A vulnerabilidade presente em países da periferia do capitalismo, como é o caso brasileiro, gera uma série de consequências que tanto se evidenciam em estatísticas, quanto se refletem no território ocupado. A periferização e a dificuldade de acesso a direitos fundamentais como saúde, educação e habitação, são parte dessas consequências, cujo combate e enfrentamento se dá por grupos sociais organizados que buscam construir alternativas dentro desse cenário, assim como é o caso dos movimentos sociais e da Usina CTAH, uma prática de arquitetura dedicada ao assessoramento técnico de grupos sociais organizados.
Durante a década de 1980 e 1990 o Brasil passou por um processo de redemocratização após 20 anos de Ditadura Civil Militar, no qual muitos movimentos populares surgiram discutindo conceitos como solidariedade, cooperativismo e autogestão, entre outros, lutando pela construção de um estado de direito. Ao mesmo tempo, dentro das universidades, estudantes, professores e recém formados foram em busca de uma militância mais prática nas periferias e começaram a se articular para a criação de grupos de profissionais que pudessem apoiar os movimentos sociais e fortalecer a luta popular. Dentre eles, no âmbito da arquitetura e do urbanismo, surgem iniciativas como a da Usina CTAH, um grupo multidisciplinar dedicado a trabalhar junto de grupos organizados, assessorando-os tecnicamente frente aos desafios do meio construído.
A Usina - Centro de Trabalhos para o Ambiente Habitado foi criada em 1991 na cidade de São Paulo e, ao longo dos 30 anos, vem trabalhando junto a movimentos sociais e grupos organizados a partir das especificidades de cada caso e da conjuntura política e econômica da atualidade. No livro Usina: Entre o Projeto e o Canteiro, o arquiteto e crítico de arquitetura Sérgio Ferro descreve o tipo de trabalho desenvolvido pela Usina, que, segundo ele, se concentra em obter as condições para para produzir e ao mesmo tempo em antecipar o futuro coletivo dessa produção: "trata-se de construir firmemente o que será a raiz situada da coesão e solidariedade interna do grupo".
O trabalho da Usina CTAH, portanto, consiste em acompanhar os longos processos pelos quais os movimentos sociais são submetidos de busca e disputa política por terra e recursos, incluindo a participação na negociação das políticas públicas junto aos órgãos governamentais. O processo também inclui a execução de projetos participativos, junto dos grupos organizados, e o desenvolvimento dos projetos até sua execução, abrangendo também a etapa da construção, na qual são comuns os mutirões. Para além de suas demandas práticas, durante todo o processo, um dos trabalhos mais importantes consiste em coletivizar as informações técnicas e as estratégias para que elas possam ser compreendidas pelas pessoas envolvidas, dando forma a um dos principais princípios de trabalho da Usina CTAH: a autogestão.
Na organização autogestionária, os grupos envolvidos participam e se responsabilizam por todas as decisões tomadas, sendo uma forma de organização que une intrinsecamente pensamento, produção e ação. Neste processo é preciso ferramentalizar as pessoas com conceitos, informações técnicas e políticas para que elas possam autonomamente decidir. É a partir da autogestão, pautada não só pela Usina enquanto assessoria técnica, mas principalmente pelo Movimento Social, em suas múltiplas e específicas possibilidades de ação, que se dá a criação da coletividade, da comunidade.
Um exemplo prático dessa atuação são os mutirões autogeridos, grupos de famílias que fazem parte de um movimento social organizado e que são assessorados tecnicamente pela Usina durante a construção de suas casas, como é o caso do Mutirão União da Juta, fruto da parceria entre o Movimento Sem Terra Leste 1 e a Usina, que foi inaugurado em 1998. Assim como muitos dos projetos frutos dessa parceria, neste projeto as 160 famílias eram responsáveis pela gestão dos recursos, participavam da gestão da obra a partir das assembleias e também dos mutirões de construção aos fins de semana, momento importante para a criação de vínculos e comunidade.
É lidando coletivamente com as problemáticas que o movimento organizado, junto da assessoria técnica, cria o senso de coletividade. No caso da União da Juta, durante a obra houve um esforço das famílias em criar e transformar os laços com a vizinhança em um bairro periférico marcado pela violência. Foi a partir de uma creche comunitária que as relações de vizinhança se transformaram, superando assim a luta pela casa e abarcando também a luta pelo bairro. No âmbito do espaço construído, o projeto é resultado do esforço coletivo, desde o projeto, do qual todas as famílias participam, até a construção por mutirões nos fins de semana.
Assim como foi dito anteriormente, o trabalho da Usina enquanto assessoria técnica é focado em, junto do Movimento, buscar maneiras de se construir, antecipando os cenários possíveis dentro do contexto político, econômico e cultural específico. Não há, portanto, uma maneira única, um modus operandi, mas sim princípios que norteiam o trabalho a fortalecer o movimento popular a partir da autogestão, abrindo assim possibilidades de se transformar a realidade, estando, porém, atentos às contradições que a prática do dia a dia impõe.
Este artigo é parte dos Tópicos do ArchDaily: O que é uma boa arquitetura?, orgulhosamente apresentado pelo nosso primeiro livro: The ArchDaily Guide to Good Architecture. Mensalmente, exploramos um tema específico através de artigos, entrevistas, notícias e projetos. Saiba mais sobre os tópicos do ArchDaily. Como sempre, o ArchDaily está aberto a contribuições de nossos leitores; se você quiser enviar um artigo ou projeto, entre em contato.