Como é a experiência de caminhar ao longo dos prédios e casas da rua onde você mora? Ou da rua onde você trabalha, estuda, faz compras, leva as crianças para a escola? Que relação esses prédios/casas têm com a calçada? Como eles tratam os pedestres? Dá vontade de passar na frente deles? Eles acolhem ou repelem?
São edifícios gentis… ou hostis?
Este artigo apresenta o conceito do edifício gentil, ou seja, aquele que trata bem os pedestres, que é generoso com a cidade e melhora a experiência de quem caminha em frente a ele, ou que a ele se dirige. E, claro, do edifício que não faz nada disso: o edifício hostil.
Edifícios, em diferentes áreas das nossas cidades, ao invés de voltarem seus “olhos” para os espaços públicos, como já dizia Jane Jacobs em Morte e vida de grandes cidades — ou seja, suas frentes, com portas e janelas —, voltam seus lados, suas fachadas cegas ou fundos.
Fecham-se em muros altos e grades; elevam seus térreos para aflorar garagens, criando barreiras no nível do solo; interiorizam atividades que poderiam abrir-se diretamente para as calçadas; dão prioridade ao carro. Com tudo isso, prejudicam a experiência do pedestre e a vitalidade urbana onde se inserem, tornando os lugares desinteressantes, inseguros, ermos. Inúmeros são os exemplos, e ainda é escasso esse debate.
Vários estudos dão conta de que há certas características de edifícios que tendem a favorecer a experiência das pessoas que circulam pela cidade: ausência de recuos frontais ou laterais, portas e janelas abrindo para o espaço público, fachadas ativas ou permeabilidade visual no nível do térreo… No entanto, infelizmente, a materialização dessas características vem sendo dificultada por um mau desenho urbano, pela legislação ou por exigências do contratante do projeto.
No entanto, proponho que é possível desenvolver uma interface gentil para o espaço público, mesmo com as limitações impostas pelas condições dos lotes, pelos parâmetros urbanísticos, pelo cliente, pelo programa de necessidades… Tudo é uma questão de escolha. O edifício gentil representaria uma arquitetura que lança mão de um repertório que torna sua interface agradável a quem passa.
Esse termo faz pensar em outros semelhantes. O livro Gentle architecture (Malcolm Wells, 1982) e o projeto de pesquisa Kind architecture (Saeidi e Anderson, 2020) relacionam arquitetura e meio ambiente. Em que pesem as fundamentais preocupações ecológicas e a necessidade de se incorporar, na prática arquitetônica, técnicas de baixo impacto ambiental, o edifício gentil volta-se para as pessoas, em sua experiência local e cotidiana.
O termo gentileza urbana vem comparecendo na divulgação de empreendimentos imobiliários para designar ações voluntárias de melhoria nos espaços públicos a eles adjacentes. É como um “presente” que a nova construção estaria dando para a cidade, normalmente englobando ampliação e melhoria de calçadas, criação de locais de estar e projeto paisagístico que, não raro, contribuem para sua própria valorização.
No entanto, essas melhorias não substituem os atributos necessários a um edifício gentil. Embora muitas sejam positivas e possam ser estimuladas, costumam mascarar a hostilidade das novas construções.
Como a definição de um conceito traz sua antítese, no outro extremo temos o edifício hostil. Assim, vem à mente a expressão arquitetura hostil, que designa o produto de uma prática tão antiga quanto deplorável: a de colocar, em espaços públicos ou no entorno de edifícios, elementos de mobiliário urbano ou obstáculos para afastar as pessoas, restringir seu comportamento ou tornar sua experiência menos confortável. No edifício gentil, como veremos, não cabe essa prática.
As características do edifício gentil são oito:
Está na altura do solo
O edifício gentil se assenta no terreno de tal forma que todas as suas fachadas voltadas para logradouros públicos estejam niveladas com eles. Ele procura resolver problemas de desnível internamente. Ele não faz aflorar seu subsolo. Ele integra seu térreo ao espaço público. Ele é acessível sem gerar barreiras.
O edifício gentil alinha-se com o espaço público, configurando-o e voltando sua(s) frente(s) para ele
Ele organiza sua fachada para estar alinhada ao espaço público circundante. Ele não dá ombros ou costas. Ele trata todas as suas fachadas para logradouros públicos como frentes.
Convida e recebe o pedestre e o ciclista antes que o automóvel
Não coloca bolsões de estacionamento entre si e a rua. Ele considera a localização de paradas de ônibus, ciclovias, faixas de pedestre. Ele dá continuidade às calçadas, sem bloqueios, interrupções ou estrangulamentos. Ele se preocupa com as normas de acessibilidade. O acesso dos carros ao lote e as rampas de garagem não prejudicam a experiência do pedestre/ciclista.
Abre portas para o espaço público
Ele se abre, no nível do térreo, para o espaço público. Suas entradas principais são para os pedestres. Que são claras e evidentes. Ele traz mais transparências que opacidades na fachada térrea.
Abre janelas para os espaços públicos
Ele possui janelas e varandas nas faces voltadas para logradouros públicos. Ele traz mais transparências que opacidades na fachada dos pavimentos superiores.
Não usa muros ou elementos opacos em seus limites
Ele delimita sua área privada com elementos que permitam permeabilidade visual, ou utiliza estratégias de áreas de transição.
Não utiliza elementos para afastar as pessoas
Ele não lança mão de artifícios da arquitetura hostil para impedir que as pessoas sentem, deitem ou se aproximem, ou para prejudicar suas práticas.
Não coloca em sua fachada elementos que piorem o microclima exterior
Ele busca resolver seus problemas de microclima interno sem piorar o ambiente externo. Ele não usa revestimentos que possam gerar ofuscamento ou desconforto térmico. Ele não volta para o espaço público equipamentos que gerem ruído ou calor.
As características do edifício gentil não estão vinculadas a um uso específico. Parece lógico imaginar que edifícios comerciais tendem a ser mais gentis pela natureza da atividade que abrigam, mas, na verdade, qualquer programa pode gerar um edifício hostil ou gentil, a depender das escolhas arquitetônicas.
A embaixada de Israel fica localizada ao lado da embaixada do México, em Brasília, e suas interfaces não poderiam ser mais diferentes. O Museu da República, também em Brasília, como concepção de edifício cultural, é radicalmente oposto ao Centro Internacional de Congresso Le Vinci, em Tours, que desdobrou seu programa na fachada térrea voltada para uma rua preexistente, criando uma série de lojinhas cujas dimensões e quantidade auxiliam a manter a escala e o caráter do lugar, mesmo frente a uma intervenção contemporânea daquela monta.
Tudo é uma questão de escolha, e não há ingenuidade aqui. Como professora de arquitetura e urbanismo, a motivação para explorar essa temática e criar esses termos foi auxiliar na formação de novos arquitetos, para lhes dar uma lente que lhes fizesse ver esses efeitos específicos da forma arquitetônica, a ser usada na sala de aula e incorporada para a vida profissional afora.
No entanto, sei que grande parte da produção da arquitetura hostil não vem de desconhecimento de seus efeitos, mas de escolhas conscientes — políticas, sobretudo, mas também econômico-financeiras, sendo que legislações restritivas e anacrônicas também levam a isso. Netto, Saboya, Vargas e Carvalho, no livro Efeitos da arquitetura, dizem que “quando coisas e relações ganham nomes, elas passam a existir conscientemente em nossas visões e práticas”.
As expressões edifício gentil e edifício hostil são propostas para destacar padrões de interface positivos e negativos e, com isso, auxiliar arquitetos e não-arquitetos a distinguir os edifícios que prestam um serviço dos que prestam um desserviço ao espaço público e à vida pública de nossas cidades. A contribuição vem no sentido de denominar o fenômeno, tornando didática a sua compreensão para, com sorte, orientar práticas arquitetônicas mais generosas.
Via Caos Planejado.