Na obra cinematográfica, a arquitetura escolhida e desenhada para compor a imagem pode se comunicar com o espectador de muitas formas. Edifícios e cidades podem informar a localidade através de monumentos conhecidos ou tipos de construções específicas para determinados climas, assim como pode indicar o recorte temporal através de estéticas construtivas. Obras de fantasia possibilitam um infinito campo de criação na composição de detalhes arquitetônicos e design de interiores.
Diante de uma cenografia inteiramente criada para contar histórias, podemos identificar diversas inspirações em movimentos artísticos por parte do autor. Buscar e identificar essas recriações pode ser um ótimo exercício para aprimorar o olhar e conhecimento sobre técnicas, movimentos e estilos arquitetônicos. Além desses atributos, a arquitetura pode ganhar significados mais profundos na narrativa, de acordo como são enquadrados, explorados e colocados em cena, dialogando muitas vezes com os personagens.
É possível observar grandiosidade da obra de J. R. R. Tolkien na riqueza de detalhes, nos personagens bem escritos e nas imagens encantadoras e bucólicas. O autor de O Senhor dos Anéis esmiúça cada parte do seu universo nas páginas, que ganharam composições imagéticas no cinema e no streaming. Esse ano foi lançada a série Os Anéis do Poder, que narra acontecimentos da Terra Média que antecedem O Senhor dos Anéis. Além das paisagens encantadoras apresentadas na série, ambientes internos e desenhos arquitetônicos também se destacam pela beleza e riqueza de detalhes. O universo de Tolkien conta com diversas criaturas, como magos, hobbits, elfos, anões, orcs e seres humanos, onde cada um apresenta um modo de vida diferente, refletindo nos seus espaços e adornos utilizados. Os ambientes apresentam referências tanto da arquitetura gótica quanto do art nouveau, e é possível observá-las na cidade élfica de Lindon e em Númenor, reino dos Homens.
Não existe um livro específico no qual a série tenha se inspirado. Foram coletadas informações dos chamados Apêndices de O senhor dos Anéis, que posteriormente foram reunidos e publicados no livro O Silmarillion, após a morte do autor.
Arquitetura Gótica
A arquitetura gótica nasceu na região da Normandia (norte da França) no final do século XII, e autores afirmam que ela funcionou como uma substituta da arquitetura românica, estilo muito popular antes do seu surgimento. O fortalecimento da igreja católica em decorrência das Cruzadas contribuiu para o rápido desenvolvimento e disseminação do estilo gótico na Europa: ainda que outras edificações apresentem esse estilo, ela de destaca nas edificações religiosas.
Do ponto de vista arquitetônico, a grande descoberta desse estilo foi o desenvolvimento do arco ogival. Essa estrutura surgiu para substituir o arco semicircular muito usado na arquitetura românica, e seu desenho forma um ângulo mais ou menos agudo na parte superior. Geometricamente, o arco ogival é mais difícil de ser projetado. Mas possibilitou e execução de construções cada vez mais altas, porque o formato que ele apresenta distribui as forças de maneira mais uniforme, suportando melhor o peso da edificação. Por essa razão esse elemento é muito percebido em catedrais e igrejas, já que a altura era associada à proximidade com o céu.
Dentre as várias criaturas idealizadas por Tolkien, como hobbits, orcs e magos, os elfos são uma das principais raças escritas pelo autor, baseados nas criaturas lendárias da mitologia nórdica. São descritos como altos e belos, parecidos com os Valar, outros seres criados pelo autor com poderes angelicais, como anjos. Os arcos ogivais estão muito presentes na cidade élfica de Lindon, e seus desenhos altos e pontiagudos dialogam com o poder e grandiosidade do povo élfico, representado por uma essa arquitetura imponente.
Art Nouveau
Ornato, decorativo e assimétrico, o Art Nouveau foi um movimento artístico de vanguarda com expressão em diferentes meios, como mobiliários, utensílios, adornos de iluminação, interiores, artes decorativas e arquitetura. Se opondo ao classicismo e ao ecletismo, o movimento artístico surgiu no final do século XIX e, de acordo com Colin, teve influência do movimento Neogótico, de onde adquiriu uma de suas principais características: o culto da linha.
De fato, a linha, não o volume, a cor, ou o efeito de massa, vai se tornar a marca do Art Nouveau. Entretanto a linha vai desempenhar um papel diferente da linha força, que desenhava os esforços das estruturas góticas. — Silvio Colin
Linhas curvas, assimétricas e delicadas, o prestígio das formas orgânicas, o uso de vidro e ferro, mosaicos, vitrais e a natureza como inspiração são as características mais marcantes do movimento. Também apresenta alguns traços do estilo barroco (como o uso do dourado e sensação de perpetuidade e grandeza) e do estilo rococó (como linhas curvas e design elegante). Móveis como estantes, cabeceira de cama e luminárias presentes na sala de Celebrimbor, personagem élfico, e em outros espaços de Lindon apresentam essas características de forma marcante, como o desenho de folhagens e traços orgânicos. Detalhes percebidos também em Númenor: nas esquadrias e outros móveis no quarto do rei, no Salão do Saber e em outros espaços do reino.
As linhas curvas se inspiram nas linhas flutuantes e imprevisíveis da natureza, como raízes, caules e flores com a intenção de estabilizar algo que se move. O reino élfico vai além desse modo de criar seus espaços e permite a profunda integração da natureza e seus próprios traços, apresentando o verde em quase todos os seus espaços.
Assim como o uso da linha curva, uma das características mais marcantes e talvez a mais perceptível é o proveito que os artistas tiravam da natureza:
A natureza é um grande livro do qual podemos tirar inspiração, e é dentro desse que devemos buscar princípios, os quais, quando encontrados devem ser definidos e aplicados pela mente de acordo com as necessidades humanas. — James Grady
Resgatando características do estilo barroco, os aposentos de Númenor apresentam também a forte presença do dourado e sensação de infinidade e grandeza. Cada enquadramento de Os Anéis do Poder pode ser uma grande fonte de inspiração! Abaixo conseguimos perceber a semelhança entre os espaços do reino élfico com a Casa Tassel, projetada por Victor Horta no estilo Art Nouveu, localizada em Bruxelas.
Referências biliográficas
- BENEVOLO, Leonardo. História da Arquitetura Moderna. Trad. Ana M. Goldberger. São Paulo: Editora Perspectiva, 1989.
- COLIN, Silvio. A Poética do Art Nouveau na Arquitetura. Disponível em: <http://coisasdaarquitetura.wordpress.com/2011/07/09/a-poetica-do-art-nouveau-na-arquitetura/>. Acesso: 03 de maio, 2012.
- CUDDON. The Penguin Dictionary of Literary Terms and Literary Theory, p. 77.
- GRADY, James. Nature and the Art Nouveau. The Art Bulletin, Vol. 37, No. 3, p. 187-192, Set, 1955.
- O SENHOR DOS ANÉIS: Os anéis do poder, 1ª temporada. Título original: The Lord of the Rings: The rings of power. Direção: J.A. Bayona. Produção: Ron Ames e Chris Newman. Estados Unidos; Amazon Studios; Dobly Atmon, 2022.
- VIEIRA, Miriam de Paiva. O lugar da natureza no movimento Art Nouveau. Cadernos Benjaminianos, n. 6, Belo Horizonte, 2012.
- Dictionary of Literary Terms and Literary Theoty
- O CONTO DA AIA, 1ª temporada. Direção: Reed Morano e outros; Produção: Marissa Jo Cerar e outros. Estados Unidos; MGM e HULU, 2017.