O objetivo deste texto é ampliar o relevante debate proposto no artigo de Marília Matoso, com o título É preciso repensar os cursos de arquitetura, publicado no ArchDaily em janeiro de 2023. De fato, repensar os cursos de arquitetura é uma tarefa não só necessária como também urgente. Contudo, acredito que essa discussão é indissociável dos debates sobre a profissão e o modo como formamos. Para além de tentar construir respostas, considero importante trazer mais perguntas que contribuam com a reflexão coletiva.
Analisando o caso brasileiro, dados levantados pelo Instituto Datafolha, por encomenda do CAU/BR, apontam que cerca de 93% das construções no país são realizadas sem contratação de profissionais de arquitetura. Por outro lado, as principais áreas de atuação dos arquitetos e urbanistas com base no Censo do CAU 2020 foram “Arquitetura de Interiores”, “Arquitetura e Urbanismo Concepção” e “Arquitetura e Urbanismo Execução” nessa ordem. Duas questões que se colocam são: como garantir que os arquitetos tenham o domínio das atividades que são, nesse momento, o cerne da atuação profissional, mas principalmente, como a formação pode contribuir para que a arquitetura alcance mais pessoas.
Nesse sentido, acredito que trazer novos temas seja necessário, mas insuficiente para a real atualização dos currículos nos cursos de arquitetura. Especialmente se esses temas estiverem desvinculados de uma clareza sobre a concepção e a intencionalidade. Há coerência, por exemplo, em incluir o debate sobre decolonialidade sem alterar nossos modos colonizados de lidar com o ensino e as formas de pensar e produzir espaços? Ou, é possível discutir meio ambiente ou sustentabilidade sem enfrentar o debate sobre as desigualdades econômicas, e as questões étnicas e raciais? Não é possível continuar fingindo que a arquitetura não tem nada a ver com isso.
Os cursos de arquitetura podem incluir uma formação voltada para o metaverso ou mesmo em construções em Marte, mas temos conseguido que os nossos egressos sejam capazes de pensar soluções viáveis para uma cidade média brasileira com tecido urbano fragmentado, ocupações dispersas e desenho orientado para carros? Do mesmo modo, não há dúvidas de que precisamos nos apropriar das novas tecnologias digitais, mas como vamos garantir em paralelo que todas as habitações do país tenham saneamento, depois de garantirmos que todas as pessoas tenham acesso a moradia digna? No Brasil faltam cidades inteligentes, mas faltam principalmente cidades.
Com base nisso, acredito que a reflexão sobre os cursos parte da definição dos elementos indispensáveis para a atuação arquitetos no século XXI. E o indispensável aqui pensado mais como uma formação densa sobre um conjunto delimitado de conhecimentos e habilidades, e menos como um desfile interminável de abordagens superficiais sobre todos os assuntos possíveis. As diretrizes curriculares nacionais, documento orientador para todos os cursos do país, definem um perfil generalista para o egresso. Contudo, cada curso de arquitetura tem a autonomia para estabelecer em seus projetos pedagógicos qual o viés da formação com base na análise do contexto em que a instituição está inserida. O currículo de um curso em uma cidade pequena no interior pode e deve formar um arquiteto diferente do curso em uma metrópole. Como também é possível que, na mesma cidade, um curso tenha ênfase na bioconstrução e outro privilegie a construção industrializada, mas que todas formem arquitetos com habilidades essenciais para compreender diferentes contextos e possibilidades.
O Brasil possui uma variedade enorme de contextos e de problemas que podem ser resolvidos com investimento em arquitetura, urbanismo e paisagismo, mas estamos formando arquitetos que saibam diagnosticar esses problemas? Acredito que o percurso formativo pode ser repensado de modo a aproximar os estudantes da realidade e da prática profissional. Cabe discutir sobre como o estágio obrigatório, por exemplo, se articula com as demais disciplinas e retroalimenta a formação dos estudantes. Outra possibilidade é pensar como a extensão, que recentemente se tornou obrigatória para todos os currículos, é utilizada na formação não apenas sobre arquitetura, mas sobre democracia, cidadania e justiça social.
A articulação com outros campos de conhecimento também pode ser discutida. Atualmente os cursos de arquitetura e urbanismo oscilam entre as artes, engenharias e ciências sociais aplicadas dependendo da instituição. Nos casos em que são faculdades ou institutos com relativa autonomia, há pouca ou nenhuma integração com outros cursos. Ao mesmo tempo, a arquitetura utiliza os conhecimentos da antropologia, da sociologia, do direito, da matemática, da física, da geologia, da filosofia, da geografia, da história e diversas outras áreas, mas as abordagens muitas vezes são o olhar da arquitetura sobre esses conhecimentos, o que parece resultar em uma formação muito voltada para si mesma.
Outro ponto importante é o papel docente e a formação de professores de arquitetura. Como na graduação não existem disciplinas de licenciatura e nos programas de pós-graduação em arquitetura e urbanismo os enfoques são a pesquisa e a atuação profissional, não existe formação docente específica para os professores de arquitetura. Por conta própria, os docentes desenvolvem meios de conduzir as disciplinas, muitas vezes repetindo o modo como foram ensinados. Esse é o modelo ideal? Quais são as outras possibilidades? Quais são as características que o docente precisa ter para atuar em uma formação que olhe para o futuro?
A todas essas questões podemos somar ainda itens como a carga horária e as modalidades de ensino. É preferível uma ampliação da carga horária mínima do curso ou uma redução com a necessidade de formação continuada e certificações com períodos para revalidação? Quais os limites e as possibilidades para o ensino à distância no curso de arquitetura? Nos últimos anos temos acompanhado o aumento progressivo do número de cursos de arquitetura e urbanismo sem conseguir definir uma estratégia de como o país vai se beneficiar desse corpo de profissionais.
Por fim, acredito que o debate sobre arquitetura deve ser ampliado ao máximo, para que alcance espaços além das universidades, organizações de arquitetos e empresas. Uma grande transformação no modo de pensar os cursos seria investir em meios para que essa discussão seja mais plural e democrática. É interesse da sociedade formar bons profissionais, pois somente assim todos terão acesso a arquitetura de qualidade.