Arquitetura escavada: herança do passado e possibilidade de futuro

Nos primórdios da humanidade, cada comunidade se organizou instintivamente de acordo com as condições locais, os recursos disponíveis e seu modo de vida. Se, por um lado, grupos nômades criaram soluções para ocupar espaços temporariamente, muitas vezes carregando abrigos dentre seus pertences, por outro, os grupos que começaram a assumir características sedentárias também criaram formas de ocupar espaços disponíveis e desenvolveram técnicas construtivas que foram evoluindo até a atualidade.

Uma dessas formas de habitar, que passou a ser negligenciada pela arquitetura convencional com o passar do tempo, chegando a ganhar um status mais fantasioso na cultura popular, foi a ocupação de espaços cavernosos ou escavados. Essa é, porém, uma prática milenar que soma técnicas vernaculares para contornar as condições climáticas e amplia as possibilidades da arquitetura.

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Marco Antunes afirma que a ocupação de espaços cavernosos, sejam existentes, sejam escavados na topografia, surge como uma das primeiras apropriações do meio natural. Essa arquitetura se aproveita das formações geológicas naturais, subtrai e soma para criar vazios habitáveis. Ao trabalhar a terra e abrir fendas para iluminação natural ou empilhar rochas para fechar a entrada, as cavernas deixam de ser uma condição geológica e se tornam arquitetura.

Diferentemente da ocupação da superfície, na qual os projetos são regulados a partir dos elementos construtivos que são sempre adicionados uns nos outros, ocupar o espaço subterrâneo significa inverter a lógica e trabalhar com a subtração para atender às necessidades, atentas ao que é permitido pelo solo e sua estrutura natural. Segundo Alberto Arecchi, um dos mais antigos assentamentos escavados se encontra na China, no Vale do Rio Amarelo, e data do final do período neolítico.

Os estudos arqueológicos mostram a existência de diferentes tipologias de casas cavadas no solo que se organizam em aldeias. A tipologia denominada "bolso" é considerada a forma mais antiga de habitar chinesa, e trata-se de valas escavadas no chão com uma planta circular, tendo seu diâmetro interno (de 2,6 a 4 metros) menor do que o da superfície (de 1,8 a 3 metros), e profundidade de cerca de três metros. Internamente, identifica-se apenas o lugar da lareira, que era posicionada no centro ou ao longo da parede. 

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Modelo da Civilização do Vale do Rio Amarelo, na China. Image © Wikimedia Commons

Além da China, outros lugares também apresentam construções escavadas que se complexificaram com o passar do tempo. O que hoje conhecemos como Portugal, Espanha, Marrocos, Itália, Tunísia, Jordânia e Turquia, por exemplo, são territórios que guardam arquiteturas escavadas de diferentes períodos da história e com diferentes estruturas e organizações, de casas e abrigos a templos religiosos, covas e cidades inteiras. 

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Cidade subterrânea de Derinkuyu. Foto © Nevit Dilmen, via Wikimedia Commons. Licença CC BY-SA 3.0

Na região da Capadócia, Turquia, fica a cidade subterrânea de Derinkuyu, construída para fins de proteção durante o império bizantino. A cidade é composta por camadas que chegam a mais de 60 metros abaixo da terra, totalizando de sete a oito pavimentos, e abrigava até 20 mil famílias. Com ambientes de função variada, os espaços eram conectados por uma rede de túneis. Na Jordânia, por sua vez, encontramos uma estrutura subterrânea listada como Patrimônio da Humanidade pela UNESCO: a cidade de Petra, datada de 312 a.C., e monumentos como o El Khazneh, uma tumba cuja origem não encontra consenso entre pesquisadores. 

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El Khazneh na Jordânia. Image © Photo credit- Strocchi on VisualHunt.com

Outro tipo de ocupação vista na Península Ibérica são as Cuevas Aragonesas, na Espanha, que são casas escavadas em colinas, que aproveitam as camadas mais moles do solo para abrir seus espaços. O pé direito é definido pela distância entre a superfície e a camada mais dura de solo. As casas são implantadas seguindo as ruas, e apresentam um pátio frontal murado que faz a transição. As plantas contam com espaços iluminados naturalmente por janelas e até salas para o preparo de alimentos. Hoje em dia, essas estruturas foram incorporadas às cidades modernas e muitas delas funcionam como casas de veraneio. 

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Cuevas De Guadix, na Espanha. Image © Wikimedia Commons

As soluções técnicas, a tipologia e a organização de cada uma dessas experiências mostram que a arquitetura escavada foi, antigamente, uma resposta ao meio, à cultura e à sociedade da época. Construídas para encarar o clima extremo ou, ainda, como forma de proteção, essas estruturas assumiram com o passar dos século um status quase folclórico, excêntrico, que as transportou para o imaginário moderno fantasioso. De Star Wars e Hobbits a Game of Thrones, são muitas as referências populares que se apropriam desse tipo de arquitetura. 

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Ser de gravação de Star Wars Episódio 1. Image © Wikimedia Commons

Por outro lado, existe também um esforço cultural e técnico em resgatar essas práticas, tanto enquanto conhecimento como também em relação à forma arquitetônica, buscando mesclar a tecnologia construtiva dos dias de hoje com a estética e a história dessas arquiteturas. Ao mesmo tempo, há também um esforço em reconhecer as construções antigas como parte da cultura da humanidade, colocando-as em evidência como destinos turísticos e reconhecendo-as como evidências históricas. Há, ainda, um movimento recente que valoriza a arquitetura feita com terra e técnicas vernaculares, que enxerga nesta uma possibilidade sustentável de construção e que coloca a arquitetura escavada simultaneamente em nosso passado e nosso futuro.

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Sobre este autor
Cita: Giovana Martino. "Arquitetura escavada: herança do passado e possibilidade de futuro" 01 Mar 2023. ArchDaily Brasil. Acessado . <https://www.archdaily.com.br/br/996108/arquitetura-escavada-heranca-do-passado-e-possibilidade-de-futuro> ISSN 0719-8906

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