Durante as discussões finais para a aprovação do Plano Diretor de Belo Horizonte, em 2019, a previsão de cobrança de Outorga Onerosa do Direito de Construir (OODC) gerou intenso debate e se mostrou o principal obstáculo político para a aprovação. Diversas instituições, incluindo a ONU-Habitat, se manifestaram a respeito. Afinal, o que é a OODC e quais os efeitos desse instrumento de planejamento no território?
Quando olhamos para um belo edifício, à primeira vista, não nos detemos ao fato de que por trás dele existem tijolos, argamassa, estruturas e outros recursos e métodos construtivos que compõem aquela edificação. Nas cidades não é diferente: quando vemos belos espaços urbanos, com calçadas de qualidade, uma rede eficiente de transporte e áreas com vitalidade urbana, a tendência é admirar a qualidade desses ambientes e serviços, esquecendo das estruturas que os fazem funcionar. Por trás de uma cidade eficiente, no entanto, existe uma série de instrumentos urbanísticos e normativas que permitiram e incentivaram essa qualificação.
A boa notícia é que não é preciso viver em um país desenvolvido para se ter uma legislação urbana efetiva: temos, no Brasil, o Estatuto da Cidade. Ele estabelece como principal instrumento de planejamento das cidades o Plano Diretor (PD), que determina as estratégias de crescimento e os regramentos urbanísticos das cidades (como a determinação dos recuos, a altura máxima permitida nas construções, entre outros), a fim de garantir seu funcionamento adequado, coerente com seu perfil e trajetória populacional, econômico e ambiental.
Um papel que costuma ser deixado de lado nos planos é justamente o estratégico, que busca conduzir as cidades para o desenvolvimento sustentável, com benefícios econômicos, ambientais e sociais. O Plano Diretor pode – e deve – assumir esse papel por meio de instrumentos que ajudam a direcionar o crescimento e o desenvolvimento das cidades. Um deles é a Outorga Onerosa do Direito de Construir.
Como funciona a Outorga Onerosa do Direito de Construir e por que o instrumento gera polêmica?
A OODC desempenha um papel duplo no planejamento das cidades: além de um instrumento de gestão do território, configura-se também como um instrumento de financiamento – já que, via de regra, é uma cobrança, e por isso costuma gerar polêmica quando aplicada. Nos próximos parágrafos, explicamos como esse instrumento funciona e como pode beneficiar as cidades.
Para orientar o uso e a ocupação do solo urbano, o PD utiliza um mecanismo chamado Coeficiente de Aproveitamento (CA). Quando esse coeficiente é 1, o dono de um terreno de 100 metros quadrados pode construir até 100 metros quadrados (uma vez a área do terreno). Se o coeficiente for 2, ele pode construir até 200 metros quadrados no mesmo espaço (duas vezes a área do terreno).
Existem dois tipos de CA: básico e máximo. O CA básico garante o direito básico de uso da propriedade. O CA máximo permite um uso adicional – estabelece um potencial construtivo adicional. A Outorga Onerosa do Direito de Construir nada mais é que uma concessão emitida pelo poder público para que o proprietário do imóvel construa acima do coeficiente básico estabelecido mediante o pagamento de uma contrapartida financeira. Ou seja, se um terreno está localizado em uma área de CA básico 1 mas que permite um CA máximo de 4, o dono precisa adquirir o direito de construir a mais, se assim desejar, não podendo ultrapassar o CA máximo estabelecido para aquela região.
Muitas vezes, nas áreas com mais infraestrutura, o PD determina um coeficiente de aproveitamento máximo mais alto, com o objetivo de promover um uso eficiente dessas infraestruturas, controlar a densidade populacional, aproximar locais de moradia e emprego. No entanto, esse potencial construtivo (que pode ser adquirido por meio da OODC) só é possível porque a região foi alvo de investimentos do poder público e da coletividade – consumidores, prestadores de serviços, donos de estabelecimentos do comércio local, pessoas que todos os dias trabalham e ajudam a construir nossas cidades.
É pela soma desses investimentos que esse potencial construtivo adicional é passível de exigência de contrapartida por parte do poder público. Através da OODC, a cidade cobra pelo uso adicional do solo urbano, e os recursos são devolvidos à coletividade e reinvestidos na própria cidade, criando um círculo virtuoso. Ou seja, o proprietário que deseja edificar uma área maior do que a área estabelecida pelo coeficiente de aproveitamento básico, ele deve “comprar” do município esse potencial construtivo adicional, contribuindo simbolicamente aos investimentos previamente realizados pela coletividade.
Por que as cidades devem aplicar a OODC?
As cidades podem usar a OODC como instrumento de financiamento e de planejamento e gestão do território urbano. A administração municipal pode, por exemplo, determinar condições ou mesmo regiões da cidade com previsão de desconto na outorga, orientando o crescimento da cidade.
É o caso de São Paulo, que no Plano Diretor de 2014 determinou incentivos para empreendimentos localizados próximos aos corredores de transporte, incentivando a densificação dessas áreas, aproximando locais de moradia e emprego. O Plano Diretor de Belo Horizonte, recém aprovado, também prevê a implementação da OODC, incentivando o adensamento em torno das principais avenidas da cidade e promovendo mais moradias no hipercentro da cidade.
Se bem utilizada, a OODC pode gerar recursos para serem reinvestidos na cidade. Para as pessoas, o instrumento é benéfico conforme a cidade investe de maneira mais homogênea no território, oferecendo mais opções de moradia em áreas com infraestrutura e fazendo uma melhor gestão dos recursos. Os empreendedores ganham a oportunidade de construir mais em áreas centrais e com infraestrutura – ou descontos para investir em regiões onde a prefeitura deseja incentivar a ocupação. Já o poder público obtém recursos não tributários para investir na manutenção e qualificação urbana da cidade, principalmente quando associada à criação de um fundo específico, ganhando capacidade de gerir melhor o território de forma estratégica, garantindo a gestão mais eficiente da infraestrutura existente e proporcionando novas conforme a necessidade.
O processo de revisão dos PDs, vivido hoje por grande parte das cidades brasileiras, é uma oportunidade para adequar diretrizes que podem encaminhar a construção de cidades mais eficientes – como a aplicação da Outorga. Na publicação “DOTS nos Planos Diretores”, lançada em 2018, o WRI Brasil apresenta esse e outros instrumentos urbanísticos previstos em legislação que as cidades podem usar para promover um desenvolvimento mais sustentável.
O que é e o que não é a OODC?
A OODC não é um imposto, mas uma maneira de ordenar o desenvolvimento sustentável da cidade e da propriedade urbana, garantindo a justa distribuição dos benefícios e ônus causados pelo processo de urbanização. É importante ressaltar: para os donos dos terrenos, a OODC é opcional. A ideia é simples: só paga quem deseja construir mais do que a área estabelecida pelo CA básico.
A OODC não é:
- cobrada de quem já tem seu imóvel construído
- cobrada de quem vai construir área igual ou menor à área do terreno
- obrigatória ou compulsória
A OODC é:
- cobrada de novos empreendimentos que desejam construir acima do CA básico
- geralmente investida em infraestrutura urbana
- um instrumento de gestão do território urbano, com potencial para induzir o crescimento de forma eficiente – por exemplo, em áreas próximas a eixos de transporte
- um mecanismo que auxilia para a efetivação do planejamento estratégico da cidade
Planejamento: a chave para o desenvolvimento urbano sustentável
O desenvolvimento das cidades depende do planejamento. Um planejamento eficiente, que preveja e utilize instrumentos de forma adequada, tem o potencial de mudar o modelo das cidades e conduzir o crescimento de forma ordenada e sustentável. Para isso, é importante reconhecer que diferentes instrumentos urbanísticos podem e devem ser utilizados para gerir o território urbano e são imprescindíveis para a construção de uma cidade sustentável. A OODC é apenas um deles.
O planejamento urbano é a força vital que determina o ritmo, as dinâmicas, o funcionamento de uma cidade. Com Planos Diretores mais robustos e inovadores, as cidades têm nas mãos o poder de traçar seu próprio caminho rumo a um futuro mais humano e sustentável.
Via WRI Brasil.