As Grandes Guerras do início do século XX trouxeram uma parcela de transformações sociais, dentre elas a introdução das mulheres no mercado de trabalho. Décadas mais tarde, as dinâmicas de trabalho são outras, mas o mercado continua reforçando a divisão de trabalho por gênero e explorando a tripla jornada. Há, no entanto, brechas para possíveis transformações.
Menos por uma conquista de direitos e mais por uma necessidade produtiva — já que, sobretudo na Europa, o número de homens diminuiu consideravelmente devido às guerras —, a entrada da mulher no mercado de trabalho sem o rompimento da lógica doméstica e da estrutura patriarcal fez aumentar sua carga de trabalho, somando os afazeres domésticos com o trabalho na fábrica ou, mais atualmente, no escritório. Essa jornada tripla de trabalho é reconhecida em todo o mundo, sendo as mulheres, independentemente de sua carreira, responsáveis pelo cuidado da casa, dos filhos e também dos ganhos financeiros.
Na área da arquitetura e do urbanismo o cenário comum reflete essa tripla jornada, para além, também das outras dificuldades das mulheres no mercado de trabalho. Em geral, os cursos de arquitetura e urbanismo costumam apresentar uma fração maior de mulheres do que de homens nas salas de aula, contudo, essa proporção se inverte ao longo do tempo após a graduação. Quando contabilizados o número de arquitetos homens vencedores de prêmios, a cifra é muito superior aos prêmios contemplando arquitetas mulheres e figuras femininas de referência na área.
Apesar de intensas, com turnos que excedem os horários convencionais e demandas exacerbadas que levam muitos profissionais ao burnout, as dinâmicas de trabalho representam um desafio particular para as mulheres. Para além das já conhecidas diferenças salariais entre homens e mulheres que exercem a mesma função e todos os preconceitos que giram entorno da possível maternidade, os espaços de trabalho das arquitetas são majoritariamente masculinos, de maneira que as mulheres encontram dificuldade para se fazerem ouvir e validar diante do machismo estrutural que atravessa o campo profissional. Somado a isso, muitas mulheres acabam se concentrando em trabalhos invisibilizados nos escritórios, raríssimas vezes assumindo lugares de comando e criação.
Essa relação social estabelecida entre os gêneros e a divisão sexual do trabalho remete à antiga relação entre trabalho produtivo e reprodutivo. O trabalho produtivo e remunerado, que é culturalmente associado ao homem, é visto como o ponto central da vida cotidiana e responsável pelo acesso aos recursos e meios de vida, sendo, portanto, mais importante do que o trabalho reprodutivo, associado à mulher. Não menos importante, o trabalho reprodutivo é aquele que ocorre diariamente em casa, dando condições do trabalho produtivo acontecer. Em escritórios e ambientes de trabalho esse paralelo se dá com mulheres em funções mais operacionais e homens em funções de destaque e criação.
Dessa forma, as mulheres arquitetas lidam com o desafio imposto de galgar um espaço junto aos homens e conquistar o respeito em seu meio. Uma vez inseridas no espaço de trabalho, são geralmente destinadas a lugares de suporte, reproduzindo divisões sociais arcaicas e evitando assim que cheguem a cargos mais prestigiados de coordenação e criação. O resultado dessa dinâmica é um apagamento histórico das mulheres na arquitetura, com figuras de exceção cumprindo o papel de referências históricas, porém limitadas, como Lina Bo Bardi e Zaha Hadid. É preciso reconhecer essa situação problema sem, no entanto, torná-la protagonista. Nos últimos anos, o debate entorno de gênero e arquitetura, ainda que restrito à binariedade, têm avançado, trazendo diferentes percepções e transformações em escritórios, academia e até nas mídias especializadas.
Um reflexo disso está no mais importante prêmio de arquitetura do mundo, o Prêmio Pritzker, que contempla arquitetos desde 1979. Dos 43 prêmios já dados, apenas seis mulheres foram contempladas, sendo cinco delas concentradas nos últimos doze anos e apenas três delas com exclusividade e protagonismo. Com exceção de Hadid e das irlandesas Yvonne Farrell e Shelley McNamara, todas as outras mulheres foram premiadas junto de seus sócios homens. Há ainda casos como o de Denise Scott Brown onde sua história foi apagada e o prêmio concedido apenas a seu parceiro, o arquiteto Robert Venturi. Ainda assim, esse aumento dos últimos anos é fundamental para o debate e deve refletir também dentro dos escritórios.
Resta às arquitetas aproveitar os espaços conquistados ao longo desse processo, expandindo-os cada vez mais, buscando não somente o reconhecimento profissional individual, mas também uma mudança cultural mais profunda, que debata as questões de gênero e a divisão sexual do trabalho. Acima de tudo, é fundamental que as práticas femininas, e de todo espectro que saia da heteronormatividade, ganhe cada vez mais espaço e tenha cada vez mais oportunidade e protagonismo no mundo da arquitetura.
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