Alegoria e arquitetura moderna: uma análise do filme "Vontade Indômita"

Vontade Indômita (The Fountainhead em inglês), de 1949, baseado no romance A Nascente da escritora russa naturalizada nos Estados Unidos Ayn Rand, retrata a jornada de um jovem arquiteto vanguardista que se encontra dentro de um debate arquitetônico entre a “criação” e a industrialização da profissão. O romance de 1943 apresenta o Objetivismo de Rand, filosofia à qual se ateve por grande parte da carreira e que define o ser humano como um ser heróico, cuja atividade mais nobre é a realização produtiva, mesmo se só for alcançada através de renúncias e auto sacrifício.

É neste lastro em que é desenvolvida a genialidade do arquiteto, Roark, que luta por seus ideais frente à industrialização da arquitetura, exposta no debate acerca de uma obra de criação individual e imaculável. É onde, ainda, somente cabe à mulher da trama a materialização do sacrifício. Este ensaio intenta mostrar as relações entre corporificação da arquitetura em Dominique sujeita à figura de Roark e, para tanto, parte da descrição de cenas que reforçam esta colocação.

Minuto 13. Howard Roark chega à inauguração de sua maior obra até então, o condomínio de luxo Enright House. Roger Enright, o incorporador por trás do empreendimento, leva Roark até Dominique Francon; Francon é grande admiradora do trabalho, senão a única entre os convidados. Enright diz a Roark que ele e Dominique têm um vínculo, recordando a renúncia de Francon de seu cargo no The Banner – o jornal das massas em que encabeça a crítica de arquitetura –, em protesto ao ataque perpetrado ao edifício.

Enright acrescenta que Francon admira e compreende os edifícios de Roark. Francon diz: “eu admiro o seu trabalho mais do que qualquer coisa que tenha visto. Isto não é um vínculo, mas um abismo entre nós, se você se recordar do que leu em minha coluna”, e segue: “desejaria nunca ter visto o seu edifício. São as coisas que amamos ou admiramos que nos escravizam, e eu não cedo tão facilmente.” Roark conclui: “isto depende da força de seu adversário, sra. Francon.” Aqui, Francon associa a obra que ama à figura de seu criador. Mas eles já haviam se conhecido antes.

Minuto 46. No impulso de Roark em não ceder às vontades do gosto predominante em sua obra ele diz: “eu trabalharei como operário, se for necessário”. Roark então se torna minerador em uma pedreira fora da cidade, que pertence a Guy Francon, arquiteto de prestígio e pai de Dominique Francon.

É onde eles primeiro se veem. Estabelece-se aí uma relação platônica entre ambos mas, até então, Roark é uma figura anônima para Dominique Francon; um operário por quem ela curiosamente se apaixona. A partir disso, a personagem de Francon se torna mais presente na trama.

No início do filme, além de crítica de arquitetura no jornal The Banner, Francon estava noiva de Peter Keating, ascendente na carreira de arquiteto por seguir o estilo prestigiado, e também sócio do futuro sogro. As intenções de Francon neste noivado, no entanto, não eram legítimas: ela dizia não ceder facilmente ao amor e que nunca iria se apaixonar.

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Roark ao ter seu projeto escolhido pelo Security BanK of Manhattan. Captura de tela do filme

Francon se encontra em conflito moral constante, e age sob uma intempestividade de quem não sabe ou não entende o que quer. Ou melhor: entende, mas sabe que aquilo que julga o ideal (as ideias novas e originais, bem como a integridade nas ações) não têm lugar no mundo. É perspicaz em notar as movimentações do poder em seu círculo próximo, que se ocupa de manter o status quo estético, este que vai de encontro ao status quo das relações sociais. Enquanto crítica de arquitetura, escreve coisas em que não acredita, pois anseia por um novo cenário que não vê na arquitetura que seu pai e seu então noivo perpetram.

Roark, por sua vez, encontra alguém que investe em seu estilo, Roger Enright. O edifício Enright House inquietou o campo, que há muito pautava-se apenas pela arquitetura de influências clássicas. Causou aversão e estranhamento para a maioria. Mas não para Dominique Francon que, sem ainda saber quem era o autor, encontrou naquela arquitetura a resposta de seus anseios. 

A construção da personagem de Francon destoa, num primeiro olhar, da construção atribuída às personagens femininas nas narrativas literárias e cinematográficas comuns da época. A sua postura intempestiva e suas atitudes independentes não eram algo usual nas ficções. No entanto, essa divergência acaba aí. O seu papel na trama ainda é secundário. 

Mas, no caso deste filme e com esta trama, surge uma relação muito própria a ele, com a construção de seus personagens a partir de vínculos alegóricos que nos dizem sobre o campo da arquitetura, os parâmetros sexistas da sociedade e, também, sobre o Objetivismo de Ayn Rand.

No caso, nos parece óbvio que o arquiteto – figura que Rand escolheu para discorrer sobre sua teoria – não seja uma mulher, relegando a ela um lugar no plano de fundo. Mas, dentro disso, nos cabe atentar ao porquê dessa escolha de Rand. Tomando Howard Roark mesmo como exemplo, a construção de sua personagem se aproxima bastante da conhecida jornada do herói, chave de elaboração de narrativas abundantemente usada em Hollywood, aqui revertida à moral do “egoísmo racional” de Rand.

Roark é a representação do homem ideal na visão colocada por Rand: suas escolhas e suas ações são guiadas por um forte compasso moral de autovalorização das suas ideias e suas obras. Julga o estilo arquitetônico vigente vulgar, que destitui os edifícios de singularidades, como se fossem eles próprios indivíduos únicos e morais. Por isso tem uma ânsia messiânica e martirizante de levar a cabo sua vanguarda genial e moderna, como fica claro em seu discurso final.

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Dominique Fracon e Roark. Captura de tela do filme

A representação da personagem de Dominique Francon, por sua vez, dentro das relações de gênero da autora, não pretende ser uma colocação protofeminista mas, antes, também uma representação do indivíduo ideal dentro de sua filosofia, ainda que no começo do filme não estivesse em sua total potencialidade. O arco da personagem na trama a conduz a uma jornada de auto-sacrifício ligada à moral que deve atingir, como se vê quando ela renuncia sua carreira no The Banner ou quando muito prontamente decide ajudar Roark na explosão de sua obra deturpada.

Ainda, à parte dos desígnios antropormorfizantes de Roark para com os edifícios, a arquitetura moderna em si se mostra como uma verdadeira entidade no filme. Ela, por exemplo, não pode ser dissociada da causa da moral tão íntegra de Roark ; ela acarreta a diferenciação entre os arquitetos – Peter Keating, arquiteto eclético, não compartilha moral de Roark – e gera conflitos, como a campanha de ataque ao edifício Enright House executada pelo jornal The Banner. Ela também influencia ações e gera diferenciações; portanto a tomamos como personagem, a Arquitetura Moderna.

É possível assimilar alguns encontros entre a representação de Francon e a representação da Arquitetura Moderna na trama, podendo a postura e as ações de Francon serem lidas como um meio por onde a Arquitetura Moderna se expressa. E isso não ocorre gratuitamente.

Ao longo do filme, a personagem de Francon defronta-se constantemente com um extasiamento à Arquitetura Moderna, esta que parece ter nascido de um gosto puro de Roark e triunfou através de sua moral inabalável. Francon nunca havia visto, ao menos materializada, obra com os valores tão íntegros que ansiava e, mesmo dissociada da figura de seu autor – e futuro amante – Francon já a cultuava. É como se Francon corporificasse, também, essa pureza ontológica da Arquitetura Moderna de Roark.

Enquanto portadora desse gosto natural elevado, Francon poderia se encaixar novamente nos moldes da narrativa tradicional que atribui à mulher graça e sensibilidade intrínsecas. Pode, também, ser lida como uma musa dentro da visão de Rand, portando tudo aquilo que é o ideal, mas dentro do limites que poderiam ser alcançados por uma mulher. Se Dominique Francon representa um dos indivíduos ideais de Ayn Rand, ela naturalmente porta o bom gosto.

Isto se esbarra à conformação do campo da arquitetura, que se erigiu através da manutenção deste ideário do gosto irredutivelmente natural e inerente aos bons arquitetos. Que por sua vez se esbarra na intenção da autora de constituir a figura de Roark como detentora desta grande gama de capitais (simbólico, intelectual e social) que o eleva a um patamar de mestre e sábio, ou melhor, criador.

Muito explicitamente, vemos que a construção do arco da personagem de Dominique Francon é totalmente submissa à figura de Roark. Nos parece como se, no filme, ela só existisse em função dele. E o rumo de suas narrativas se confluem nos momentos de ascensão e decaída: enquanto Roark não pode construir o que ele projeta, Francon não pode ficar com quem ela ama.

Neste sentido, mesmo tendo posturas díspares ao que se era esperado de uma mulher, Dominique Francon se apaixona por Roark e, ao longo do filme, atinge aquilo que Roark esperava dela para tê-la. Ela se desvincula das opiniões das massas e passa a agir por aspirações próprias, valorizando suas intenções individuais.

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Howard Roark. Captura de tela do filme

Há uma dúvida acerca da verdadeira intenção da autora na rendição contraditória de Francon a Roark, considerando que antes de conhecê-lo, ela se julgava incapaz de amar. Seria por amor ou por algo maior? Nos cabe fazer essa diferenciação.

A narrativa tradicional de ficção nos diria que mesmo a figura feminina mais excêntrica cumpriria seu curso natural de encontrar o amor de um grande homem, sendo este o meio de se chegar ao final feliz. A análise conjunta da construção da personagem, das questões do campo da arquitetura e da filosofia de Ayn Rand, por sua vez, nos diria sobre este poder de engendramento de capitais o qual a figura principal de Roark detém, e como essa qualidade de criador se manifesta nas relações.

E, então, nos cabe questionar como a autora e o diretor do filme se valeram dessa diferenciação, ou aproximação, entre amor e criador. É importante considerar que um dos principais meios de engendramento de capitais de Roark é a sua Arquitetura Moderna, atingindo através dela certo poder na sociedade enquanto a manipula dentro de sua moral.

Roark rege a Arquitetura Moderna. Mas, uma vez que também entendemos que Dominique representa uma parcela desta arquitetura, seja no gosto ou na moral, podemos assinalar parte desta submissão de Dominique a Roark a isso. Roark, então, atua como um divisor, tanto do campo da arquitetura quanto na vida de Dominique. A presença dele rege ambos.

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Roark em escritório. Captura de tela do filme

A narrativa se mostra bastante sexista neste sentido. Mas, mais, ela explicita muito das relações a partir das quais o campo se firmou quando do surgimento da arquitetura moderna. A introdução de Dominique na trama serviu como modo de legitimação da figura de Roark como uma grande influência. Ou seja, a personagem de Dominique serve à consolidação da imagem inexorável de Roark, o que diz respeito à reprodução deste imaginário da figura genial, tanto visto na historiografia da arquitetura moderna.

1:50:39. A última cena do drama se passa na construção do The Wynand Building, intitulado a estrutura mais alta do mundo, projeto de Howard Roark. Dominique Francon, agora Sra. Roark, vai de encontro a ele. O caminho, uma longa subida, é vencido por meio de um elevador de obras, e é uma jornada contemplativa para Sra. Roark, com uma vista emblemática deste novo monumento sobre Nova Iorque. A câmera se volta para Roark que, do topo do prédio acena para a amada, e se fecha nele. Roark venceu seus inimigos e o topo de seu prédio é seu pódio, o maior pódio possível a um arquiteto. E, como Gail Wynand cita, também o maior feito entre os homens.

A ascensão de Roark é marcada pela conquista da liberdade da concepção de suas ideias e de ter ao seu lado Francon. Com isso, a aproximação entre as alegorias, Francon e a Arquitetura Moderna, fecha seu ciclo. Este ciclo fica claro na narrativa diante da colocação destas personagens como subordinadas a Roark, com seus momentos de ascensão e decaída concomitantes. Ambos assumem suas purezas intrínsecas e não mais se vinculam às opiniões das massas. São figuras que se encontram a fim de corroborar a legitimação do arquiteto.

Referências bibliográficas

  • STEVENS, Garry. O círculo privilegiado: Fundamentos sociais da distinção arquitetônica. Tradução de Lenise Garcia Corrêa Barbosa, Editora Universal de Brasília, 2003.
  • WISNIK, Guilherme. Plástica e anonimato: modernidade e tradição em Lucio Costa e Mário de Andrade. Novos estud. - CEBRAP,  São Paulo,  n. 79, p. 169-193,  Nov.  2007.

Este ensaio é fruto do trabalho de mesmo título realizado para a disciplina de História da Arquitetura V, ministrada ao terceiro ano da graduação de 2020 da Associação Escola da Cidade pelo professor Ms. Pedro Beresin e professora assistente Sofia Borges

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Sobre este autor
Cita: Bruna Bonfim e Nara Albiero. "Alegoria e arquitetura moderna: uma análise do filme "Vontade Indômita"" 07 Jan 2023. ArchDaily Brasil. Acessado . <https://www.archdaily.com.br/br/993639/alegoria-e-arquitetura-moderna-uma-analise-do-filme-vontade-indomita> ISSN 0719-8906

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