O cinema revela por meio da cenografia uma vasta composição de cidades, tornando-se um meio interessante para discutir as suas transformações. Essa arte permite que diretores explorem ao máximo seus universos imaginativos, através de cenários montados, efeitos visuais e especiais e toda a composição da imagem. Em muitos filmes, diretores apresentam cidades futuristas, vivenciadas pelos personagens do enredo, que, por muitas vezes, se apresentam inteiramente novas aos nossos olhos. É através da busca do espectador de compreender e apropriar-se desses espaços cenográficos que a cidade se revela no cinema.
Para alguns alguns estudiosos, o cinema é, em primeiro lugar, formado por uma convicção utopista. Ainda que se entenda utopia como uma sociedade perfeita ou idealizada, seu sentido etimológico formando por ou e topos, significa um não lugar, ou lugar nenhum (ou: não e topos: lugar), sendo utopia uma prática de criar um novo lugar, sejam essas concepções desenhadas, projetadas ou filmadas. Dessa forma, a convicção utopista do cinema abrange lugares que entendemos como utópicos, que se caracterizam como uma sociedade em perfeito estado, e lugares distópicos, caracterizados por desordem, governos totalitários, escassez de recursos naturais e circunstâncias de vida intoleráveis. Situações que refletem diretamente nas moradias, nos espaços coletivos, nas atividades culturais, mercantis ou industriais: a cidade.
Quando refletimos sobre o futuro, a tecnologia é sempre um ponto em questão. Nas obras cinematográficas futuristas, os avanços tecnológicos podem indicar vantagens e contribuições para melhorias sociais e econômicas, como também a decadência desses fatores. Jogador Nº1, filme de 2017 dirigido pelo Spielberg revela uma cidade de 2044 em completa desordem econômica e social, onde a relação do homem com a cidade física está em evidente decadência no momento em que a sociedade decide passar maior parte do tempo em um mundo virtual. Em oposição à visão sombria do futuro, o diretor Brad Bird aposta em Tomorrowland - Um lugar onde nada é impossível (2015) numa posteridade onde tudo pode dar certo. Caso os seres humanos façam as escolhas adequadas, a cidade pode tornar-se ecologicamente eficiente, mais justa e humanista, se tornando uma espécie de sonho vivido por umas das personagens principais.
Elysium (2013), do diretor Neill Blomkamp, consegue expor essas duas realidades de forma bastante precisa, mostrando um contraste entre dois mundos, duas maneiras de vivenciar e compreender a arquitetura e a cidade. O filme apresenta a Los Angeles de 2154 superpopulosa, desordenada e pós-apocalíptica patrulhada por policiais-robôs cruéis e violentos. Vive-se uma pobreza generalizada causada pela degradação ambiental. Em meio a todo esse caos, uma pequena parte privilegiada da população, vive em Elysium, uma gigantesca estação espacial que forma um habitat artificial, onde vemos um espaço agradável, livre da fome, de violência, de ruínas e de tudo que assola o cenário da terra. Os dois espaços são um completo contraste, ao mesmo tempo que o diretor se mostra otimista através da tecnologia em relação à sociedade beneficiada, o urbano da cidade na terra se encontra sem humanização. Para o filósofo Luiz Felipe Pondé, não são as pessoas nem a aglomeração delas que humanizam a cidade, e sim parques e árvores, elementos que encontramos em abundância na cidade dos privilegiados no universo do filme.
A necessidade de pensar a forma que as cidades poderiam tomar num futuro em seus âmbitos sociais e concretos através do cinema não é uma iniciativa nova. Na década de 20, onde a cidade utópica no cinema ergue-se com mais força ainda no expressionismo alemão, Fritz Lang dirigiu Metrópolis (1927), que ficou conhecido por exibir uma das cidades mais relevantes e simbólicas do cinema. O filme nos apresenta uma megalópole de pontes longas, arranha-céus, aviões circundando edifícios, carros e máquinas. Leng teve como inspiração para a sua obra uma visita que havia feito recentemente a Nova Iorque, onde percebeu os seus arranha-céus e a dinâmica do espaço urbano. A cidade, que apresenta um sobredimensionamento exagerado edificado, foi pensada pelo diretor junto com os profissionais da cenografia Otto Hunte, Erich Kettelhut e Karl Vollbrecht, que executaram todo seu cenário em estúdios, a fim de dar vida e uma veracidade maior à cidade fílmica, pois se filmado no externo, as tecnologias da época não permitiriam tanta realidade como vemos na obra.
Nesse filme podemos perceber de forma clara como a cidade recebe um novo destaque se revelando como componente mais importante da composição, pois são as imagens da cidade que mais se acentuam. Um dos pontos chaves do filme trata da questão social, uma cidade repartida em duas metades: na superfície, a classe privilegiada vive a cidade e aproveita o bem-estar à luz do sol (pensadores), enquanto abaixo dessa superfície empregados trabalham para dar funcionalidade à cidade que vive à luz do dia (trabalhadores). Notamos assim, a obra de Lang aborda uma cidade no ápice da industrialização, dando uma grande importância à máquina, visto que os trabalhadores têm como função operá-las a fim de dar vida à cidade. A mestre em Arquitetura Ana Rodrigues comenta que Lang recebeu influências do contato que teve com arquitetura de vanguarda na elaboração do cenário de Metrópolis, onde fez referência a alguns projetos da época.
Sendo um dos primeiros filmes a abordar cidades futuristas, a obra de Lang influenciou diversos outros filmes. Ridley Scott nos faz mergulhar através de Blade Runner (1982) em uma cidade onde percebemos espaços em completa desordem em cada esquina da Los Angeles de 2019. O diretor de fotografia Jordan Cronenweth brinca com luzes, sombras, fumaça e chuva dando personalidade ao filme, nos fazendo imergir na sensação de caos urbano que a obra apresenta. Um esgotamento de espaços públicos, presença de verde, praças e de toda uma imagem motivacional para a vivência de uma cidade resume o cenário da obra. Mas, em contrapartida a esse pensamento, a cidade caótica de Ridley Scott é vivenciada em seus desordenados espaços urbanos. Vemos uma presença considerada de comerciantes comuns em calçadas, fazendo uso de veículos que percorrem a malha urbana da cidade. A Los Angeles de 2019 desenhada pelo cenógrafo Lawewnce G. Paull, mais parece um futuro antiquado ou um passado meio futurístico, se assim podemos dizer. Isso porque no cenário do filme percebemos uma mistura de estilos arquitetônicos: mescla-se edifícios com fachadas e carros voadores em telas de led para anúncios com colunas e construções clássicas. Em entrevista, o cenógrafo comenta que para começar a pensar na cidade de Blade Runner, teve como inspiração toda uma coleção arquitetônica que percorria da Art Deco ao Egito, do clássico ao moderno, de Gaudi a Frank Lloyd.
No livro Vida e Morte de Grandes Cidades (1961), Jane Jacobs afirma que quanto mais mesclada a atividade praticada nas calçadas e áreas urbanas todos os dias, mais interessante e seguro vai ser o convívio de pessoas na cidade. Seguindo esse pensamento, por mais que uma cidade se mostre visivelmente convidativa, se ela não apresentar um uso considerável de seus espaços urbanos, a relação das pessoas com a cidade não será de forma alguma mais interessante que na cidade visivelmente desordenada de Blade Runner.
Então, assim como arquitetos sugerem projetos com seus croquis, diretores de cinema sugerem mundos futuros habitados. Por meio dessa possibilidade e liberdade oferecida pelo cinema, essa arte é capaz de abrir nossos olhos para aquilo que não enxergamos no cotidiano urbano. Cineastas observam, estudam e imaginam o urbano, no que ele pode se transformar — em suas próprias visões, é claro — e quais as consequências disso no viver urbano através de suas narrativas. Por meio disso o cinema torna o invisível, visível.
O cinema não se restringe apenas a estudos e inventos da cidade futurista em sua concretude: edifícios, espaços públicos e malha urbana. Assim como os diretores de cinema externam suas visões na concepção de algumas cidades construídas, a abordagem de cidades baseadas em novas formas administrativas e organizações também é desenhada nos filmes. A série Divergente, conta como cenário a cidade de Chicago daqui a cem anos. Com uma arquitetura pouco conservada e parada no tempo, o filme nos traz uma nova organização: a sociedade é dividida em cinco facções para evitar quaisquer tipos de conflitos. Cada um desses grupos tem uma função dentro da cidade que, por meio de uma definição genética, buscam explorar as qualidades de cada indivíduo a fim de que se descubra em qual facção cada um se encaixa. E dessa forma essa nova sociedade interage entre si e com a cidade: cada grupo cumpre sua função (segurança, justiça, agricultura, caridade e ciência), e de maneira superficial se relacionam umas com as outras, uma vez que também residem em campos separados.
Estabelecendo uma nova forma de analisar o espaço ainda em projeto e imaginário, o cinema é uma arte bem representativa na percepção da arquitetura e do urbanismo. Imagens em movimento nos fazem sentir esses espaços construídos, diferente de um fotografia, por exemplo, ou qualquer outro tipo de arte que não nos permite “se locomover” entre ruas e edifícios, permitindo uma vivência a cidades inexistentes por meio da tela. Muitos diretores de cinema e urbanistas refletem sobre como viria a ser num futuro uma outra organização de cidade, com novos meios de vivenciá-las e novos traços arquitetônicos. Isso revela as preocupações e incertezas que o ser humano tem dos seus dias futuros, assim como lucidez e raciocínio diante do seu porvir.
Referências bibliográficas
- RODRIGUES, Ana Paula Alves. A Criação do Espaço Arquitetônico no Cinema Alemão dos Anos 20: O Gabinete do Doutor Caligari e Metropolis. Covilhã, out. 2012.
- CAÚLA, Adriana. A cidade utópica no cinema: a invenção de outros lugares. Revista de Urbanismo e Arquitetura. Bahia, 2006.
- LOUSA, António. Imagens em movimento: cinema e utopia. Arquitrabalhos. Dez. 2010.
- AFONSO, Adriana; ELOY , Sara. As visões futuristas no cinema: a morfologia da cidade futura nos filmes de Ficção Científica. Arq.urb, [s. l.], n. 11, p. 166-191, 2014.
