A moradia adequada, e tudo que a envolve de maneira mais ampla, é um dos princípios essenciais da humanidade, estabelecido pela Declaração Universal dos Direitos Humanos. No entanto, segundo estatísticas da Organização das Nações Unidas (ONU), 150 milhões de pessoas vivem em situação de rua no mundo, e 1,6 bilhão vive sob condições inadequadas de habitação. A crise habitacional é uma problemática multifacetada e enfrentada de diferentes formas e escalas por muitas cidades, em diversos países e continentes, e um de seus aspectos mais difíceis e complexos é justamente a privação desse direito básico a certas pessoas, de diversas maneiras e por diferentes razões.
A arquitetura e o urbanismo se relacionam intimamente à essa questão, e têm desempenhado um papel fundamental tanto no que diz respeito ao desenvolvimento de soluções e melhorias para a situação, quanto em infelizes tentativas de agravamento do problema, prejudicando ainda mais a vida de milhares de pessoas já tão vulneráveis e fragilizadas.
São muitas as razões que podem levar um ser humano a viver em situação de rua, seja sozinho ou junto à sua família, e essas questões estão frequentemente relacionadas a outros marcadores sociais como gênero, raça e sexualidade. A pobreza, a dificuldade de acesso e manutenção de uma moradia, problemas de saúde mental, variados tipos de dependência química e a falta de apoio familiar são alguns dos principais fatores que contribuem para esse cenário. Num panorama mais amplo, crises como a da pandemia da Covid-19, crises ambientais e crises políticas também contribuem para o agravamento dessa problemática. A falta de moradia denuncia não apenas uma falha do Estado em garantir o acesso a esse direito tão fundamental, de maneira adequada para todos, mas também se associa à violação de outros direitos básicos como saúde, segurança, educação, privacidade e dignidade, afetando diversas esferas da vida de uma pessoa.
No que concerne à arquitetura e ao urbanismo, essas instâncias atravessam o cotidiano e a dinâmica dessa parcela da população de maneira incontornável, de diferentes modos e em diferentes escalas. A moradia, em suas variadas tipologias, é um dos elementos mais importantes e simbólicos da profissão, e a ineficiência do Estado em garantir uma habitação adequada para todos não deixa de perpassar este âmbito profissional. Os espaços públicos também são elementos significativos nesse contexto, uma vez que abrigam a maior parte das atividades dos moradores de rua como comer, dormir, socializar, caminhar e até mesmo fazer suas higienes básicas. Assim, elementos como bancos, calçadas, marquises, parques e praças são alguns exemplos de espaços que, muitas vezes, são apropriados por essas pessoas, para diferentes fins e em diferentes períodos do dia, para desempenhar suas necessidades cotidianas. Diversos arquitetos já desenvolveram iniciativas que buscaram atenuar alguns dos problemas enfrentados em alguns centros urbanos, como em Los Angeles, Nova York e Londres, reiterando o vínculo entre essa questão habitacional e a atuação da profissão.
No entanto, estigmatizada, discriminada e cercada de preconceitos, as pessoas em situação de rua costumam ser frequentemente tratadas com violência e com políticas agressivas, o que inclui as urbanas, que violam seus direitos ao invés de assegurá-los. No período mais recente, é possível localizar diversas ações, em várias cidades, que buscam cercear e dificultar o acesso e permanência dessa parcela da população nos espaços que, teoricamente, deveriam ser públicos e de usufruto coletivo, e que aos poucos vão deixando de ser inclusivos para tornarem-se exclusivos. O termo arquitetura hostil vem sendo amplamente utilizado para designar uma série de medidas e barreiras urbanas que vêm sendo implementadas em muitos espaços públicos, com o intuito de inibir sua apropriação e afastar as pessoas. Bancos com divisórias e formatos desconfortáveis, muretas acopladas com pinos metálicos, grades, cercas elétricas e pedras pontiagudas embaixo de viadutos são alguns exemplos de estratégias que, infelizmente, tem feito parte da realidade de muitas cidades, levantando debates em muitos setores da sociedade.
"Nossos projetos arquitetônicos têm muitas intervenções de hostilidade e pouquíssimas de hospitalidade" —Padre Julio Lancelotti
No Brasil, a discussão ganhou grande visibilidade a partir de fevereiro de 2021, quando o padre Julio Lancelotti, coordenador da Pastoral do Povo de Rua da Arquidiocese de São Paulo, demoliu com uma marreta os pedregulhos assentadas pela prefeitura de São Paulo embaixo do viaduto Dom Luciano Mendes de Almeida, para inibir a utilização e permanência dos moradores de rua no local. Desde então, a questão chamou a atenção do público e das autoridades, e lançou amplas discussões sobre a desigualdade, invisibilização e hostilidade de muitos elementos arquitetônicos presentes nos espaços públicos urbanos, tema que virou pauta na mídia e na agenda política do país. No final de 2022, foi aprovado pela Câmara de Deputados um projeto de lei que "veda o emprego de técnicas de arquitetura hostil, destinadas a afastar pessoas em situação de rua e outros segmentos da população, em espaços livres de uso público", batizado de Lei Padre Julio Lancelotti, que pretende abolir esse tipo de política espacial nas cidades brasileiras.
Diante de uma problemática tão complexa e tão presente nas cidades, que atravessa a arquitetura e o urbanismo de maneira frontal, parece cada vez mais urgente a elaboração de estratégias e espacialidades urbanas que sejam acolhedoras, inclusivas e que reafirmem o compromisso do espaço público com sua dimensão coletiva, sem colaborar com a negação de um direito básico àqueles que, muitas vezes, não têm escolha senão estarem lá.
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