“Não mure, no more; Ou a cidade morre.” Descobri esse poema em um lambe-lambe solitário colado em um dos infinitos muros que tornam a cidade de São Paulo um lugar pior para se viver. Confesso que, toda vez que levo meu filho mais novo para tomar vacina na UBS da Vila Romana, penso que seria legal ter um spray de tinta para pichar o poema nos muros de um dos condomínios de prédios construído recentemente ali em frente e que ocupa quase um quarteirão inteiro do bairro.
Apenas penso, é claro, pois, por mais que enxergue aqueles muros exagerados como uma agressão à cidade e a quem caminha por ela, não defendo o vandalismo como resposta.
Até porque, como economista do setor público — e deixo aqui uma pequena provocação bem-humorada —, a primeira questão que me vem à mente, na verdade, é: melhor do que pichá-los não seria… taxá-los?
Para se ter ideia do que estou falando quando falo em muros exagerados, faço uma breve descrição: duas laterais do condomínio (que, repito, ocupa praticamente um quarteirão inteiro) são completamente protegidas por muros beges enormes, que tendem a provocar uma sensação de alienação, tédio e insegurança em quem caminha por ali; em outra lateral, no lugar de muros, há grades que aliviam muito pouco o impacto negativo do empreendimento na rua, já que logo atrás delas, após um pequeno e triste jardim, há um novo muro; e, por fim, temos a entrada do condomínio, também caracterizada por muros altos, além de contar com vagas de estacionamento para visitantes, mais grades e eclusas.
Enfim, uma verdadeira fortaleza medieval no miolo do bairro; juro que não me surpreenderia se me dissessem que, por trás daqueles muros e grades, ainda há um fosso repleto de crocodilos e serpentes venenosas…
Quem não conhece a Vila Romana, em São Paulo, a partir da descrição do condomínio acima pode imaginar que se trata de uma região violenta, zona de guerra, refém do tráfico e de gangues urbanas (tipo a Nova York dos anos 70 e 80 apresentada nos filmes da franquia “Desejo de Matar”, estrelados por Charles Bronson).
Os muros, grades e eclusas, assim, nada mais seriam do que medidas mais do que necessárias para garantir a segurança máxima de seus moradores. Fosse a região tão perigosa como as medidas de segurança sugerem, contudo, provavelmente nem haveria demanda por condomínios de alto padrão ali…
No caso particular do condomínio mencionado, não somente o bairro registra baixos índices de criminalidade como ele está a poucos metros do 7.º Distrito Policial — Lapa, além de contar em seu entorno com uma série de pequenos empreendimentos que tornam a vida na região bastante agradável.
Estão ali perto o Teatro Cacilda Becker, o tradicional restaurante Cacilda, a recém-inaugurada Livraria Cabeceira (sim, uma livraria de rua), além de diversos outros pequenos comércios, barbearias, salões de beleza, padarias, bares e restaurantes com mesas na calçada que enchem a região de vida.
Por que, então, o condomínio adotou uma arquitetura tão hostil ao entorno? Preguiça, falta de criatividade, clientes paranoicos ou completo desprezo pela vida além dos muros?
Se fosse apenas um caso isolado, é claro que este artigo não faria sentido, mas quem caminha por bairros ricos do centro expandido de São Paulo como Itaim, Jardins, Moema, Perdizes, Pompéia, Pinheiros, Vila Madalena e Vila Mariana, por exemplo, sabe que esse modelo é regra, e não exceção.
É verdade que nenhum bairro de São Paulo está imune à violência urbana, de forma que medidas de segurança são compreensíveis e até desejáveis (iluminação complementar à dos postes públicos, por exemplo); mas até que ponto essas medidas são justificáveis quando muitas delas acabam por prejudicar a segurança de quem anda na rua e a qualidade de vida em seu entorno?
Tendo esta questão em vista, o Plano Diretor Estratégico de São Paulo, aprovado em 2014, trouxe incentivos econômicos e regulamentações relacionados a fruição pública, permeabilidade visual, uso misto e fachada ativa, o que parece já estar surtindo efeito nos novos empreendimentos imobiliários, mais preocupados com seu impacto na qualidade de vida do entorno, especialmente no caso dos localizados nas proximidades do transporte público.
Mas o que fazer para incentivar a melhoria da relação com a cidade no caso dos condomínios mais antigos, anteriores à vigência deste Plano Diretor?
Muito da vida nas ruas dos bairros mencionados acima se deve aos empreendimentos que surgem em antigas casas remanescentes ou no térreo dos predinhos construídos nas décadas de 40, 50 e 60.
A partir da década de 70, teve início nesses bairros um processo de intensa verticalização que dura até hoje, prejudicada pelas exigências de afastamentos frontais e laterais — que acabam deixando os edifícios isolados no meio do lote, sem contato com a rua — e orientada muito mais pela busca de segurança do que pela qualidade da arquitetura ou impacto no espaço público, deixando como resultado ruas mais feias, desertas e inseguras, repletas de grades, cercas elétricas, eclusas e muros elevados.
Como economista, ainda mais atuando no setor público, tenho refletido sobre formas de incentivar a gentileza urbana nesses condomínios construídos antes da vigência do novo Plano Diretor.
É preciso ter em mente, contudo, que legislações e incentivos econômicos equivocados podem levar a resultados diferentes dos desejados, conforme bem lembrado por Gabriel Prates em artigo publicado aqui. Um dos exemplos mais emblemáticos disto, lembrado por Prates e muito citado em aulas de economia e planejamento urbano, é o do imposto sobre janelas criado no Reino Unido em 1696.
Como o governo não tinha acesso à renda das famílias naquela época, especialmente das mais ricas, foi preciso pensar em uma alternativa para tributá-las. A estratégia encontrada foi estabelecer um imposto de acordo com o número de janelas dos imóveis, uma vez que os mais ricos teriam casas maiores e, portanto, mais janelas.
Os contribuintes, é claro, logo começaram a fechar as suas janelas com tijolos para pagarem menos impostos, conforme ilustra a imagem abaixo.
Por outro lado, nem sempre recuperar ideias do passado, como a do imposto sobre as janelas, me parece sinal de atraso e retrocesso.
Antes da invenção dos sistemas modernos de ar-condicionado e calefação, a arquitetura precisava levar em consideração as condições climáticas da região em que os imóveis eram construídos, por exemplo.
Já hoje em dia, mesmo um edifício revestido de vidro em uma região quente e ensolarada pode ser mantido fresco com a utilização de ar-condicionado — algo extremamente ineficiente do ponto de vista energético, por sinal.
Diante da atual crise climática e da consequente necessidade de se racionalizar o uso da energia, utilizando ventilação e iluminação naturais, por exemplo, talvez haja muito o que reaprender com as construções antigas, portanto.
Voltando então para o problema dos condomínios murados que mencionei no início do texto e pensando aqui em ideias aparentemente antiquadas… Será que não faria sentido copiar a lógica daquele imposto das janelas e estabelecer uma taxação sobre o metro quadrado dos muros nos bairros ricos da cidade, a Taxa do Muro de Condomínios?
A arrecadação do tributo poderia ser utilizada, então, para amenizar os impactos negativos gerados pelos muros, entre os quais vale destacar o esvaziamento das calçadas e a insegurança de quem caminha por ali, sem a vigilância dos “olhos da rua”, para utilizar a famosa expressão da jornalista e ativista Jane Jacobs.
De quebra, teríamos uma medida socialmente justa: nos bairros ricos de São Paulo, é muito provável que haja uma correlação positiva entre o tamanho dos muros dos condomínios e a renda dos moradores que estão escondidos lá dentro.
Mas e se o resultado final, como aconteceu no caso das janelas no Reino Unido, for a retirada dos muros para fugir do imposto?
Neste caso, ao contrário daquele, a política pública, definitivamente, terá atingido o seu objetivo principal. Especialmente se, no lugar dos muros, forem instaladas janelas.
Via Caos Planejado.