O modernismo no Brasil foi moldado por diversas faces e concepções ligadas ao progresso e, no âmbito da arquitetura, uma das linguagens estéticas utilizadas para tal foram os painéis compostos por azulejos, como em obras dos artistas Athos Bulcão, Cândido Portinari e Burle Marx.
Na região norte, mais precisamente no Estado do Pará, o movimento moderno chega com adaptações aos padrões locais, com o uso amplo de platibandas encobrindo os telhados, jardins utilizando plantas regionais, esquadrias em madeira, fachadas em lajotas cerâmicas, entre outros. Além disso, engenheiros e arquitetos da época, como Ruy Meira e seu sobrinho Alcyr Meira, foram responsáveis pela composição de diversos murais na região, utilizando azulejos inteiros e em cacos.
É nesse contexto, entre as décadas de 40 e 60 do século XX, que nasce o “Lado B do modernismo paraense” (COSTA et al, 2014), conhecido como Movimento Raio-que-o-parta. Uma apropriação não-erudita das simbologias do modernismo nas residências de grupos que não dispunham de recursos suficientes para a contratação de arquitetos e engenheiros, e que almejavam sua inserção nos signos do novo estilo oficial brasileiro e de status da elite.
A manifestação desse movimento, se deu por meio do uso de cacos de azulejos coloridos em fachadas, na maioria das vezes nas platibandas, compondo formas geométricas como raios, setas, formas de animais, elementos da natureza, símbolos religiosos, entre outros. Estudos apontam que, devido ao estado precário de conservação da estrada Belém-Brasília na época, muitos azulejos acabavam sendo quebrados durante o transporte. Seus cacos eram vendidos a um custo menor, sendo adquiridos por famílias no intuito de compor uma “decoração moderna”.
Dessa forma, basta andar pelas ruas da cidade de Belém e de diversos municípios do Pará para se deparar com os cacos e cores do Movimento Raio-que-o-parta, que não se limita à uma arquitetura popular, tratando-se de uma manifestação cultural por parte de uma população com anseios de se inserir ao moderno, se tornando um estilo presente no imaginário da população paraense.
A arquiteta Raquel Rolnik, em seu livro “O que é cidade?”, fala sobre a memória coletiva presente nos espaços e a importância da sua preservação quanto registro de vida social, pois existe uma força cultural e um valor social em se preservar a história. Dessa forma, quando se adentra em uma cidade, a arquitetura daquele espaço nos conta uma história, uma forma de identificar o passado e o agora.
No últimos anos, o estilo raio-que-o-parta, apesar do seu valor cultural, tem sofrido recorrentes apagamentos de suas características por meio de pinturas por cima dos azulejos, retirada dos mesmos ou a reconstrução completa das fachadas das residências. Intervenções que rompem com a historicidade da arquitetura regional paraense.
A partir da inquietação dessa situação, no ano de 2020, as amigas Elis Almeida, Elisa Malcher e Gabrielle Arnour, à época estudantes de Arquitetura e Urbanismo, resolveram se unir para dar início a um processo de mapeamento e catalogação dos exemplares de residências Raio-que-o-parta existentes na cidade de Belém, dando origem à um perfil no Instagram (@rederaioqueoparta) que reúne um acervo colaborativo de imagens dessas residências e informações sobre o movimento.
Atualmente, o projeto “Rede Raio-que-o-parta” tem como proposta tecer conexões através de uma rede de pessoas que perpetuam o movimento, sendo eles os moradores dos raios, artistas, arquitetos, designers, entre outros, que utilizam do símbolo como memória para produção por meio de diversas expressões artísticas, com o propósito de fomentar a discussão do tema relacionado à estética, sustentabilidade, patrimônio e memória.
O objetivo da Rede, para além da criação de um acervo, é de disseminar sobre o Movimento Raio-que-o-parta e a importância dele para a história, cultura e memória coletiva da região, por se tratar de um assunto ainda pouco abordado na academia e por ainda não existir qualquer tipo de política pública de preservação para esse tipo de edificação. Partindo dessa ideia, atualmente a Rede está criando uma cartilha informativa sobre o movimento e vem realizando oficinas, rodas de conversas e formações sobre o estilo.
Como recentemente, em ação junto ao Projeto Minerva, pertencente à organização sem fins lucrativos Enactus da Universidade Federal do Pará (UFPA), que tem por objetivo capacitar mulheres na construção civil, nesse caso agregando a sustentabilidade aos seus serviços, visando o uso de azulejos avariados que são descartados em obras e lojas de materiais de construção, para a composição de murais Raio-que-o-parta, bem como a qualificação das participantes para a conservação de fachadas já existentes e deterioradas.
Dessa forma, a Rede, junto de seus colaboradores, tem como finalidade gerar o pertencimento da população para com os raios tão presentes no dia-a-dia dos paraenses e, assim, tentar amenizar os efeitos das descaracterizações dessas residências.
Para ver mais imagens do movimento Raio-que-o-parta, conhecer a Rede Raio-que-o-parta e colaborar com seu trabalho, clique aqui.
REFERÊNCIAS
- CARDOSO, Andréia Loureiro. A valoração como Patrimônio Cultural do “Raio que o parta”: expressão do Modernismo Popular, em Belém/PA. Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, Rio de Janeiro, 2012.
- CARVALHO, Ronaldo Marques de. MIRANDA, Cybelle Salvador. Dos mosaicos às curvas: a estética modernista na Arquitetura residencial de Belém. II Seminário DOCOMOMO NO/NE, Salvador, 2008.
- COSTA, Laura Caroline. PAMPLONA, Karina. MIRANDA, Cybelle S. “Raio que o parta”: O lado b do modernismo paraense. III Encontro da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-graduação em Arquitetura e Urbanismo, São Paulo, 2014.
- COSTA, Laura da. Raio que o Parta! Assimilações do modernismo nos anos 50 e 60 do século XX e seu apagamento em Belém (PA). Tese de mestrado. Belém, 2015.