Em 1906, um forte terremoto atingiu São Francisco, na Califórnia. O choque inicial danificou edifícios em toda a região. Porém, o pior estava por vir, incêndios surgiram em prédios desabados, em alguns casos por canos de gás quebrados.
Nos quatro dias seguintes, uma conflagração varreria mais da metade da cidade, consumindo mais de 4,7 milhas quadradas no centro da cidade, destruindo 28.188 prédios, matando mais de 3.000 pessoas pela contagem oficial e deixando entre 227.000 e 300.000 pessoas desabrigadas (de uma população total de 410.000).
Foi um evento horrível que provocou mudanças no código de construção e nos requisitos de segurança contra incêndio para garantir que nunca aconteça novamente. Também serve como um experimento natural esclarecedor.
O autor James Siodla, professor de Economia na UC Irvine, usa a natureza um tanto aleatória de quais propriedades queimaram ou não no limite da destruição para observar o uso atual da terra mais de cem anos depois.
A conclusão principal é que, mesmo considerando outros fatores, os lotes que queimaram são hoje usados com mais intensidade — prédios maiores, mais casas, mais comércio — do que os lotes que não queimaram. Hoje a cidade provavelmente é maior, mais rica, abriga mais pessoas e assim por diante do que se não tivesse queimado. Como poderia ser este o caso?
O artigo destaca algo que meio que intuí do meu trabalho como incorporador, mas não tinha uma maneira completa de pensar sobre isso. Edifícios existentes (que estão aptos para uso) têm muito valor. O valor do edifício em seu uso atual é adicionado ao valor do terreno caso você queira comprar aquele terreno e construir algo maior.
Portanto, um terreno com uma construção apta para uso vale muito mais do que um terreno semelhante sem construção. Se você deseja construir um novo prédio, precisará de um prédio muito maior, ou mais lucrativo, para cobrir o preço mais alto do terreno com um prédio. Como diz Siodla:
“Como a durabilidade dos imóveis torna caro para incorporadores se adaptarem às mudanças nas condições econômicas, padrões deficientes de uso da terra podem surgir e persistir ao longo do tempo… cidades prósperas experimentam uma barreira substancial para redesenvolver e mudar o uso da terra na forma de capital durável”.
À medida que as necessidades de uma cidade mudam (por exemplo, a demanda esmagadora de SF por habitação e a consequente crise do custo de moradia), o fato de que todas as casas unifamiliares e sobrados existentes são bastante valiosos (e cada vez mais) é uma enorme barreira para reconstruir a cidade com um novo padrão de uso do solo (prédios de 6 andares etc.) que seria uma resposta racional à demanda por habitação.
Desta forma, o sucesso de uma cidade (o valor de seus edifícios) pode ser uma grande barreira para o redesenvolvimento. Os construtores ganham sua renda com a diferença entre o valor das propriedades existentes e o desenvolvimento futuro. Se o que está presente hoje é valioso, é muito menos provável que seja demolido para construir o próximo incremento de intensidade.
Disrupção e o Ecossistema de Clímax
Antes de trabalhar como planejador ou incorporador, me formei como geólogo e ecologista de campo. Uma das grandes lições da ecologia dos ambientes selvagens nos últimos cem anos é a importância de eventos destrutivos (incêndios, furacões, etc.) na saúde dos ecossistemas naturais.
Temos um modelo simples de como os ecossistemas mudam ao longo do tempo, começando como pastagens, dando lugar a arbustos, depois árvores menores, depois árvores grandes e, por fim, a “floresta clímax”.
Mas aprendemos que é um pouco mais complexo do que isso e a disrupção está constantemente mudando a floresta, criando novos nichos ecológicos e oportunidades. De fato, os ecossistemas que são protegidos de disrupções regulares tornam-se frágeis e suscetíveis a uma devastação muito maior quando a disrupção ocorre.
Um exemplo particularmente trágico disso são as florestas ocidentais da América: depois de décadas suprimindo pequenos incêndios que historicamente queimavam o excesso de material combustível, quando os incêndios ficaram fora de controle, queimaram mais e por mais tempo.
Árvores que teriam sobrevivido a um incêndio menor, morrem em um grande, sementes que normalmente emergiriam das cinzas são destruídas pelo fogo e assim por diante. Desde então, recuperamos o conhecimento de que muitas sociedades pré-colombianas praticavam suas próprias queimadas controladaspara promover uma ecologia saudável, e animais e plantas que forneciam alimentos e outros bens e serviços.
A disrupção leva à regeneração. Se nada quebrar, há pouco espaço para coisas novas crescerem. Esta é uma lição dolorosa, mas esperançosa. A perda é necessária para uma nova criação. E faz sentido olhar para a história das cidades: muitas vezes elas são queimadas, inundadas, atormentadas ou arrasadas pela guerra… e principalmente elas voltam, recriando-se de novas maneiras adequadas aos seus novos desafios.
As cidades são sistemas complexos, adaptativos e em evolução — como uma floresta ou um recife de coral. Até Hiroshima, destruída pela primeira bomba atômica, voltou a crescer, mais próspera do que antes.
Por que não a renovação urbana?
Nas décadas de 1950 e 1960, agências de planejamento, engenheiros e incorporadores empreenderam o que talvez seja a maior transformação voluntária em massa das cidades americanas sob o nome de “Renovação Urbana” (Urban Renewal).
Nesse ponto, após décadas de depressão e guerras mundiais, as cidades americanas estavam cansadas, lotadas e em péssimo estado. Por muitas razões: hipotecas subsidiadas pelo governo federal, uso de automóveis em massa, rodovias interestaduais financiadas pelo governo federal, fuga de brancos com motivação racial e muito mais, as cidades americanas estavam perdendo população e prosperidade para novas comunidades suburbanas.
Na tentativa de “renovar” as cidades, planejadores e engenheiros nivelaram bairros para construir rodovias urbanas, estacionamentos, conjuntos habitacionais públicos, arenas esportivas, centros cívicos e shoppings.
Aqui temos um nível de destruição que não iguala o incêndio de São Francisco, mas certamente o terreno está sendo limpo. E, no entanto, na maioria dos casos, as áreas que foram submetidas à renovação urbana foram reurbanizadas em densidades mais baixas do que antes, muitas vezes se degradaram novamente, foram objeto de investimentos públicos cíclicos e decadência, e assim por diante. O que há na devastação da renovação urbana que a torna diferente da devastação do terremoto e do incêndio em São Francisco?
Vejamos as condições no terreno quando São Francisco se reconstruiu após o incêndio de 1906:
- A cidade estava passando por um boom econômico antes do incêndio. A elite cívica e empresarial acreditava que a cidade deveria crescer e se tornar mais próspera.
- Não havia regulamentos de zoneamento que controlassem a intensidade do redesenvolvimento.
- Não havia um Masterplan para a reconstrução. Na época da reconstrução, havia um esforço para reorganizar a cidade — criando ruas mais largas, revisando os loteamentos etc. Mas com a demanda extrema para continuar e reconstruir, a maioria dessas grandes ideias foi descartada.
- Por causa da história da cidade, havia muitos pequenos lotes de terra.
- Essas propriedades estavam distribuídas entre diversos indivíduos e empresas privadas.
- Automóveis particulares não existiam, então não era imperativo encontrar amplo espaço para estacionamento fora da rua nem limitar a população geral por causa da preocupação com o congestionamento das ruas.
Em contraste, durante o período de renovação urbana:
- A maioria das cidades estava passando por um colapso econômico à medida que empregos e residentes ricos fugiam para os subúrbios subsidiados que estavam sendo construídos em toda a América. As elites cívicas e empresariais tentavam reverter essa tendência. A ideia era administrar o declínio com foco na eliminação da “praga” dos bairros mais pobres e com pior qualidade de habitação.
- Os regulamentos de zoneamento foram amplamente adotados e regulamentaram a intensidade do desenvolvimento privado, muitas vezes exigindo uma separação estrita de usos e densidades próximas às dos subúrbios.
- Os planos de renovação urbana envolviam Masterplans de redesenvolvimento de cima para baixo (top-down).
- A demolição em larga escala de bairros pegou milhões de pequenos lotes e os combinou em um número muito menor de megaquarteirões.
- A propriedade privada foi transferida para cidades, agências de redesenvolvimento ou incorporadores institucionais.
- A propriedade do carro era onipresente e valorizada. Esperava-se que todas as propriedades tivessem estacionamento privado fora da rua para todos os usuários, e as preocupações com o congestionamento levaram a limites estritos na densidade geral.
Juntos, acho que esses temas emergem:
Olhando dessa forma, é mais fácil ver que, para uma cidade ser “antifrágil”, para voltar de desastres e perturbações mais forte do que antes, ela precisa adotar as mesmas lições que sistemas ecológicos saudáveis.
São Francisco em 1906 mostrou o que uma cidade forte pode fazer deixando muitas mãos moldarem a cidade, deixando a criatividade crescer a partir das complexas interações da vida cotidiana, colocando as pessoas e a esperança no centro de sua visão.
E quando você olha para os destroços deixados pela renovação urbana em muitas cidades americanas, deve entender essas áreas arruinadas como algo semelhante a cicatrizes no tecido urbano. Simplesmente construir grandes edifícios nos superblocos que criamos não atenderá à variedade de condições necessárias para um crescimento saudável.
Pense em dividir grandes parcelas; vendendo para empreendedores privados, abrindo mais espaço para ideias e ações individuais — mais pequenas apostas. As cicatrizes da renovação urbana não são apenas os prédios perdidos, é toda a ecologia que deu suporte a esses prédios.
Quando um ecossistema é devastado, seja por desastre natural, ganância ou descuido humano, não conseguiremos recuperar a “floresta clímax”. Ela recomeçará no início da sucessão, construindo as plantas, a fertilidade do solo, a comunidade animal e assim por diante. Um ecossistema saudável, rico e diversificado pode voltar, mas leva tempo.
Espero que agora, duas gerações após a renovação urbana, possamos levar a sério o plantio de ervas daninhas e arbustos nas cicatrizes de nossas cidades e reconstruí-las lentamente. E se acertarmos… a boa notícia do incêndio de São Francisco é que podemos tornar nossas cidades ainda melhores do que antes.
Via Caos Planejado.