No dia 13 de janeiro, a Prefeitura de São Paulo, por meio da Secretaria Municipal de Urbanismo e Licenciamento, publicou a minuta prévia do projeto de lei da revisão intermediária do Plano Diretor Estratégico (PDE), o principal instrumento de planejamento e orientação do desenvolvimento urbano da cidade. Na minuta, que está disponível para consulta pública e contribuições da sociedade civil, de forma online, até 17 de fevereiro, o aspecto que mais tem gerado controvérsia se refere à alteração dos parâmetros que definem a quantidade de vagas de garagem em novos empreendimentos habitacionais próximos às infraestruturas de transporte público, como estações de metrô e trem, e corredores de ônibus.
Dada a relevância do tema, o Laboratório Arq.Futuro de Cidades do Insper publicou, no dia 23 de janeiro, uma nota técnica sobre os novos limites para vagas de garagem incentivadas no entorno do transporte público previstos na minuta.
O estudo descreve a importância da questão das vagas de garagem no planejamento urbano, analisa a proposta de alteração das regras atuais e apresenta projeções sobre as implicações dos novos critérios sugeridos na minuta. A nota é assinada pelos pesquisadores Adriano Borges Costa, Evandro Luis Alves, Sérgio Avelleda e Joyce Reis Ferreira da Silva.
Para Costa, uma das principais inovações do Plano Diretor de São Paulo, aprovado em 2014, foi justamente o estabelecimento das áreas no entorno da infraestrutura de transporte público com parâmetros construtivos específicos para promover o adensamento populacional, bem como a restrição do número de vagas de garagem para incentivar o transporte público.
“Foi um grande avanço. O Plano Diretor anterior, de 2002, exigia um número mínimo de vagas de garagem. Já o de 2014 inverteu essa lógica e definiu limites máximos de vagas que seriam incentivadas pela regulação urbana”, diz Costa.
Ao regular o número de vagas de garagem nos empreendimentos próximos ao transporte público, o que se pretende é que as unidades habitacionais com menos vagas sejam demandas por moradores dispostos justamente a utilizar menos o automóvel.
Mais usuários morando próximos às estações e aos corredores incentivaria o transporte coletivo, trazendo uma série de benefícios relacionados à redução de congestionamentos, emissões, acidentes de trânsito e saúde.
Atualmente, nos chamados Eixos de Estruturação da Transformação Urbana — regiões demarcadas na cidade ao longo dos sistemas de transporte coletivo de alta e média capacidade —, a área de até uma vaga de garagem por unidade habitacional não é contabilizada como computável para o cálculo da outorga onerosa (o valor que precisa ser pago à prefeitura para construir acima do limite básico da cidade).
A média de vagas por unidade habitacional na capital paulista já vinha diminuindo e essa tendência de queda se acelerou nos últimos anos — em 2021, o número de vagas por unidade lançada foi um terço do registrado em 2009, mostra o estudo realizado pelo Laboratório.
O mercado imobiliário se adaptou às regras do PDE e encontrou saídas legais para atender à demanda de moradores de alta renda por habitações maiores e com vagas de garagem. As incorporadoras passaram então a criar projetos com apartamentos grandes e muito pequenos no mesmo empreendimento.
“Foi um mecanismo que o mercado imobiliário encontrou, sem infringir a lei. O resultado foi o crescimento brutal da oferta de studios sem vagas de garagem no entorno dos Eixos”, observa Costa. “A dúvida é se vai haver demanda para tantos apartamentos pequenos.”
Regra mais complexa e ineficaz
A minuta publicada pela Prefeitura de São Paulo busca reduzir os incentivos para a construção de apartamentos muito pequenos com a finalidade de permitir a construção adicional de vagas de garagem. A proposta apresentada cria duas opções: o empreendedor pode escolher entre a regra antiga, que era uma vaga por unidade habitacional, desde que tenha no mínimo 35 metros quadrados, ou, alternativamente, uma vaga para cada 70 metros quadrados de área construída computável.
“Na prática, a proposta apresentada cria uma regra mais complexa, com um efeito pouco significativo no mercado”, afirma Costa. A dificuldade de entendimento da nova regra, aliás, gerou na mídia, em um primeiro momento, a leitura de que haverá um grande aumento no número de vagas de garagem em prédios perto do metrô e dos corredores de ônibus.
No entanto, conforme os cálculos realizados na nota técnica pelos pesquisadores do Laboratório Arq.Futuro de Cidades do Insper, considerando diferentes cenários, o aumento no número de vagas próximas ao transporte público será tímido: no máximo 7% em relação aos limites atuais.
Vale notar que essas estimativas foram feitas com a premissa de que não ocorram alterações nos atuais coeficiente de aproveitamento (relação entre a área edificável e a área do terreno) e cota parte máxima (que define o número mínimo de unidades habitacionais no terreno) vigentes nos Eixos.
“Caso a Câmara venha a propor uma alteração nesses parâmetros, aí sim a nova regra poderá levar a um boom de vagas próximas ao metrô”, pontua Adriano. “Ou seja, a prefeitura abriu um flanco para a Câmara fazer uma alteração que pode gerar impactos muito negativos para a cidade.”
Possíveis alternativas
A nota técnica do Laboratório cita duas alternativas à proposta contida na minuta da prefeitura. Uma delas é simplesmente manter a regra antiga de uma vaga por unidade habitacional, mas excluindo os apartamentos com menos de 35 metros quadrados, e desse modo retirando em parte os incentivos à proliferação de studiosna capital.
A segunda alternativa seria a contagem integral de áreas das vagas de garagem no cálculo da área construída computável, que é considerada no cálculo do coeficiente de aproveitamento. “Hoje é mais barato um apartamento com uma vaga de garagem a mais do que com um quarto a mais. Só que um quarto a mais aumenta a densidade populacional, o que é desejável perto dos Eixos, enquanto uma vaga a mais só aumenta o congestionamento na cidade”, sublinha Costa.
Contudo, ele pondera que para considerar a área de toda vaga de garagem como computável seria necessária uma revisão mais ampla dos demais parâmetros vigentes nos Eixos. “Seria a maneira correta de precificar a vaga de garagem, corrigindo distorções das regras atuais, porém para avançar nessa proposta é necessário fazer um estudo específico sobre o tema”, analisa.
Singapura é um exemplo de metrópole que incluiu as vagas de garagem na área computável para promover o adensamento com incentivo ao transporte coletivo. Já Curitiba trilhou outro caminho. Desde que começou a implantar, de forma pioneira, seus corredores de ônibus (bus rapid transit, ou BRT), na década de 1970, a capital paranaense viu prédios de grande porte se multiplicarem no entorno dessas áreas.
O resultado? “O entorno dos corredores de BRT, que conta com boa infraestrutura de comércio e serviços, acabou atraindo famílias de alta renda que não estão dispostas a usar o transporte público. Hoje, há nessas áreas apartamentos com mais vagas de garagem do que em regiões não servidas por BRT, o que é um dissenso em termos urbanísticos”, diz Costa.
Curitiba é atualmente a capital com maior taxa de motorização do Brasil. “Isso mostra que a cidade, apesar de ser uma referência em transporte e planejamento urbano, fez alguma coisa de errado.” O erro, no caso, foi promover o adensamento urbano sem regular a oferta de vagas de garagem nas áreas que dispõem de infraestrutura de transporte público. Com isso, não foram atraídos para essa região moradores que se beneficiariam do sistema de mobilidade urbana existente.
Leia a nota técnica sobre os novos limites para vagas de garagem incentivadas no entorno do transporte público previstos na minuta de lei da Revisão Intermediária do Plano Diretor Estratégico (PDE) de São Paulo.
Veja também a nota técnica produzida pelo Observatório do Plano Diretor do Centro de Gestão e Políticas Públicas do Insper.
Via Caos Planejado.