Trazendo o feminismo interseccional para o debate da arquitetura e urbanismo

“Um dos primeiros resultados que encontrei quando estava pesquisando sobre arquitetura feminina no Google foi um arranha-céu na Austrália, cujos arquitetos disseram ter se inspirado nas curvas de Beyoncé quando o construíram”, narrou a arquiteta holandesa Afaina de Jong em sua última palestra do TEDxAmsterdamWomen em 2021. “É sério? O corpo dela? Beyoncé? Claro, ela é incrível, mas literalmente traduzir seu corpo em um prédio... Isso é arquitetura feminina?”, continuou ela, indignada.

De Jong é fundadora do estúdio AFARAI, onde trabalha com uma metodologia interdisciplinar combinando teoria e pesquisa com design. Ela considera seu ateliê “uma prática feminista que incentiva a mudança em questões sociais e espaciais e que acomoda as diferenças”, então Afaina provavelmente está familiarizada com o conceito de 'interseccionalidade'.

O termo foi cunhado em 1989 por Kimberlé Crenshaw, professora de direito dos Estados Unidos, que mais tarde o redefiniu como 'feminismo interseccional', "um prisma para ver como várias formas de desigualdade muitas vezes operam juntas e exacerbam umas às outras". Em sua teoria, estudou a sobreposição ou junção de identidades sociais e sistemas correlatos de discriminação, opressão ou dominação, com o objetivo de compreender as desigualdades e relações entre esses grupos sociais.

Crenshaw explicou que as pessoas costumam falar sobre a desigualdade racial separando-a das disparidades baseadas em gênero, sexualidade, status de imigrante ou classe, sem reconhecer que algumas pessoas podem ser afetadas por todas – ou pela maioria delas. “Nem todas as desigualdades são criadas iguais”, declarou Crenshaw certa vez. E os espaços urbanos e arquitetônicos em que vivemos são um exemplo claro disso.

A título de exemplo, a padronização de móveis e equipamentos em espaços públicos e privados – outrora uma das forças da industrialização – vem despertando algumas preocupações. Depois de alcançar um nível geral de igualdade, a atenção foi desviada daqueles que foram excluídos por essas convenções. Por exemplo, a cadeira Mirra 2 da Hermann Miller pode ser adaptada aos tamanhos e posturas individuais do corpo, juntamente com outros móveis ajustáveis, como mesas. Mas na área dos transportes, por exemplo, as pessoas ainda lutam com a largura dos assentos dos aviões e o espaço para as pernas nos carros. Em prédios públicos, residências particulares ou espaços comerciais, é fácil encontrar profundidades inadequadas em escadas, por exemplo, ou encontrar banheiros com dimensões mínimas e desconfortáveis, excluindo os usuários.

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(An)other Vernacular Pavilion de Afaina de Jong e Innavisions para Grafikenshus, Suécia. Scan 3D do corpo de pessoas que moravam na cidade. Imagem © Jens Evaldsson

“A ideia geral de espaços públicos é que eles sejam abertos e acessíveis a todos, independentemente de raça, gênero, idade, habilidades”, descreveu de Jong em sua apresentação. “Mas a realidade é que o espaço público não é o ideal para liberdade de expressão e liberdade de reunião. Isso não é dado para todos. E não é para pessoas que não são vistas como normativas”, ele continuou.

A fundadora da AFARAI aceitou que, embora existam “alguns espaços públicos maravilhosos” em todo o mundo, eles não foram construídos – nem mesmo pensados – considerando “as vozes dos muitos grupos marginalizados em nossas sociedades”. Ela recapitulou seus dias na escola de arquitetura e destacou três pontos principais: o conceito de “interseccionalidade” não foi ensinado a ela – e ainda não era mainstream; as ideias onipresentes de tradição e universalidade que tendem a encorajar o design para apenas um tipo de usuário, ou seja, a classe média, família branca; e que muitas profissionais do sexo feminino foram invisibilizadas na história da arquitetura que ela aprendeu.

Para evitar que essa falta de reconhecimento das mulheres na academia fosse perpetuada, conforme de Jong pede, Lizzie Malcolm criou a Women Writing Architecture (WWA), uma organização comprometida com a transformação da academia de arquitetura. Ela é uma designer escocesa, desenvolvedora e cofundadora do Rectangle, um estúdio de design gráfico e de interação, e professora em um programa de mestrado na Royal Academy of Art (KABK) em Haia. A WWA é um site com uma bibliografia aberta sobre arquitetura, escrita por mulheres, permitindo que os visitantes encontrem novas escritoras ou tenham uma visão dos últimos tópicos de interesse das mulheres na indústria. E como é feito de forma colaborativa, cresce por meio de conversas, citações e sugestões entre seus usuários.

Malcolm explicou no WWA's Rationale que os termos “arquitetura” e “feminino” permanecem abertos e flexíveis - assim como a ferramenta ”interseccionalidade”, pois inclui mais do que o coletivo feminista - porque “a intenção é reunir diferentes grupos ativistas no conversação. Além disso, em vez de estimular uma disputa entre grupos variados, seu site "não é uma ponte entre dois opostos (o centro e a borda), mas um lugar seguro, desejável e encorajador que oferece uma alternativa a esse binário, no qual o diálogo pode florescer.”

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Franklin Court / Robert Venturi + Denise Scott Brown. Imagem © Mark Cohn

A invisibilidade das mulheres que De Jong e Malcolm discutem é perceptível quando chega a hora de prestigiar o trabalho de um ateliê. Por exemplo, em 1991, Robert Venturi ganhou o Prêmio Pritzker, mas sua parceira, Denise Scott Brown, não. Após quase duas décadas de reflexão e mudança cultural, Kazuyo Sejima (do SANAA) foi premiada pela mesma academia, assim como seu parceiro de estúdio Ryue Nishizawa. Em 2012 havia a intenção de entregar o prêmio a Wang Shu e Lu Wenyu (do Amateur Architecture Studio), mas ela o rejeitou – apesar da insistência de seu parceiro e marido para que ela também fosse reconhecida – porque “nunca quis um Pritzker”.

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Iwan Baan (esquerda, 2007) | © YanGu Studio (à direita, 2021). Imagem Xiangshan Campus por Amateur Architecture Studio

Outra "alternativa ao binário", como Malcolm definiu, é convidar novos coletivos e ativistas para o processo de design. O design participativo é a oportunidade para a comunidade questionar, desenhar e construir um projeto que responda exclusivamente às suas necessidades. Dessa forma, a interseccionalidade é garantida, pois o usuário está envolvido desde o início. Até agora, a maioria dos projetos participativos são espaços culturais ou educacionais ou pequenas instalações urbanas. Se essa prática continuar, poderá ser ampliada e levada a projetos maiores nas cidades. 

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Cortesia de Paris En Common

“As cidades têm a capacidade de fornecer algo para todos, apenas porque, e somente quando, são criadas por todos”, declarou Jane Jacobs, urbanista e ativista americana-canadense do século XX. Ela considerava a cidade como uma "complexidade organizada", uma mistura de relações dinâmicas de sistemas e auto-organização. Jacobs argumentou que a falta de diversidade garante mais estratificação e que é necessário buscar uma interação interconectada de relacionamentos – facilitada por estratégias de diversificação – e não apenas soluções de variável única.

Na arquitetura e no urbanismo, o caminho da interseccionalidade implica convidar novas e diversas vozes para planejar, projetar e nutrir nossos ambientes. Essas mudanças e novas interações ao longo do processo de projeto trarão, sem dúvida, novas formas espaciais, bem como soluções ainda a serem descobertas para todos.

Este artigo é parte dos Temas do ArchDaily: Mulheres na arquitetura. Mensalmente, exploramos um tema em profundidade através de artigos, entrevistas, notícias e projetos de arquitetura. Convidamos você a conhecer mais sobre os temas do ArchDaily. E, como sempre, o ArchDaily está aberto a contribuições de nossas leitoras e leitores; se você quiser enviar um artigo ou projeto, entre em contato.

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Publicado originalmente em 21 de outubro de 2022.

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Sobre este autor
Cita: Sarasola, Lucila. "Trazendo o feminismo interseccional para o debate da arquitetura e urbanismo" [Bringing Intersectional Feminism into Architecture and Urbanism] 06 Nov 2024. ArchDaily Brasil. (Trad. Simões, Diogo) Acessado . <https://www.archdaily.com.br/br/991267/trazendo-o-feminismo-interseccional-para-o-debate-da-arquitetura-e-urbanismo> ISSN 0719-8906

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