Mudanças sistêmicas. Transformação. Transição profunda. Essas expressões são usadas com tanta frequência que correm o risco de se tornarem palavras da moda, tendo seu real significado ofuscado.
Ainda assim, para conter o aumento da temperatura do planeta, conservar a natureza e construir uma economia mais justa capaz de beneficiar a todos, nós de fato precisaremos de uma mudança profunda em todos os aspectos de nossas economias – e a um ritmo e em uma escala nunca vistos até então.
As evidências científicas mais recentes mostram que precisamos limitar o aquecimento global a 1,5°C para prevenir impactos cada vez mais perigosos e irreversíveis das mudanças climáticas. É também a ciência que afirma que, entre outras ações, precisamos proteger, manejar de forma sustentável e restaurar os ecossistemas para suspender a perda de biodiversidade o quanto antes. Para conseguir tudo isso, precisamos promover, até 2030, mudanças fundamentais em quase todos os principais sistemas – energia, construção, indústria, transportes, florestas e uso da terra, alimentos e agricultura. Transformações transversais dos sistemas político, econômico e social também precisam acontecer para viabilizar essa mudança e garantir que seja socialmente inclusiva, com resultados equitativos para todos.
Para sermos francos: ações suplementares ou restritas a uma única agenda, região ou setor não serão suficientes.
As crises globais que enfrentamos hoje – climática, ecológica, sanitária, geopolítica e de equidade – estão intimamente interligadas. Mudanças sistêmicas podem desencadear consequências não previstas em outros setores. Se quisermos construir um futuro justo e sustentável para todos, precisamos navegar por essas mudanças com uma lente sistêmica, a fim de compreender por completo as dinâmicas complexas existentes.
No WRI, criamos o Systems Change Lab (Laboratório de Mudanças Sistêmicas) em resposta à necessidade urgente de mudanças realmente transformadoras. Essa nova iniciativa visa estimular ações no ritmo e escala necessários para vencermos alguns dos maiores desafios enfrentados pelo mundo hoje, no clima, na natureza e na equidade.
Mas o que exatamente significa mudar um sistema? E como uma abordagem sistêmica pode nos ajudar a solucionar complexos problemas ambientais e de desenvolvimento? A seguir, respondemos seis fundamentais.
1) O que é uma mudança sistêmica e por que é importante?
Mudar um sistema pode ser definido como mudar seus componentes – e os padrões de interação entre esses componentes – a fim de, em última análise, formar um novo sistema, que se comporte de uma maneira qualitativamente diferente.
Muitos governos, lideranças empresariais e organizações da sociedade civil concebem projetos de mudança seguindo planos e modelos lineares, no estilo “se fizer A, então B”. Mas abranger sistemas complexos não é tão simples.
Nós navegamos por diferentes redes sistêmicas interdependentes todos os dias, e todas possuem interconexões e relações únicas. Por exemplo, uma família, uma comunidade, um país. O mesmo vale para nossos sistemas de transportes, alimentos, cidades. Pensar de forma sistêmica, em geral, implica:
- ver o todo, mais do que apenas as partes;
- identificar padrões de mudança recorrentes em vez de instantâneos;
- entender interconexões fundamentais dentro de um mesmo sistema e entre sistemas diferentes;
- abranger diferentes perspectivas;
- aprender e se adaptar constantemente; e
- colocar suposições à prova.
2) O significa mudanças sistêmicas?
Primeiro, é importante avaliar por que o sistema atual não é mais adequado.
Consideremos o setor de energia, por exemplo. A eletricidade mudou a vida das pessoas para melhor, de incontáveis maneiras. Ainda assim, centenas de milhões de pessoas em todo o mundo continuam sem acesso a um sistema de eletricidade confiável; a queima de combustíveis fósseis que alimenta a maior parte da geração de eletricidade está alterando o clima, contribuindo com em torno de 23% das emissões globais de gases do efeito estufa (GEE); e a transição para fontes mais limpas não está nem perto do ritmo necessário para manter o aumento da temperatura global abaixo de 1,5°C. Resolver todos esses problemas – e ao mesmo tempo proteger a saúde das pessoas e seus empregos – não é uma tarefa simples.
Mudar sistemas em geral envolve uma série de alterações que operam juntas para desestabilizar o status quo e promover uma mudança ampla, que afete o sistema como um todo. Por exemplo, para transformar o sistema de energia global, pensando em um futuro mais sustentável e justo para todos, alterações essenciais incluiriam:
- eliminar gradualmente a eletricidade gerada a partir de carvão e combustíveis fósseis sem abatimento de emissões;
- expandir rapidamente a geração de eletricidade carbono zero;
- modernizar as redes elétricas, ampliando o armazenamento de energia e fazendo uma melhor gestão da demanda;
- assegurar o acesso à energia e uma transição justa e equitativa para todos.
Não existe uma receita pronta, e sim um mosaico de soluções que precisam ser encaixadas juntas, fazendo as adaptações necessárias à medida que entendemos o que funciona e o que não funciona.
Focar apenas em aumentar a geração de eletricidade carbono zero só pode nos levar até determinado ponto. Precisamos pensar em como os demais componentes do sistema precisam mudar, ao mesmo tempo e em sintonia uns com os outros. Isso inclui interromper o uso de combustíveis fósseis, mas sem deixar para trás os trabalhadores e comunidades que dependem do setor (uma abordagem conhecida como “transição justa”); atualizar as redes e a gestão de eletricidade; garantir acesso equitativo; e desenvolver a resiliência do sistema de energia para os impactos das mudanças climáticas.
Também é essencial considerar como o sistema de energia se relaciona com os outros – ou seja, de que forma mudanças no sistema de energia podem viabilizar uma transição mais efetiva para outros sistemas, como o de transportes, à medida que a eletrificação avançar para diversos tipos de veículos. Conseguir navegar por essas transições em meio a um pano de fundo de complexidades geopolíticas e paisagísticas é fundamental.
3) Como aplicar uma mudança sistêmica?
Usar a mudança sistêmica como abordagem para solucionar desafios complexos pode ajudar tomadores de decisão a definir as ações mais urgentes, a identificar as soluções mais efetivas e a entender melhor os impactos em cascata de diferentes intervenções.
Há muitas rotas e ferramentas disponíveis para aplicar estratégias visando promover uma mudança de sistema – mapeamento de sistemas, práticas de futuros, visualização de padrões de mudança, entre outras. É possível citar, contudo, três elementos gerais:
- Determinar pontos de alavancagem e as transformações necessárias: compreender melhor o sistema, assim como seus padrões e interconexões, a fim de identificar as mudanças mais efetivas para concretizar uma transformação mais ampla.
- Aprender sobre o que promove a mudança: aceitar a complexidade e reunir aprendizados de exemplos passados e atuais para identificar fatores que podem acelerar o ritmo e a escala da mudança e, ao mesmo tempo, mitigar efeitos não intencionais.
- Alinhar agentes de mudança e mobilizar ação: envolver e colaborar com os diversos atores do sistema em um rumo no qual cada um possui suas próprias motivações singulares e um papel diferente a desempenhar para conduzir a mudança.
4) Quais são as grandes alterações necessárias para alcançar uma mudança de sistema e cumprir as metas globais para o clima, a natureza e a equidade?
Para limitar o aumento da temperatura global a 1,5°C, interromper a perda de biodiversidade e construir uma economia mais justa, praticamente todos os principais sistemas precisarão mudar, incluindo a forma como cultivamos alimentos, abastecemos nossas economias, construímos cidades e conservamos a natureza. Transições intersetoriais também precisam acontecer nos sistemas político, econômico e social – por exemplo, a forma como financiamos essas transições, desenvolvemos medidas de prosperidade econômica, administramos nossos recursos naturais compartilhados e garantimos que todos sejam beneficiados pela economia sustentável.
Dentro de cada sistema, há uma série de alterações que precisam acontecer de forma simultânea – e rápida – para que possamos atingir a escala necessária de mudança. O Systems Change Lab identifica mais de 70 mudanças fundamentais que, juntas, podem ajudar a transformar quase todos os principais sistemas.
Essas mudanças vão desde a suspensão da fabricação de motores de combustão interna até a expansão de serviços financeiros para comunidades carentes, utilização de indicadores de bem-estar econômico mais abrangentes, restauração de áreas desmatadas e degradadas e o desenvolvimento de novas soluções para indústrias cujas emissões são difíceis de diminuir, como aço, cimento e plásticos.
5) Quais são os fatores que viabilizam ou dificultam uma mudança sistêmica?
É fundamental considerar os fatores que podem viabilizar ou dificultar os avanços de uma mudança de sistema. As condições que viabilizam a mudança podem variar bastante, mas o Systems Change Lab identificou cinco categorias:
- inovações em tecnologia, práticas e abordagens;
- liderança de agentes de mudança;
- regulação e incentivos;
- instituições fortalecidas;
- mudanças de comportamento e nas convenções sociais.
No sistema de energia, por exemplo, são muitos os fatores que podem viabilizar ou dificultar a mudança no sistema – subsídios para combustíveis fósseis, custo do armazenamento de energia, liderança corporativa para aquisição de energia renovável, planos nacionais de eletrificação, entre outros. Outras condições, relacionadas à equidade, que podem ajudar a promover uma transição justa no sistema de energia incluem o número de programas de apoio para os trabalhadores do setor de combustíveis fósseis na transição para outros empregos, o número de empresas que oferecem treinamentos relacionados à energia limpa e o número de empregos em setores verdes.
Monitorar as tendências entre esses fatores e revelar insights sobre suas interconexões pode ajudar a acelerar as transições e, ao mesmo tempo, apontar possíveis impactos indiretos, cobenefícios e compensações.
6) Como podemos monitorar o avanço de uma mudança sistêmica?
O Systems Change Lab vai acompanhar os avanços nos principais setores a fim de estimular as transformações no clima, na natureza e na equidade.
Em cada alteração identificada, medimos o progresso em relação a metas para 2030 e 2050, bem como facilitadores individuais e barreiras para a mudança do sistema. Rastreamos as áreas nas quais a mudança está acelerando ou seguindo na direção errada e identificamos lacunas de conhecimento e dados.
Para alcançar uma profunda mudança sistêmica, precisamos começar agora
As ações empreendidas até hoje falharam amplamente em promover mudanças no ritmo e na escala necessários. Traçar um futuro no qual possamos alcançar o zero líquido das emissões, interromper a perda de biodiversidade e construir uma economia global justa e equitativa é possível. E, felizmente, nunca tivemos tantas informações sobre o que precisa ser feito.
Adotar a abordagem de mudanças sistêmicas é essencial para concretizar essa mudança. O processo vai exigir liderança de todos os setores da sociedade e dentro de cada sistema. Juntos, podemos desencadear as transformações necessárias para que nosso planeta e nossas sociedades prosperem.
Via WRI Brasil.