design de Cabo Verde" 04 Set 2022. ArchDaily Brasil. Acessado . <https://www.archdaily.com.br/br/986928/semear-em-po-o-novo-centro-de-arte-artesanato-e-design-de-cabo-verde> ISSN 0719-8906

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