Nas últimas duas décadas, o alcance do transporte público e a quantidade de passageiros em uma das maiores cidades do mundo, São Paulo, aumentaram, diminuindo a porcentagem de viagens realizadas por automóvel. Apesar disso, e apesar das restrições excepcionalmente rígidas a certos carros e caminhões durante o horário comercial, o congestionamento, conforme entendido convencionalmente, continua quase inabalável.
O padrão sugere que, embora a disponibilidade de transporte de massa por si só resolva muitos ou a maioria dos problemas de transporte das pessoas, não reduz necessariamente a taxa de congestionamento dos veículos particulares. Talvez isso só seja possível através de uma taxa de congestionamento.
São Paulo (SP) é o maior município das Américas, com 12 milhões de habitantes, ancorando uma área metropolitana de 22 milhões, a décima maior do mundo. A figura abaixo dá uma ideia de sua escala e economia, tradicionalmente industrial, mas agora principalmente voltada para serviços.
É representativa de uma nova classe de megacidades de países em desenvolvimento cujas populações cresceram rapidamente no século XX, mas se estabilizaram no século XXI, e que estão construindo infraestrutura de transporte para recuperar o atraso. Constitui um estudo de caso de modos de mobilidade e congestionamento de tráfego antes e depois das redes de trânsito se tornarem disponíveis.
No início dos anos 1960, SP já tinha fama de ter trânsito ruim e, nos anos 1990, os congestionamentos na hora do rush registravam centenas de quilômetros. Paulistas em toda a área metropolitana viajam de um ponto a outro 42 milhões de vezes por dia, em média, para trabalho, escola, socialização, e assuntos diversos.
A cidade se conecta ao resto do estado de São Paulo pela mais extensa rede de rodovias da América Latina, e mais de um milhão de carros chegam à cidade todos os dias. Engenheiros de tráfego municipais estimam que 3,8 milhões de veículos motorizados circulam ativamente dentro dos limites da cidade, enquanto o estado estima o número em 4,4 milhões.
No início, o congestionamento de veículos foi enfrentado com a adição e o alargamento de vias. Como em outros casos ao redor do mundo, porém, isso incentivou ainda mais o uso do automóvel, possivelmente agravando o problema.
As informações de tráfego em tempo real tornaram-se tão críticas que uma grande estação de rádio transmitia apenas relatórios de tráfego, mantendo um helicóptero no ar na maior parte do dia. Quando o aplicativo de trânsito em tempo real Waze (agora parte do Google) surgiu como uma ferramenta melhor, SP tornou-se um importante mercado inicial para ele.
A primeira linha de metrô foi inaugurada em 1974, mas foi expandida lentamente, enquanto os trens suburbanos tradicionais se deterioraram, registrando menos de 770 mil viagens diárias ainda em 1998.
Em 1996, as autoridades começaram a barrar a circulação de um em cada cinco carros todos os dias da semana na hora do rush, com base nos números das placas, em uma grande área conhecida como centro expandido. Surpreendentemente, isso teve pouco impacto sobre o congestionamento, pelas razões discutidas abaixo.
Somente no século XXI, com a economia brasileira mais organizada, com uma São Paulo menos lotada de migrantes e com o surgimento de novas abordagens, como parcerias público-privadas para financiamento do transporte público, as condições começaram a melhorar. Os quatro impulsos principais foram:
1) Construção de linhas de metrô e trens suburbanos, com melhorias e integração dos dois sistemas;
2) Prioridade para os ônibus, com centenas de quilômetros novos de faixas exclusivas, muitas vezes configuradas como Bus Rapid Transit e separadas das outras pistas;
3) Gestão de tráfego mais rígida, com sistemas de câmeras e radares e retirada da maioria dos caminhões pesados; e
4) Rezoneamento para favorecer o adensamento residencial ao longo dos corredores de transporte, desencorajar a oferta de estacionamento em novos edifícios e incentivar a mobilidade ativa.
Hoje em dia, o trânsito lento de São Paulo significa principalmente o movimento lento de carros e caminhões, não necessariamente de ônibus ou passageiros em geral. Um número crescente de pessoas se locomove com o transporte público mais rapidamente do que nunca.
O sistema ferroviário combinado hoje inclui 13 rotas, totalizando 377 quilômetros,sem contar com a construção de toda uma nova linha de metrô, a Linha 6-Laranja. Duas empresas estatais e uma privada operam os trens.
Em 2019, antes que a Covid-19 interrompesse os padrões de trabalho e transporte, os trens ultrapassaram a média de 6,5 milhões de viagens diárias. Isso fez de São Paulo a primeira cidade das Américas a superar os volumes combinados de metrô e trem da cidade de Nova York e sua área metropolitana, em 14%.
Além disso, São Paulo revisou seu Plano Diretor em 2014. A cidade flexibilizou o zoneamento, substituiu os requisitos mínimos de estacionamento por máximos e ofereceu incentivos fiscais aos incorporadores para adensar ao longo de corredores ferroviários e de ônibus.
Isso já começou a mudar o horizonte, com a construção de cerca de 124 milapartamentos compactos (de até 45 metros quadrados) dentro de 500 metros das estações de metrô ou trem, ou 300 metros dos corredores exclusivos de ônibus, entre 2014 e 2020.
O impacto de tudo isso na mobilidade é que o número de passageiros de metrô e trem em SP dobrou entre 1997 e 2017, de acordo com a pesquisa decenal origem-destino do estado. A combinação entre metrô e trem ganhou cinco pontos percentuais de participação modal nas viagens motorizadas no período, alcançando 16,3%. Os carros particulares perderam 6,7 pontos de participação.
BRT e outros corredores de ônibus
Enquanto isso, as principais tentativas da cidade para melhorar a situação na superfície envolvem faixas de ônibus e Bus Rapid Transit. Os ônibus públicos e escolares agora fornecem 15,8 milhões de viagens diárias em média, três vezes o volume da grande Londres, por exemplo.
Muitos deles estão nas linhas de Bus Rapid Transit (BRT), um sistema usado em todo o mundo, mas inventado em Curitiba na década de 1970. Os ônibus do BRT circulam não apenas em faixas especialmente marcadas, mas também em faixas fisicamente separadas, incluindo suas próprias vias elevadas e viadutos, de modo que o bloqueio por veículos não autorizados é raro.
Outro movimento para acelerar o fluxo de tráfego foi, contra-intuitivamente, reduzir os limites de velocidade. O impacto foi visto quando os limites de velocidade de São Paulo diminuíram em 2014. Os picos de velocidade caíram imediatamente, mas as velocidades médias, na verdade, aumentaram, porque o tráfego fluiu mais suavemente e com menos congestionamento, menos frenagem e reaceleração, e menos colisões. As mortes no trânsito na cidade caíram um quinto entre 2014 e 2016.
Por que o congestionamento permanece
Surpreendentemente, apesar de todas as melhorias ferroviárias e de ônibus e seu sucesso em transferir milhões de pessoas para o transporte público, apesar de impedir a entrada de caminhões de médio porte durante dias úteis e um quinto dos carros durante a hora do rush, e apesar das grandes expansões de rodovias, São Paulo ainda está entre as piores cidades do mundo com relação aos congestionamentos.
A empresa de tecnologia de tráfego Inrix classificou-a em quinto lugar no mundoem engarrafamentos em 2019, enquanto a empresa de mapeamento GPS TomTom classificou-a em 24.º lugar entre 416 cidades.
As medições da CET quantificam o congestionamento ao longo do tempo. A velocidade dos veículos fora das faixas de ônibus em 41 trechos medidos anualmente chegaram em 2019 ao ponto mais baixo em 40 anos no pico matinal e o segundo mais baixo no pico da tarde (meros 15,1 km/h).
Os carros não cabem
Como pode haver tão pouco progresso quando tantas ferramentas anticongestionamento já foram implantadas? As respostas estão na geometria, na demografia e na economia, particularmente no conceito de demanda induzida por espaço viário.
Começando pela geometria, a foto abaixo mostra sete pistas preenchidas em somente um dos lados da rodovia mais larga dentro dos limites da cidade, a Marginal Pinheiros. Problemas nesta rota frequentemente atrapalham as ambulâncias, atrasam as entregas e complicam os compromissos de negócios.
É surpreendente o quanto poucos indivíduos estão realmente causando a obstrução. Usando a faixa mais à direita (do ponto de vista do leitor) como parâmetro, se contam apenas cerca de 20 veículos desde a frente da imagem até o conjunto de câmeras no pórtico ao fundo.
Todos, exceto quatro, parecem ser carros de passeio, a maioria deles presumivelmente carregando uma única pessoa, o motorista. As outras faixas têm uma proporção maior de caminhões e ônibus, mas se houver 1,43 pessoas em média por carro (média do horário de pico de SP pela CET) e 84 carros visíveis, então cerca de 60% de todo o espaço está sendo ocupado por apenas cerca de 120 pessoas, não muito mais do que caberiam nos dois ônibus em primeiro plano.
Na questão demográfica, voltando às estatísticas citadas anteriormente, existem de 3,8 a 4,4 milhões de carros ativos em São Paulo. Se os motoristas optarem por dirigir até 5% a mais ou a menos em um determinado dia, eles adicionam ou subtraem de 190 a 220 mil carros da circulação.
Considerando a limitação vista acima, onde são necessários apenas 84 carros para ocupar um trecho substancial da via expressa mais larga da cidade, números dessa magnitude estressam o sistema. Em velocidade máxima, em vez de em um engarrafamento, esses mesmos carros obviamente ocupam várias vezes mais espaço ainda.
Grátis é um preço ruim
Na questão econômica, desde que Robert Moses construiu novas pontes na cidade de Nova York para aliviar o congestionamento nas antigas, mas descobriu que as novas logo congestionavam também — e até pareciam piorar o congestionamento nas antigas — os engenheiros de tráfego tiveram que lidar com a demanda induzida. O espaço rodoviário é um recurso valioso, especialmente em áreas movimentadas. Qualquer bem escasso dado de graça ou abaixo do preço de mercado tende a induzir um excesso de demanda.
É por isso que barrar boa parte dos veículos em determinados horários em São Paulo nunca teve o impacto esperado no congestionamento. As proibições diárias abrem o espaço que esses carros ocupariam, mas esse espaço fica disponível — de graça — para outros que de outra forma não teriam dirigido.
O espaço livre nas estradas é racionado pela fila e não pelo preço. Quando as ruas ficam congestionadas, alguns motoristas em potencial saem da fila. Eles optam por fazer compras mais perto de casa, almoçar mais perto do escritório, compartilhar caronas para deixar os filhos na escola ou realizar tarefas em conjunto para serem mais eficientes.
Eles podem caminhar ou andar de bicicleta para uma viagem curta, ou pegar o metrô, ou um corredor de ônibus nos horários de pico, mesmo que usem o carro nos fins de semana e à noite. Uma pesquisa de 2019 mostrou que apenas 3% dos residentes de São Paulo dizem que “nunca” usam transporte público.
Quando um novo espaço se abre e o tráfego flui, no entanto, as decisões começam a se inverter. As pessoas voltam à fila até que seu comprimento (ou seja, seu atraso) novamente desencoraje a escolha marginal de dirigir. Essas decisões diárias, viagem a viagem, são complementadas por decisões de longo prazo para escolher locais residenciais ou comerciais mais distantes, ou possuir mais veículos à medida que as estradas se expandem.
Voltando aos acontecimentos da década de 1990, essa dinâmica pode ser vista na notável proibição de 20% de todos os carros nos horários de pico a partir de agosto de 1996. Esse instrumento era tão severo que poucos duvidavam que ele reprimiria o uso do carro, mas na verdade ele mal teve efeito nos volumes de tráfego, conforme mostrado na figura abaixo.
O crescimento da noite estabilizou (o retorno do trabalho tende a ser mais flexível no horário do que a chegada da manhã), mas se retomou rapidamente e nunca mostrou nada perto de uma queda de 20%. Os volumes matinais aumentaram substancialmente logo no ano seguinte às novas restrições.
A queda subsequente em 1998 se parece com qualquer outro gráfico de produção econômica para o Brasil naquele ano, quando houve uma recessão, mas os volumes de carros novamente atingiram recordes históricos em 1999.
O quadro geral é de um equilíbrio quase natural. Os volumes aumentam (ou diminuem) para preencher o espaço disponível, ao menos em uma cidade como SP com um grande pool de automóveis limitados pelo congestionamento.
Isso também aparece no período mais recente. Nas últimas duas décadas, um espaço significativo nas vias arteriais foi retirado do acesso de carros para priorizar os ônibus. Como mostrado antes, as velocidades dos veículos atingiram o nível mais baixo de todos os tempos por volta de 2019, embora a tabela abaixo revele que muito menos carros estavam usando as principais vias arteriais do que em 1999. Juntar essas duas observações sugere que o uso do motorista nessas rotas caiu apenas para o exato ponto de congestionamento suportável.
A taxa de congestionamento como a solução ausente
Mas se mesmo o pacote paulista de expansão ferroviária, desobstrução de faixas de ônibus, zoneamento para transporte público, proibição de carros em horário de pico, remoção de caminhões e fiscalização automatizada do tráfego não diminuiu o congestionamento de automóveis, isso significa que não há solução? Não necessariamente.
O tráfego pode ser levado a fluir suavemente por meio de uma precificação, como visto nas poucas grandes cidades do mundo que cobram pedágio para dirigir na zona urbana — Milão, Londres, Cingapura e Estocolmo — e em algumas novas pistas expressas de rodovias nos EUA.
Isso é ainda mais verdadeiro para a precificação dinâmica, que sobe e desce de acordo com o grau de congestionamento, como na teoria apresentada pela primeira vez em 1963 pelo ganhador do Prêmio Nobel William Vickrey.
Pedágios urbanos podem ser implementados com mais facilidade em SP do que na maioria dos lugares, porque a cidade já monitora milhões de carros específicos todos os dias para aplicar a regra de rodízio de 20%, impor limites de velocidade e manter as faixas de ônibus abertas. Uma simples mudança nas regras, com poucas mudanças físicas na via, poderia transformar multas automáticas em cobranças de congestionamento.
Uma vez em vigor, as taxas de congestionamento têm conseguido apoio do público porque funcionam bem, mas a introdução sempre enfrentou enormes barreiras políticas. Os proprietários de carros — que tendem a ser mais ricos do que a média e certamente têm mais voz política no Brasil — naturalmente protestam contra um sistema tão diferente do que estão acostumados, e que equivale a um imposto direcionado a eles, apesar dos benefícios que também proporciona-lhes.
Se conseguir superar a questão política, São Paulo poderá colher os amplos ganhos de eficiência econômica de não colocar um preço tão baixo em um recurso escasso como o espaço viário urbano, o que faz com que a demanda constantemente exceda a oferta.
Enquanto a maioria das pessoas em SP hoje resolve seus problemas pessoais de trânsito simplesmente evitando o trânsito, no transporte público, a precificação do congestionamento pode permitir que toda a cidade flua de maneira mais suave e eficiente.
Os benefícios mais tangíveis iriam para aqueles que mais valorizam o espaço aberto em um determinado momento, seja um estudante atrasado para o vestibular, um caminhoneiro fazendo entregas urgentes ou um motorista de ambulância tentando alcançar vítimas de acidentes.
Em sua história de São Paulo, Roberto T. de Pompeu descreve a grande inauguração, em 1911, do Teatro Municipal de Ópera, que é até hoje um marco arquitetônico. Centenas de carruagens e cerca de 150 automóveis cercaram o novo teatro, bloqueando a área tão completamente que a estreia de Hamlet teve de ser adiada e o ato final cancelado.
Casais de vestido e smoking se recusaram a sair e andar na lama, e à 1h da manhã a bagunça ainda estava sendo desembaraçada. Pompeu cita isso como o primeiro engarrafamento moderno da cidade.
Mais de um século depois, São Paulo representa um estudo de caso da teoria do transporte público e do tráfego, com implicações globais. Uma questão é se uma megacidade em amadurecimento pode fazer o tráfego fluir livremente simplesmente oferecendo aos motoristas alternativas de transporte suficientes.
As evidências de São Paulo sugerem que a resposta é não. Pode ser a hora de o maior município das Américas testar a única abordagem que funcionou em outros lugares contra o congestionamento urbano em escala, a precificação do espaço viário.
Via Caos Planejado.