Representações de Carolina Maria de Jesus e Clarice Lispector: corpo, cidade e território

Carolina Maria de Jesus e Clarice Lispector estão entre as mais relevantes escritoras brasileiras do século XX. Este ensaio é uma análise sobre as representações que as envolvem e, principalmente, um gesto que complexifica a comparação entre as duas, traçando uma reflexão sobre corpo e cidade, de um ponto de vista interseccional.

Em matéria para a revista Manchete, Paulo Mendes Campos escreve sobre “A autora mais cara do ano”, Clarice Lispector, após ter publicado seu livro “A maçã no escuro” em 1961, endossando sua posição de relevo e prestígio no cenário da literatura brasileira. Mendes Campos termina a matéria narrando um “esplêndido diálogo” entre Clarice e Carolina Maria de Jesus, escritora favelada de sucesso espantoso por seu diário publicado, “Quarto de despejo”.

— Tive olhando o seu livro: como você escreve elegante!
—E como você escreve verdadeiro, Carolina! (MENDES CAMPOS, 1961, p.48)

Não se sabe ao certo qual a veracidade desse diálogo. Há, porém, algo a se atentar, sendo as falas das autoras ficcionalizadas ou não: a representação que se traça sobre Carolina Maria de Jesus a retrata como uma porta-voz de uma coletividade localizada geográfica e socialmente, alguém que apresenta um testemunho, uma denúncia verídica. Em contraponto, Clarice Lispector é classificada como a “ilustrada e culta” escritora, que alcança reconhecimento e consagração por meio de uma literatura ficcional, sendo capaz de empregar a linguagem de forma identificável com as experiências do leitor, ou, muitas vezes, da leitora. Quer dizer, Clarice é associada a algo do íntimo, da essência, do particular, enquanto a representação de Carolina trata fundamentalmente de uma certa outridade.

Nascida em Sacramento, Minas Gerais, em 1914, Carolina Maria de Jesus era neta de um homem negro escravizado, conhecido como Sócrates Africano. Mudou-se de cidade vinte e três vezes acompanhando sua mãe, que trabalhava em fazendas vizinhas (PEREIRA, 2015, p.7), e estudou apenas até o segundo ano do primário. Em 1937, chegou à cidade de São Paulo, que se colocava como promessa de modernização e industrialização do país. Morou em um cortiço e debaixo de um viaduto até chegar na antiga favela do Canindé, às margens do Rio Tietê, onde escreveu seu livro, “Quarto de despejo”, o diário de suas vivências como favelada.

Quanto à Clarice Lispector, foi uma famosa escritora nascida na Ucrânia, em 1920, muito embora sua vinda para o Brasil tenha acontecido aos seus dois anos de idade. Sua família desembarcou no estado de Alagoas e se mudaram também para Pernambuco antes de chegar à cidade do Rio de Janeiro, onde Clarice Lispector estudou, trabalhou, casou-se e viveu grande parte da vida. Essa escritora, mulher, branca e migrante viveu a década de 1950 acompanhando o marido na carreira de diplomata, mudando-se diversas vezes para países do exterior.

Em 2011, Benjamin Moser relata sobre o encontro entre as duas autoras em sua biografia sobre Clarice Lispector, intitulada “Clarice,”. Moser comenta uma foto em que as duas escritoras estão lado a lado:

Numa foto, ela aparece em pé, ao lado de Carolina Maria de Jesus, negra que escreveu um angustiante livro de memórias da pobreza brasileira, Quarto de Despejo, uma das revelações literárias de 1960. Ao lado da proverbialmente linda Clarice, com a roupa sob medida e os grandes óculos escuros que a faziam parecer uma estrela de cinema, Carolina parece tensa e fora do lugar, como se alguém tivesse arrastado a empregada doméstica de Clarice para dentro do quadro. (MOSER, 2011, p. 22, 2011)    

A forma de se referir à Carolina Maria de Jesus novamente está posta como “outra”, em posição secundária em relação a um referencial legitimado pela sociedade. Moser reproduz um mecanismo da branquitude de elogiar a escritora branca, “proverbialmente linda”, que se assemelha a “uma estrela de cinema”, em detrimento da “negra que escreveu um livro”, comparada à empregada doméstica de Clarice.

É certo que Clarice Lispector foi migrante e enfrentou adversidades diversas em sua trajetória (MOSER, 2011). Mas é também verdade que seu corpo é lido de forma prioritária e não racializada pela sociedade. À vista disso, a origem de Clarice Lispector e as dificuldades que atravessou não significaram impedimento para seu reconhecimento enquanto escritora, dado que seu corpo branco resguarda uma condição de privilégios, muito embora o fato de ser mulher tenha tornado sua jornada certamente penosa.

Grada Kilomba (2019) entende que o corpo negro só se faz existir através de uma imagem alienada de si. Como se Carolina, quando se tornou conhecida, sofresse um processo de deturpação de sua individualidade, em prol de uma representação coletiva do sujeito negro. Carolina Maria de Jesus experiencia ser a “outra” quando está em face de um referencial branco, sendo, aqui, Clarice Lispector.

O momento em que o sujeito negro é inspecionado como um objeto de fetiche, um objeto de obsessão e desejo é descrito por Frantz Fanon como um processo de despersonalização (FANON apud KILOMBA, 1967, p.63), pois o sujeito negro é forçado a desenvolver um relacionamento com o eu e a performar o eu que tem sido roteirizado pelo colonizador, produzindo em si mesmo a condição, internamente dividida, de despersonalização. (KILOMBA, 2019, p.119)

Nos últimos anos, essas duas autoras específicas têm sido aproximadas por muitos pensadores e instituições. O debate sobre a interseccionalidade tem ganhado força, trazendo à tona os marcadores sociais de gênero, raça, sexualidade e classe social como balizadores das experiências cotidianas. Entende-se que esses marcadores localizam os corpos no espaço, estabelecendo fronteiras entre as noções de público e privado numa negociação corpórea constante.

Em 2020, Clarice Lispector completou seu centenário de vida e, com isso, sua obra ganhou novo destaque, seus livros foram republicados e seu nome foi rememorado por muitos. Carolina Maria de Jesus tem sido invocada também nesse momento justamente para estabelecer um contraponto, ou então, valer-se da visibilidade e reconhecimento de Clarice Lispector.

O Instituto Moreira Salles recebeu, em 2021, duas exposições sobre ambas as escritoras quase simultaneamente. O visitante poderia, então, começar pelas primeiras galerias, na exposição intitulada “Constelação Clarice”, num ambiente labiríntico de cor sóbria e rosada. Segundo os curadores Eucanaã Ferraz e Veronica Stigger, a intenção foi navegar pelos temas recorrentes na obra de Clarice e buscar relações com outras artistas mulheres, buscando evitar uma expografia burocrática e biográfica sobre a escritora tão famigerada.

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Sala da exposição Constelação Clarice, no IMS Paulista. Planta esquemática para fins ilustrativos, produzida pela autora

Depois, é possível seguir subindo o edifício e se deparar com a exposição “Carolina Maria de Jesus: um Brasil para os brasileiros”, dos curadores Rachel Barreto e Hélio Menezes. Frases duras e cortantes de uma das instalações são entoadas repetidas vezes e são ouvidas em toda a galeria, tornando praticamente impossível ignorar a aspereza das palavras sobre fome, pobreza e racismo. A galeria, trajada de vermelho vivo, apresenta a escritora buscando desmistificar representações deturpadas e generalizantes.

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Sala da exposição Carolina Maria de Jesus: um Brasil para os brasileiros. Planta esquemática para fins ilustrativos, produzida pela autora

Apesar de cada uma das exposições individualmente carregarem uma sensibilidade e um cuidado notáveis de pesquisa, curadoria e exibição do material levantado, resta a dúvida se houve uma ponderação tão esmerada quanto à articulação entre as duas exposições e a sensação que ambas, combinadas, geram no visitante. Ao que parece, ainda há resquícios dessa ideia de que Carolina representa uma coletividade desconhecida enquanto Clarice habita nosso íntimo, quase como se conseguisse nos descrever particularmente.

Interessa aqui identificar em que momentos as duas escritoras foram postas em comparação, como isso ocorre e por quê. Trata-se de uma investigação acerca de suas representações enquanto mulheres escritoras contemporâneas, defronte aos mecanismos de recepção da sociedade. E, mais que isso, interessa também complexificar esses encontros entre as duas, nos planos físico e epistemológico, para traçar cartografias desses corpos tão diversos na cidade.

Como essas representações reverberam na ocupação dos corpos no tecido urbano? Esse embate discursivo se manifesta também territorialmente? É possível afirmar que narrativas são capazes de conformar espaços? Qual o tamanho dessa influência?

As personagens presentes no livro “Laços de família”, de Clarice Lispector, caminham por regiões abastadas do Rio de Janeiro, principalmente na Zona Sul, conhecida por sua efervescente vida social de classes médias e altas. A maioria dos contos relata as andanças de personagens mulheres que alternam entre o doméstico e o urbano com bastante desconforto. As descrições sobre os espaços percorridos por elas na cidade são um tanto borradas, genéricas e pouco precisas, como um reflexo de uma falta de domínio do tecido urbano e mesmo um incômodo de desbravar o espaço público. O momento em que Ana, a protagonista do conto “Amor”, entra num bonde e espanta-se com um cego mascando chiclete, num momento epifânico, demonstra esse incômodo nauseante que se repete de outras maneiras nos demais contos:

O mundo se tornara de novo um mal-estar. Vários anos ruíam, as gemas amarelas escorriam. Expulsa de seus próprios dias, parecia-lhe que as pessoas na rua eram periclitantes, que se mantinham por um mínimo equilíbrio à tona da escuridão - e por um momento a falta de sentido deixava-as tão livres que elas não sabiam para onde ir. Perceber uma ausência de lei foi tão súbito que Ana se agarrou no banco da frente, como se pudesse cair do bonde, como se as coisas pudessem ser revertidas com a mesma calma com que não o eram. (LISPECTOR, 1998, p. 22-23)

Essa relação hesitante com a cidade provém de uma prática corporal feminina que teme a dimensão pública, justamente porque são corpos socialmente desautorizados a ocuparem esse espaço. A falta de mulheres nos espaços públicos pode ser associada a uma definição social burguesa de que a feminilidade está visceralmente associada a seu confinamento no espaço doméstico, como um traço inato, parte de sua natureza (CARVALHO, 2008, p. 291-293). Esse não-reconhecimento de si própria no espaço urbano gerou, nas narrativas claricianas de “Laços de Família”, descrições mais imprecisas do deslocamento das personagens. Não há uma atenção especial em localizar geograficamente onde essas mulheres estão exatamente na cidade, mesmo porque as passagens pelo espaço público são feitas de maneira controlada, muitas vezes utilizando transportes como ônibus, bondes ou automóveis. A figura abaixo foi gerada a partir de um mapeamento das regiões do Rio de Janeiro citadas no livro.

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Mapa do município do Rio de Janeiro e as regiões ocupadas pelas personagens descritas em “Laços de Família”, de 1960. Figura produzida pela autora

Por outro lado, Carolina Maria de Jesus narra em primeira pessoa, num devastador relato sobre sua vida na favela. Sendo suas vivências marcadas por relações opressivas dessa outridade, a escrita em primeira pessoa emerge como forma de assumir o controle da própria voz, em busca de tornar-se sujeito. Durante a década de 1950, época em que estão situadas as descrições da escritora no diário, Carolina Maria de Jesus trabalhou como catadora.

Deixei o leito as 5 horas. Os pardais já estão iniciando a sua sinfonia matinal. As aves deve ser mais feliz que nós. Talvez entre elas reina amizade e igualdade. O mundo das aves deve ser melhor do que dos favelados, que deitam e não dormem porque deitam-se sem comer. (JESUS, 2015, p. 35)

Assim, saía para as ruas antecipando o nascer do sol e punha-se a caminhar pela cidade, dadas as necessidades de seu ofício. Catava papel o dia inteiro, descalça, com os pés no asfalto e sonhava em comprar um par de sapatos para presentear seus filhos. Seu movimento na cidade era evidentemente mais restrito, já que pegar uma condução de ônibus era situação rara em seu dia a dia. As distâncias percorridas variavam e eram balizadas de acordo com o esgotamento físico de suas pernas e com os comentários ofensivos de passantes na rua.

Em “Quarto de despejo", a autora diz com precisão os lugares pelos quais passou, fazendo referência muitas vezes a endereços completos, citando até mesmo os números. Trata-se, notadamente, de uma descrição de alguém que experimenta a cidade empiricamente com os pés no chão. Alguém que passa repetidamente pelas ruas com outro ritmo, outra prática.

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Mapa do município de São Paulo e as regiões ocupadas por Carolina Maria de Jesus em “Quarto de despejo”, de 1960. Figura produzida pela autora

Em “A História do Caminhar” (2016), Rebecca Solnit coloca que as palavras e expressões usadas para se referir a essas mulheres sexualizam o seu caminhar e lhe atribuem um caráter pejorativo: ambulatriz, mulher da rua, mulher do mundo. E adiciona: “Pertencer à casta respeitável tem como preço relegar-se à vida privada; pertencer à casta que goza de liberdade espacial (...) tem como preço o respeito social” (SOLNIT, 2016, p. 390-391). Ou seja, no caminhar existe uma diferença de aceitação social a depender de seu corpo. Enquanto as mulheres validadas socialmente devem conter-se em seus lares, mulheres marginalizadas fruem da possibilidade de caminhar, porém às custas de uma experiência opressiva e ingrata nesse espaço.

À luz desse raciocínio, pode-se apreender que os tensionamentos verbais e discursivos que são entoados para representar essas duas mulheres coincidem com certos conceitos espaciais e negociações territoriais. Enquanto o público remete ao coletivo e ao “outro”, o doméstico remete ao íntimo e ao “eu”. Os encontros entre esses dois conjuntos extremos parecem suceder em incômodo, estranheza e dissonância. Não bastasse Carolina e Clarice se encontrarem em vida, também vieram a falecer no mesmo ano, 1977. De forma póstuma, nos resta, então, estabelecer avizinhamentos possíveis e responsáveis - no espaço e na palavra - entre essas mulheres específicas e o que elas representam.

Este ensaio é produto da Iniciação Científica com bolsa FAPESP desenvolvida na Associação Escola da Cidade intitulada “Mulheres em movimento: itinerâncias e corporalidades de Carolina Maria de Jesus e Clarice Lispector”, com orientação da professora Dra. Sabrina Studart Fontenele Costa.

Referências bibliográficas

  • CARVALHO, Vânia. Gênero e artefato: o sistema doméstico na perspectiva da cultura material – São Paulo 1870-1920. São Paulo: Editora Edusp/Fapesp, 2008.
  • JESUS, Carolina Maria de. Quarto de despejo: diário de uma favelada. (1960). São Paulo, Ed. Ática 2015.
  • KILOMBA, Grada. Memórias da plantação: Episódios de racismo cotidiano. Rio de Janeiro, Cobogó, 2019.
  • LISPECTOR, Clarice. Laços de família. (1960). Rio de Janeiro, Ed. J. Olympio, 1998.
  • MENDES CAMPOS, Paulo. 1961. “A autora mais cara do ano”. Manchete, Rio de Janeiro, n. 485, p. 48, 5 de agosto.
  • MOSER, Benjamin. Clarice,. São Paulo, Ed. Cosacnaify, 2011
  • PEREIRA, Gabriela Leandro. Corpo, discurso e território: a cidade em disputa nas obras da narrativa de Carolina Maria de Jesus. Salvador, Faculdade de Arquitetura da Universidade Federal da Bahia, 2015. (Tese de Doutorado)
  • SOLNIT, Rebecca. A história do caminhar. (2001). Tradução Maria do Carmo Zanini, São Paulo, Ed. Martins Fontes, 2016.

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Sobre este autor
Cita: Luiza Fraccaroli B. da Costa. "Representações de Carolina Maria de Jesus e Clarice Lispector: corpo, cidade e território" 17 Set 2022. ArchDaily Brasil. Acessado . <https://www.archdaily.com.br/br/987981/representacoes-de-carolina-maria-de-jesus-e-clarice-lispector-corpo-cidade-e-territorio> ISSN 0719-8906

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