Retomar técnicas e materiais ancestrais para trilhar novos espaços de convivência. Este é o mote que surgiu do desejo de "criar frestas de liberdade, alegria, amor e afetos potencializadores, que se propõem a pensar formas de habitar em convivência com a Terra e a ancestralidade". Um conceito materializado e que segue em construção na Terra Afefé: uma microcidade em Ibicoara, na Chapada Diamantina, realizada pela artista Rose Afefé.
Terra Afefé teve início em 2018 e desde então segue em constante desenvolvimento. Utilizar a terra como matéria-prima para a construção de um espaço que orquestra diferentes camadas de memórias, presente e comunidade tem sido o trabalho elaborado por Rose Afefé, natural de Varzedo, Bahia. Afefé surge com o desejo de romper os dualismos colocados pela colonialidade que tendem a separar a natureza da cultura, o exterior do interior e a arte da vida. Junto da comunidade e navegando pelos saberes locais, o projeto se sobressai num movimento de coexistência e ajuda a imaginar e concretizar diferentes formas de habitar coletivamente. Sendo assim, conversamos com a artista para saber mais sobre a obra realizada e como ela tem se construído.
Victor Delaqua (ArchDaily): Como surgiu a ideia para a Terra Afefé e aconteceu sua execução?
Rose Afefé (Terra Afefé): Eu nasci em um lugar do interior da Bahia que só virou cidade seis meses depois do meu nascimento. Cresci nesse contexto, de uma cidade que se emancipou, que antes era uma vila, uma zona rural. Também tenho muitas lembranças da minha infância brincando de construir casas, meu pai era caminhoneiro na época e o quintal da minha casa tinha muitos materiais de construção.
Quando paro pra olhar minha produção artística percebo que essas duas memórias sempre estiveram muito presentes no meu trabalho. Mas antes de pensar em construir Afefé, meu desejo maior era retornar para um lugar que tivesse enredo com o meu lugar de origem.
Depois que eu consegui o lugar, a ideia para construir Afefé surgiu no momento em que eu estava desenhando como seriam as casinhas dessa terra. Quando risquei no papel pensei em economizar material juntando as paredes. Foi assim que vi uma sequência de casas que lembravam muitos desenhos que fazia na infância e na faculdade.
Desse desenho comecei a imaginar a construção de uma cidade e o que teria nela. Pensei primeiro na cidade que cresci, os espaços que queria que tivessem quando eu era criança. Um teatro, uma biblioteca e assim fui elaborando esse lugar.
A Terra Afefé começa no campo de reconstruir e ressignificar memórias e se desenvolve sem uma intenção muito definida, mas com uma vontade de convocar pessoas para habitarem e vivenciarem na prática uma proposição de microcidade.
Construir Afefé foi um misto de estratégia e de confiança nos meus orixás. Nunca tive a situação ideal, nem financeira, nem de braços para fazer isso acontecer, mas sempre me arrisquei na vida, sempre busquei as frestas e fui percebendo como daria para fazer esse lugar virar realidade. O fato de ter aprendido a construir me trouxe autonomia para conseguir projetar de forma real e entender o tempo que levaria. Contei muito com a comunidade local, com pessoas que surgiram em momentos em que eu estava mais vulnerável. A Afefé está em processo de construção ainda e não tenho certeza quando será finalizada. Porque vejo como uma obra viva, fluida e mutável.
Você poderia falar um pouco mais sobre a utilização da terra como matéria prima para a arquitetura e como você enxerga esse material na construção civil?
A terra é um dos materiais construtivos mais eficientes e abundantes no mundo. Isso eu aprendi lendo, mas eu não utilizei a terra para construir Afefé apenas por isso, o que já seria muito. Uso a terra porque quando fiz a terraplanagem na área que eu iria construir vi uma montanha de barro se formar. Afefé foi modelada pelo lugar.
A terra também reconstrói a memória de escassez que eu tinha sobre minha origem. Isso me toca, me emociona. Quantas vezes na minha infância eu não idealizei uma casa com piso de cerâmica e paredes brancas lisas. A casa era pra ser o lugar que a gente se sente bem, acolhido, no nosso ninho. Mas a gente é tão capturado o tempo inteiro por narrativas que favorecem sempre o mesmo grupo que hoje construir com terra deixou de ser algo de pessoas com poucos recursos e passou a ser moda pra quem tem grana.
Afefé foi construída com adobe (tijolo de barro cru), pintada com cal, com piso de cimento queimado. Quem chega lá se depara com um lugar "simples" mas muito bonito, colorido, vivo. Eu gosto de falar de Afefé a partir do resgate e ressignificação de memória e a terra carrega tudo isso.
Acredito que toda tentativa de elaborar sobre um material construtivo dentro de uma escala global tende a ser destrutiva. O ideal seria utilizar o material que é abundante na região. Mas estamos tão adaptados a viver com fórmulas prontas que imaginar qualquer manobra de transformação envolve pensar no macro.
Eu acho que se dentro de um universo micro a gente passasse a ter mais atenção e desejo de transformar a partir de uma perspectiva local e partindo para nossas relações do entorno, imaginar em grandes escalas se tornaria mais fácil.
O saber local está muito presente em todo o projeto e, ao mesmo tempo, você busca novas experimentações através de sua técnica. Como você avalia esse processo?
Acho que na nossa história existe uma lacuna muito grande no reconhecimento da nossa origem. Eu demorei 28 anos para valorizar minha história. Acho muito importante afirmar e reafirmar isso inúmeras vezes. Os saberes locais pra mim são inspiração e conhecimento profundo sobre a vida. É para onde direciono meu olhar e desenvolvo trabalhos alinhados com essas experiências. Estou reconhecendo e habitando um universo que já transitei, mas agora valorizando e tensionando, experimentando com essa história que também é minha.
Você descreve a Terra Afefé como uma microcidade. É possível falar sobre urbanidade nela? O que as cidades podem aprender com ela?
Eu nunca pensei em urbanidade para Terra Afefé, é uma palavra que não tem aderência com o território nem com minha trajetória. Eu gosto de pensar da seguinte forma: o que gostaria de trabalhar na Afefé? Isso conversa com todas as pessoas? É um exercício - quando existe algo que foge do alcance de determinado grupo, como é possível aproximar?
Afefé é uma microcidade mais por conta de uma vivência que tive desde muito cedo com a palavra cidade, como comentei acima. Uma experiência coletiva que talvez esteja em um certo limite entre o rural e o urbano.
Me interessa tensionar a ideia de conviver coletivamente, habitantes de passagem, não tenho a pretensão de resolver ou servir de exemplo. É um trabalho de arte, pode significar algo para determinadas pessoas e para outras não, é livre o fluir.
Afefé como um espaço obra pode se articular conceitualmente e colocar em prática situações do nosso cotidiano dentro de vários universos. Principalmente a ideia de um lugar que aproxima as pessoas e que incentiva práticas libertárias.
Como a sua formação artística atravessa o pensar arquitetônico?
Eu nunca entrei em uma faculdade de arquitetura, então acho que isso me coloca em um lugar muito intuitivo de pensar o espaço. Talvez eu nem saiba a partir da arquitetura o que significa construir. Eu sei a partir da minha experiência de vida.
Acredito muito em percepções que se dão a partir da prática, porque elas estão mais próximas do gesto, de como a gente sente, sem racionalizar antes. Acho que o fato de ter feito artes e ter um trabalho que gira em torno da construção me dá mais liberdade para experimentar. Eu aprendi a levantar uma parede vendo uma cair.
Para saber mais sobre a Terra Afefé e como participar do projeto, acesse o site ou o Instagram.