Mais é mais: subvertendo a máxima de Mies van der Rohe

Não há dúvidas de que a construção do Pavilhão de Barcelona, de Mies van der Rohe, foi desenhada de modo a reafirmar o movimento moderno. Esse "ícone" do movimento, presente no imaginário arquitetônico, foi construído para ser efêmero. Com o fim da Exposição Internacional o pavilhão foi desmontado, entretanto, foi reconstruído 54 anos depois, o que levantou um debate no campo arquitetônico acerca da veracidade dessa réplica.

Uma das respostas a esta reconstrução, ou melhor a falsificação, foi a construção, no mesmo ano, da Casa Palestra, do escritório OMA. Participando da 17ª Triennale de Milano, o OMA constrói a Casa Palestra como mais uma réplica do Pavilhão de Mies. Cópia distorcida e disfuncional, como um gesto pós-moderno bem-sucedido, colocando em xeque e criando tensões com o movimento que o antecede. O presente texto propõe uma breve discussão das duas obras e suas influências no debate entre modernismo e pós-modernismo.

O Pavilhão de Barcelona, projetado por Mies van der Rohe e inaugurado no dia 27 de maio de 1929, simbolizava a primeira participação oficial da Alemanha em um evento internacional desde o fim da Primeira Guerra Mundial. De acordo com Adam Jasper, autor do texto A Virtual Look Into Mies van der Rohe’s Barcelona Pavilion , o presidente da Alemanha na época, Paul Von Hindenburg, queria, com a obra, “apresentar o Espírito da Nova Alemanha: simplicidade e clareza de meios e intenções – tudo está aberto, nada está oculto” (JASPER, 2015, s.p.). Os fechamentos em lâminas de vidro e a relação tênue entre espaço externo e interno podem ser entendidos como escolhas projetuais que traduzem esse discurso. Apesar de extremamente minimalista e pouco ornamentado, o projeto é ostensivo, conta com materiais exuberantes e de alto custo.

Na planta, é nítida a justaposição de planos-paredes, que criam um fluxo de movimento e percurso no espaço, é possível notar traços semelhantes com a estética De Stjil, estratégia utilizada em outros projetos de Mies. Algo inédito, em particular neste projeto, foi o uso das colunas, com um ritmo regular em sua disposição e a seção em cruz, que seguem um grid rígido, enquanto as divisórias internas, de ônix e vidro, fixadas por montantes cromados, são colocadas livremente, criando uma circulação fluida que flexibiliza o entendimento dos espaços externos e internos, o dentro e o fora. As paredes externas são de travertino ou de mármore verde Tinian. Em um dos espelhos d’água, revestido de vidro preto, há uma escultura feita por George Kolbe, intitulada “Der morgen”, também conhecida como “Alba”, que significa alvorecer em espanhol, um corpo feminino nu em movimento, exercendo um gesto com os braços para cima. [1]

Os móveis projetados por van der Rohe aparecem junto ao desenho arquitetônico e são parte dele, com as pernas em “x” e perfis de aço cromado, as peças sentáveis são revestidas em couro branco peludo.

Ainda assim, o pavilhão foi inteiramente desmontado em menos de um ano. O mármore foi vendido para ser transformado em mesas de centro, o aço virou sucata e os móveis ficaram dispersos. Durante mais de 50 anos, ele só existiu por meio de alguns documentos em arquivos incompletos e em fotos preto e branco presentes em algumas revistas. No entanto, entre 1983 e 1986, o pavilhão foi reconstruído em seu local original por um grupo de arquitetos catalães, liderado por Ignasi Solà-Morales, a partir da documentação relacionada ao projeto disponível no acervo do MOMA, resultando em uma bela réplica ou exercício de falsificação, que gerou diversas polêmicas. Assim, a obra ocupou as pautas dos debates arquitetônicos da época.

Não à toa, no mesmo ano de conclusão da reconstrução do pavilhão, o escritório OMA, liderado por Rem Koolhaas, ao ser convidado a participar da 17ª Triennale de Milano, fez uma outra réplica distorcida do pavilhão de Barcelona, colocando em xeque não só os aspectos e camadas do moderno, como também a ideia de real. Uma vez que o que está situado em Barcelona até hoje é visto como original, então, qual é o original se todos não passam de réplicas?

A obra do OMA, de dimensões ambientais[2] atua com um site-specific, a partir do momento que o escritório optou por respeitar e seguir o desenho do prédio onde a exposição foi sediada. Já o canto curvado superior esquerdo, o escritório decidiu dobrar a réplica do Pavilhão para que ela se adequasse à tal forma. Distorcer os cânones modernos simbolizados pelo Pavilhão foi a intenção principal da obra, presente em todas as operações.

A Triennale contou com a curadoria de Mario Bellini e Georges Teyssot, o desejo dos curadores residia em refletir sobre o tema Il progetto doméstico, em tradução livre “o projeto doméstico”. É notável que a subversão da concepção original de van der Rohe tenha começado pelo título, uma vez que o OMA nomeou sua obra Casa palestra, casa ginásio ou casa academia. Assim, foi estabelecido que o ambiente, do original, imaculado, moderno, purista e expositivo, agora, em sua réplica, era um ambiente doméstico, portanto “Casa”. Em seguida, dentro dessa mesma lógica, o escritório optou por conceber um espaço sem programa específico, uma casa sem a função normativa de morar. A a escolha dos materiais baratos e de pouca durabilidade para a réplica era diametralmente oposta a dos materiais empregados no projeto de van der Rohe, com isso, o OMA buscava imitar as materialidades exuberantes da obra original explorando as características do falso, do sintético, estratégia que estava em alta na década de 80 e foi incorporada pelo movimento pós-moderno, quebrando a ideia de pureza da matéria ligada ao modernismo.

Mais é mais: subvertendo a máxima de Mies van der Rohe - Imagem 5 de 6
Sem título #1, colagem Colagem produzida pela autora a partir de imagens retiradas no livro S, M, L, XL e do site do OMA.

A instalação também era composta por objetos responsáveis por criar a atmosfera espacial da obra, como ar-condicionado, televisores, projetores, luzes fosforescentes, alto falantes, lasers coloridos, diversos tipos de tecnologias e elementos distintos em diálogo com o consumo, o morar e a estética dos anos 80, entre eles, pedaços de tecido, roupas, armários, além de uma coluna dórica romana. A coexistência dessa diversidade corrobora a experiência multissensorial um tanto caótica, excessiva e instigante.

Outro ponto essencial da obra é a ideia de ode ao corpo e à cultura física em seu sentido amplo, relacionando-as com o modernismo. O OMA substitui a estátua de Kolbe, delicada e convencionalmente relacionada ao feminino, pela figura de uma mulher fisiculturista que ressalta a intenção de operar e exercer ações sobre as coisas, nesse caso sobre os corpos, a mesma lógica da deformação e elevação do físico ao seu limite também está presente na réplica do Pavilhão. Os autores da obra estavam cientes de que, dentro das premissas modernistas, o homem ideal era saudável, atlético e viril. Ao inserir uma figura feminina nessa posição, viril, forte e de corpo-máquina, deslocando-a da frágil e indefesa, normalmente atribuída a ela, reafirmam a ideia de colocar as questões em choque por meio da contradição e do estranhamento. Algo presente no gesto pós-moderno, que reflete seu caráter fundamental de realizar a crítica por meio da apropriação dos signos e intenções do movimento que questionam.

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Sem título #2, colagem Colagem produzida pela autora a partir de imagens retiradas no livro S, M, L, XL e do site do OMA
Mais é mais: subvertendo a máxima de Mies van der Rohe - Imagem 3 de 6
Sem título #3, colagem Colagem produzida pela autora a partir de imagens retiradas no livro S, M, L, XL e do site do OMA

O trecho abaixo, retirado do memorial da obra, ilustra como o OMA enxerga movimento moderno arquitetônico de forma hedonista, contradizendo o senso comum. Desse modo, a instalação busca explorar essa dicotomia:

“No início da década de 1980, a arquitetura moderna foi apresentada como ‘sem vida, puritana, vazia e desabitada’. Sempre foi nossa intuição, entretanto, mostrar que a arquitetura moderna é, em si mesma, um movimento hedonista, sua severidade, abstração e rigor são, na verdade, tramas para criar os cenários mais provocantes para o experimento que é a vida moderna” — OMA, 1986, s.p., tradução nossa

Através dessas obras: o pavilhão de Mies, a réplica do mesmo, e a cópia feita pelo OMA, é possível compreender o pós-moderno numa leitura do movimento que o antecede. Entendemos que ele se utiliza de ferramentas dispostas pelo objeto de crítica para exercer a própria crítica.

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Sem título #4, colagem Colagem produzida pela autora a partir de imagens retiradas no livro S, M, L, XL e do site do OMA
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Sem título #5, colagem Colagem produzida pela autora a partir de imagens retiradas no livro S, M, L, XL e do site do OMA

Nesse caso específico, a ideia é tensionar em nível absurdo, ao limite, utilizando as premissas originais modernas, distorcendo-as, maximizando-as, como uma forma de explorar e evidenciar as diversas facetas do movimento, seus vícios e virtudes. Nas palavras de seus autores, o "objetivo é chocar as pessoas para a consciência das possíveis dimensões 'ocultas' de Arquitetura Moderna” (OMA, 1986, s.p.). A máxima Miesiana é subvertida na Casa Palestra, visto que o conceito de “menos é mais” não cabe, a aposta nas ideias de hiper-modernidade, hiper-corpo, hiper-tecnologia fazem valer a ideia de “mais é mais”.

__________

O presente ensaio e pesquisa são frutos de um exercício proposto pela disciplina “História da técnica, teoria e crítica da arquitetura e paisagismo”, ministrada pela professora Paula Dedecca, ao decorrer do quarto ano da graduação da Escola da Cidade em 2021.

Notas:

  • [1] Diversos críticos apontam o valor simbólico-político do gesto empregado na escultura, mas devido às características e objetivo desse ensaio, não nos deteremos a elas agora. Ver: VILLEGAS, Luis Castillo. Modernism on Steroids. Casa Palestra, The Domestic Project. OASE #94, 2015.
  • [2] Estruturas que abarcam o corpo, adentráveis.

Referências bibliográficas:

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Sobre este autor
Cita: Helena Ramos. "Mais é mais: subvertendo a máxima de Mies van der Rohe" 20 Nov 2022. ArchDaily Brasil. Acessado . <https://www.archdaily.com.br/br/992387/mais-e-mais-subvertendo-a-maxima-de-mies-van-der-rohe> ISSN 0719-8906

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