A configuração do bairro de Heliópolis é consequência de um histórico de ocupações irregulares e de urbanização complexa. Os enfoques do poder público na região nas últimas décadas têm sido os mais variados, sem que, tenha sido possível superar o caráter informal do território, especialmente no que diz respeito à implementação total e articulada da infraestrutura urbana. Foi para abordar esse contexto que o escritório Vigliecca & Associados foi convidado a desenhar os conjuntos habitacionais para as Glebas A e H, realizados, respectivamente, em 2004 e 2013.
A partir de sua ampla experiência, o escritório parte da compreensão da proposta da edificação como uma oportunidade de transformação e qualificação do espaço urbano, articulado com as construções do entorno, com a dinâmica da cidade e com a paisagem de uma maneira mais ampla. Estes propósitos se desenvolveram a partir do conceito de Hector Vigliecca de terceiro território. Para colocá-lo em prática, os conjuntos das Glebas A e H foram desenhados com o objetivo de estabelecer relações tanto com o território como com o entorno preexistente. Assim, estes conjuntos não somente devem beneficiar somente aqueles que neles habitam, mas também os moradores da região. Para isso, tanto o desenho das plantas quanto a altura dos edifícios foram pensados a partir das relações entre os conjuntos e a cidade informal preexistente. A maneira de colocar o “terceiro território” em prática em uma cidade informal e em uma paisagem pouco consolidada é um dos principais desafios do escritório e o tema que se pretende debater neste texto, buscando compreender suas reverberações no espaço urbano de Heliópolis.
A transformação na arquitetura deriva como produto cultural e resulta de seu contexto físico, social, cultural e ambiental. Na cidade formal, é comum pensar a condição do novo frente àquilo que tem dimensão histórica, significado, ou, simplesmente frente às preexistências. Porém, questiona-se como seria transpor essa reflexão para a cidade informal. Cidade está produzida sob condições precárias, de alta densidade populacional, atendendo as demandas sociais sem uma ação planejada do espaço urbano.
A compreensão de Heliópolis é fundamental para a análise dos conjuntos habitacionais - Urbanização das Glebas A e H - propostos pelo escritório Vigliecca & Associados. Pode-se dizer que Heliopolis se constituiu a partir de uma constante sobreposição de fragmentos, sejam eles políticos ou sociais, até ocupar o posto de maior favela do Brasil (125 mil habitantes em área de 1 milhão de m²). Ainda que careça de infraestrutura e transporte público internamente, ocupa uma posição relativamente central no município, a apenas 8km do centro e com serviço urbanos em seu entorno.
Heliópolis teve sua grande expansão demográfica nos anos 1970, servindo como alternativa para a população migrante e de baixa renda oriunda majoritariamente do nordeste brasileiro, que não obtinha sucesso em se estabelecer na cidade formal. Já na década de 80, por pressão da comunidade, as áreas ocupadas são adquiridas pela COHAB (Companhia Metropolitana de Habitação de São Paulo) e são divididas em 14 glebas (A a N). Essa segmentação visava a implementação dos equipamentos de infraestrutura – como saneamento básico e rede elétrica – bem como a estruturação de uma gestão administrativa compartilhada com o poder público, já que cada gleba seria delegada à uma empresa licenciada.
Muitas dessas empresas optaram pela contratação terceirizada de escritórios de arquitetura, como é o caso do Vigliecca & Associados, conferindo estratégias de abordagem específicas a cada gleba. Se por um lado a independência administrativa gerou uma descontinuidade da malha urbana como um todo, por outro viabilizou a tão importante aproximação do desenho às demandas mais específicas a cada terreno. Apesar das contradições entre escalas, e ainda que de forma pontual, a experiência de Heliópolis representou a materialização das crescentes discussões sobre alternativas às práticas genéricas e descontextualizadas de habitação social no Brasil.
A análise crítica do território do entorno de seus projetos é constante na obra de Vigliecca & Associados, o qual tem larga experiência na proposição de conjuntos habitacionais e propostas de escala urbana, tais como as analisadas. Héctor Vigliecca (Montevideo, 1940), arquiteto fundador do escritório, elabora o conceito de “terceiro território”. Isto é, a compreensão da cidade como sistema integrado, cujo funcionamento baseia-se no fato de que nenhuma estrutura possui significado de maneira isolada. O edifício só ganharia seu sentido completo ao se compor neste complexo de relações, dando uma nova camada de significado a si próprio e ao espaço da cidade. A aplicação do conceito nestes projetos é evidente na articulação entre instâncias formal e informal da cidade.
Habitação social não é um problema construtivo nem um problema de quantidade, a questão é como construímos a cidade, pois entendemos o âmbito urbano como principal fator que determina a qualidade do habitar. A habitação deve sempre estar diretamente ligada à estrutura da cidade como um todo legível e indissolúvel – seja ele urbano ou suburbano. — Hector Vigliecca, 2014
Nos projetos das Glebas A e H, desenvolvidos respectivamente em 2004 e 2013, o escritório procura colocar em prática o ideal do terceiro território a partir de uma leitura cuidadosa sobre a paisagem. No primeiro projeto (Gleba A), a área de intervenção é resultante da canalização do córrego Sacomã, em função da qual se deu a remoção de inúmeras famílias em situação de risco na várzea do rio. As casas que não foram removidas se inserem como preexistência, e servem como contraponto de diálogo entre a cidade informal e formal. Assim, o projeto se inicia a partir de croquis que relacionam o gabarito das duas realidades, de forma que um não se sobreponha ao outro. Ademais, o miolo de quadra, comumente associado à falta de luz e insalubridade, assume uma preponderância no projeto com a implantação de pátios internos bem delimitados. A importância que se dá a esse elemento acaba por ressignificá-lo como elemento centralizador, suprindo a carência pública por espaços de respiro e de encontro.
O conjunto habitacional da Gleba A contém 537 unidades de habitação com 4 tipologias (de 48 a 62 m²) distribuídas em edifícios de 4 e 5 pavimentos, contendo: sala, cozinha, lavanderia, banheiro e dois dormitórios. Os desenhos originais dispunham o bloco de circulação vertical na fachada “quebrando uma possível monotonia, dada a dimensão da lâmina” (VIGLIECCA, 2014, pg.145). Contudo, devido a problemas na execução da obra, essa intenção inicial foi inviabilizada.
Assim, a partir do momento em que se reflete sobre os desdobramentos de algumas decisões do escritório, é possível concluir que a transposição da cidade formal para a informal – mesmo sobre o prisma do terceiro território - muitas vezes é conflituosa. Por exemplo, o pátio interno só possui seu sentido completo quando funciona no conceito de sistema integrado, a partir da relação de conexão entre os edificios existentes e da permeabilidade para o uso geral. Contudo, as edificações preexistentes dão as costas para os pátios, de forma que a sua relação é prejudicada pelos muros. Além disso, por iniciativa dos moradores preocupados com a segurança, o térreo de pilotis atualmente é gradeado, impedindo a circulação proposta e diluindo seu sentido de transformação urbana.
As obras da Gleba A terminaram em 2012 e, no ano seguinte, surgiu a oportunidade de construção de um novo conjunto habitacional. O projeto havia sido tão bem recebido que os moradores solicitaram que o novo fosse feito nos mesmo moldes. O projeto para a Gleba H tinha o desafio de se integrar a um conjunto habitacional proposto anteriormente pela COHAB-SP e inconcluso, deixando um vazio residual entre as 5 torres idênticas ocupadas por construções precárias e irregulares. Esses assentamentos foram removidos para a execução das novas obras.
No caso da Gleba H, assim como no conjunto anterior, a implantação em lâmina no limite do lote foi utilizada para gerar unidade ao conjunto e reforçar a rua como espaço de convívio. Nessa área, também foi utilizada a implantação em “U”, que além da função anterior, criaria áreas livres de uma menor escala (MINGHINI, 2019, p 183-184). O acesso aos edifícios ocorre sempre pela parte mais reservada do “U” em uma cota elevada de 1,50 metros em relação ao pátio, o que garante uma divisão entre público e privado sem a necessidade de construção de grades.Além disso, as quatro vias que entram na quadra, como ruas internas e a construção de apartamentos no nível térreo foram elementos responsáveis por um maior sentimento de segurança.
O conjunto habitacional da Gleba H contém 200 unidades de habitação com 3 tipologias (de 41 a 54 m²), em 9 blocos de edifícios construídos em alvenaria estrutural. As edificações possuem de três a quatro pavimentos, para garantir uma transição de gabarito entre as altas torres e o entorno mais baixo. Os programas são organizados em setores servidores (sala e dormitórios) e setores servidos (cozinha, lavanderia e banheiros) com ambientes bem definidos. Quanto aos espaços servidores, foi desenhado um agrupamento do bloco hidráulico para que haja uma racionalização das instalações e assim facilite a sua construção. Comparando aos modelos geralmente estabelecidos, a lavanderia adquire um espaço generoso com área para passar e secar roupas, além de possuir elementos de concreto vazados, que proporcionam a ventilação cruzada com a sala.
A Gleba H, apesar de lidar com situações diferentes, parece revisar aspectos em relação à proposição da Gleba A na leitura do terceiro território. Primeiramente, da forma que relaciona o conjunto com as torres existentes, enquanto na Gleba A observa-se a caracterização da quadra pela simples justaposição com o entorno, na Gleba H existe um gesto de criar novos limites da quadra “abraçando” as torres. Ademais, os pátios internos possuem acessos bem demarcados que contribuem para uma maior clareza na circulação do interior da quadra e maior segurança, sem a necessidade de grades. Outra clara diferença entre os projetos é o aspecto da circulação interna. Na Gleba A, o fluxo horizontal se dá exclusivamente no térreo do conjunto, sendo a distribuição para os apartamentos dada pelas diversas torres de circulação. Já no projeto da Gleba H explora-se a circulação horizontal no nível dos apartamentos de tipologia “U”, através de um caminho escalonado, o qual possibilita a visualização dos pátios internos.
Retomamos aqui o questionamento sobre os limites e possibilidades de inserção de um conjunto projetado e estruturado em um contexto de cidade informal. As ações de Vigliecca estão atreladas sempre por uma posição cuidadosa e atenta às preexistências, considerando as dinâmicas presentes no território sobre o qual irá atuar. Se potencializa práticas atuantes na região, como destacar a rua como lugar de encontro. O projeto recompõe o sistema de relações reais em que atua, procurando a partir da unidade trazer tanto novas formas de vivência quanto uma organização do território em seu entorno, gerando a transformação ao mesmo tempo que considera a situação existente.
Apesar das virtudes da implementação dos edifícios, é importante ressaltar o constante desafio enfrentado ao atuar em uma estrutura territorial complexa do ponto de vista espacial e histórico, como em Heliópolis, e que envolve ainda as diversas dimensões da atuação do poder público. O projeto em análise nasceu das contradições territoriais encontradas, onde os escritórios contratados não possuíam um partido em comum, gerando a descontinuidade do desenho urbano. O poder transformador da arquitetura reside, portanto, na possibilidade do arquiteto – enquanto agente social – analisar e atuar sobre os diversos territórios. Conseguindo realizar o intercâmbio entre os campos da cidade articulando suas especificidades.
Referências bibliográficas
- BONDUKI, Nabil. Arquitetura moderna, lei do inquilinato e difusão da casa própria. In: Origens da habitação social no Brasil. São Paulo, Estação Liberdade, 2004.
- MASSIMINO, Gustavo Marcondes. Habitação coletiva de interesse social em Heliópolis: a visão de quatro arquitetos. Dissertação (Mestrado) - Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo. Orientadora: Helena Aparecida Ayoub Silva. São Paulo, 2018.
- MINGHINI, Victor Martins. A dimensão urbana nos projetos habitacionais de Héctor Vigliecca. 2019. Dissertação (Mestrado em Projeto de Arquitetura) - Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, University of São Paulo, São Paulo, 2019.
- MOREIRA, Felipe Freitas. Heliópolis e as estratégias de enfrentamento da cidade real. Dissertação (Mestrado) - Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo. Orientador: João Sette Whitaker Ferreira. São Paulo, 2017.
- SOUZA, Vanessa Padiá. Heliópolis (São Paulo): as intervenções públicas e as transformações na forma urbana da favela (1970 2011). Dissertação (Mestrado) - Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Presbiteriana Mackenzie, São Paulo, 2012.
- VIGLIECCA, H; RUBANO, L . M. (org). “Urbanização de Heliópolis Gleba A: Solidariedade urbana”. In: O Terceiro Território. São Paulo: Le Mar em Coche, 2014.
Esse texto faz parte do trabalho de análises de obras produzido para a XXII Bienal Panamericana de Arquitetura de Quito, no ano de 2020. Sob a coordenação e participação das professoras Cristiane Muniz e Marianna Al Assal. Alexandre Kok, Caio França, Gabriela Rudge, Lara Girardi, Lia Soares, Marina Liesegang, Marina Saboya, Pedro Trama, Tamara Silberfeld e Valentina Kacelnik são graduados em arquitetura pela Escola da Cidade. Maria Clara Calixto é estudante de arquitetura e urbanismo na Escola da Cidade.