Fundamentos da Arquitetura Contemporânea / Siegbert Zanettini

O objetivo deste texto é trazer elementos que possam contribuir para uma reflexão sobre a contemporaneidade da arquitetura onde abordaremos alguns pontos que fazem parte da conclusão da obra “Razão e Sensibilidade”, texto sistemático que apresentei no ano 2000, para minha Livre Docência na FAUUSP e resultantes das experiências no universo teórico-prático, nas quatro últimas décadas.

A arquitetura por mim praticada nesse período refletiu o quadro cultural de cada momento e resultou da conjunção da razão amadurecida pelas reflexões, pesquisas e teses e da sensibilidade desenvolvida pelas idéias experimentadas em projetos e obras, algumas vezes, aquela fornecendo subsídios teóricos para a conceituação desta, outras vezes esta alimentando ou mesmo questionando as hipóteses daquela.

Esse evolutivo e simbiótico desenvolvimento teórico-prático teve uma condicionante especial: toda a produção se beneficiou com a condição de professor de arquitetura coincidir com a mesma área do trabalho profissional, as duas atividades se completando, embora com papéis distintos, por força de seus objetivos específicos. A crítica, o questionamento, a reflexão sobre cada obra, realizadas no âmbito universitário, alterava caminhos, aproximava experiências, quantificando e sistematizando cada ação. De outro lado, o contato direto com a produção, com a matéria a ser trabalhada, com o testar um novo sistema construtivo, estrutural ou de instalações, indo fundo no fazer, sem simulacros artificiosos e nas condições reais de uso e desempenho, com resultados convincentes, ou às vezes negativos, ratificou acertos e descartou erros, experiências essas que seriam quase impossíveis no âmbito universitário.

Essa especial condição do professor-profissional talvez tenha sido uma condicionante essencial no desenvolvimento de uma visão holística e sistêmica que alicerçou o caminho trilhado na área da arquitetura.

Uma sólida e extensa formação, de quase cinco décadas, resultante do contato pessoal e com a obra de um grupo excelente de professores da Universidade, com sua exemplar postura e sábia orientação ao acesso a uma bibliografia densa, nas várias áreas do conhecimento auxiliou, e muito, a entender os conflitos e contradições conjunturais políticas e ideológicas, a impedir desvios éticos e a resistir ao ganho fácil e às tentações de produzir uma arquitetura de ocasião, estimulada pelos constantes “contos de sereia” das áreas especulativa e imobiliária, principais responsáveis pelo memismo e pela profusão da mediocridade arquitetônica, no lado rico das cidades.

Por outro lado, era ilusão pensar que eu pertencia a um mundo à parte, livre e desvinculado das injunções estruturais e conjunturais, econômicas e políticas do país, onde o desígnio , que acreditávamos estar na esfera de decisão do arquiteto não fosse, como ainda continua sendo determinado pelo capital. A condição material da arquitetura e do urbano que inclui o solo, os edifícios e o mundo dos objetos traduz-se em mercadorias, com o valor de troca sobrepujando-se ao valor de uso, respondendo às determinações do mercado e a serviço do capital, atendendo-o nas suas exigências e necessidades.

Essas condicionantes, exponencializadas em escala mundial no período tecnológico pós-guerra, ou “cibernético-monopolista” no dizer de Andrés Zarankin, da etapa atual do capitalismo globalizante, ditam o que, a quem e como deve ser direcionada a produção material, definindo os contornos e os limites da arquitetura, como seu reflexo e efeito.

Algumas das soluções que seriamente pesquisamos, como ciência e como criação, sofrem, portanto, as injunções de mercado e respondem às suas condições de produtos de consumo. Isso, entretanto, não invalida a produção do conhecimento sobre esta nobre arte de construir, seu avanço de qualidade, maior eficácia no seu desempenho, minimização de patologias e o seu avanço tecnológico, com uma postura progressista e prospectiva em direção a uma nova realidade pela qual lutamos, na qual acreditamos e que há muitos anos perseguimos.

Portanto, trabalhar com correção nas áreas de domínio da arquitetura, com base nos conhecimentos científico e sensível, de uma forma sistêmica que globalize o histórico, o ambiental, o social, o político, o econômico e o tecnológico continua sendo tarefa a perseguir, sem prazo determinado, nesse universo conflituoso, em desequilíbrio e injusto que temos que ultrapassar.

A abordagem proposta procura extrapolar a discussão unidimensional da estética da forma na arquitetura, que perdurou como questão central durante as últimas décadas, em especial nos anos 60 e 70, nos textos de Robert Venturi, Aldo Rossi, Peter Eisenman, Charles Moore, Michael Graves e outros, sobre o desgaste do movimento moderno que “deixou de ser uma causa para se transformar num estilo”, segundo Anatole Kopp, e preparou o caminho para o surgimento do movimento pós-moderno.

Este ao negar a arquitetura moderna e a sua forma de organização do espaço, homogêneo em todas as direções, e nos limites de uma geometria definida e controlada, colocava como oposição o espaço pós-moderno “ambíguo no seu zoneamento e irracional no que se refere à sua relação entre as partes e o todo. Os limites a miúdo não ficam claros e o espaço se estende indefinidamente, sem limite aparente”, segundo Charles Jenks, um dos arautos do movimento.

A par de sua importante contribuição de sacudir o ambiente com críticas à já enfraquecida arquitetura moderna, o arcabouço teórico dessa corrente enfatizava a questão estética da arquitetura e, talvez, resida nisso o seu limite.

Por decorrência dessa limitada e unidimensional crítica, opôs ao “estilo moderno” os demais estilos no seu tratamento plástico-formal, como uma evocação retro-nostálgica e com colagens formais artificiais. Assim aparecem desenhos evocando motivos “Art-Deco”, desenhos geométricos, imitações fabricadas e inspiradas em materiais nobres e soluções em cenários apostos, encobrindo estruturas e com superfícies e revestimentos não vinculados à função.

O desgaste da arquitetura moderna, de um lado, e a superficialidade da arquitetura pós-moderna, de outro, para a qual já se podia preconizar um curto prazo de duração, que permaneceu como resíduo em propostas isoladas, despertou a hipótese de tentar estruturar uma idéia de contemporaneidade na arquitetura.

Alguns pressupostos estimulavam essa tarefa.

Diversas questões ao longo da trajetória intelectual e profissional já vinham sendo experimentadas e davam força à idéia. Por outro lado, um espectro amplo de referências apontava uma parte do caminho já se construindo. Nos mais variados campos, e mais nitidamente nas ciências biológicas, nas ciências ambientais e na área das exatas, nos campos da eletrônica e da tecnologia surgiam avanços notáveis. Nas áreas humanas, inclusive, as contribuições da antropologia, da arqueologia histórica e da arquitetura eram animadoras.

Para melhor compreensão, convém explicitá-las:

1. a arquitetura não mais se limitando a tomar como sua área de domínio a questão do espaço e da estética da forma. A necessidade crescente, que a realidade vem impondo, de mudar de dimensão no seu enfoque com uma abordagem sistêmica da cultura material como também das formas de produção material, no atendimento às novas demandas e necessidades individuais e coletivas.

Esse aumento de complexidade de seu conhecimento e de seu trato vem exigindo  uma crescente contribuição interdisciplinar de variadas áreas de especialidade e colaboração cada vez mais ampla de inúmeros intervenientes.

Como decorrência, e talvez a mais próxima, a “re-união” de arquitetos, engenheiros e tecnólogos numa formação e num trabalho mais interativo, face à constatação  irrefutável de que essas áreas tratam de um mesmo objeto;

2. as recentes contribuições sobre a noção de lugar e a tomada de consciência da questão ambiental, natural e construída, que explicitam a noção de território - “o espaço do cidadão”- local onde o homem finca as suas raízes na terra em que vive, na comunhão que com ela mantém. Cultura e territorialidade são heranças e também relações profundas do homem com o meio. Daí definirem-se formas próprias e contornos físicos claros que marcam a condição de nacionalidade como herança de modos de vida e de tradições locais e de internacionalidade, enquanto visão de mundo, conceitos aqui emprestados do Prof° Milton Santos;

3. a incorporação de novas áreas científicas e de novas tecnologias, com influências diretas na concepção e na organização dos espaços como a biogenética, a comunicação móvel celular, a visão metabólica da cidade, a informatização da vida cotidiana, a diversificação da matriz energética, entre outras;

4. as exigências crescentes e cada vez mais instrumentalizadas traduzidas em proteções, garantias, certificações, homologações, normas, que garantam qualidade, desempenho, durabilidade, economia e resguardem a integridade do produto, seja edificação ou objeto;

5. a gradativa utilização de tecnologias limpas que avançam no sentido de menos poluição, menos ruído, menos desperdício e menos agressão ao meio ambiente;

6. o desenvolvimento do conhecimento sensível, como por exemplo, no estudo do fenômeno da cor, até há pouco tempo explicado pelo seu aspecto sensitivo, hoje com várias teorias da ciência da percepção, do processo cognitivo e da colorimetria em Berkeley, MIT e Barcelona;

7. as experiências arquitetônicas no exterior que a partir da obra do Centro Pompidou em 77, dos arquitetos Richard Rogers e Renzo Piano, aos quais se juntam  Norman Foster, Santiago Calatrava, Jean Nouvel, Bernard Tschumi, Nicholas Grimshaw, Dominique Perrault, I. M. Pey, entre outros, e no Brasil, João Filgueiras Lima e o arquiteto que aqui escreve, colecionam um formidável acervo de projetos e obras, documentadas em textos críticos e publicações que as situam como experiências contemporâneas, cujas referências recíprocas são inevitáveis.

Que princípios norteiam essas obras e as une como uma nova forma de abordagem da arquitetura, de sorte que se possa reconhecer um novo movimento? E que aspectos as separam e marcam as diferenças entre os vários caminhos.

Como resposta alguns pontos merecem ser destacados:

a) respeito ao sítio onde se implantam e aos programas específicos.

“ Na Europa, a modernidade e o quadro histórico pareceu formar uma simbiose muito mais forte que na grande época do modernismo, que buscava impor uma nova ordem. A vida cotidiana dos europeus está submetida à confrontação permanente da tradição e uma rápida evolução. Um dos fatores fundamentais da viabilidade da arquitetura contemporânea é sua capacidade de evoluir na direção da aceitação do passado, mesmo que apareçam novas formas e soluções”....

“ A estética da concepção arquitetônica parece mais e mais sempre ditada, não mais por convenções estilísticas pré-determinadas, mas por fatores ligados ao sítio ou ao programa”....

“ Construir na Europa hoje requer uma tolerância e uma abertura que não convém de maneira nenhuma a um enfoque dogmático. Cada regra conhece suas exceções. A arquitetura atual é antes de tudo a soma dessas exceções. (Jodidio, 1998);

b) os contextos econômicos e políticos vigentes na maioria dos países, dão aos arquitetos múltiplas razões para se inquietar com o futuro, quando se constata uma tomada de consciência engrandecendo a importância da qualidade da construção que entrava a realização de um número mais elevado de projetos inovadores.

Esse procedimento que mais recentemente vem ocorrendo na Europa, no Brasil nos acompanha pelo menos há quatro décadas, com uma arquitetura que em termos de renovação e qualidade construtiva, deixa muito a desejar;

c) uso de novas tecnologias, visando a uma produção qualitativamente mais controlada por processos industrializados, fazendo gradativamente do canteiro de obras o local de montagem. Isso implica numa abordagem sistêmica e planejada de todo o ciclo produtivo da obra na sua totalidade, desde a elaboração de projetos profundamente detalhados e compatibilizados. Não há improvisos ou soluções de obra, como ocorre com frequência na obra tradicional. Daí outro aspecto que as une: a importância do projeto na explicitação da noção de qualidade na cadeia produtiva da construção civil;

d) outro ponto a destacar na questão da contemporaneidade é que cada intervenção no espaço, deve adequar-se ao conhecimento estruturado das ciências humanas. Não se consegue imprimir uma visão prospectiva e de futuro para a arquitetura, sem o conhecimento histórico das experiências formais e espaciais do passado, umbilicalmente ligadas à paulatina evolução das técnicas no tempo;

e) outro procedimento contemporâneo é imprimir ao projeto a visão de processo que nunca se esgota, com o contínuo aprimoramento das linguagens arquitetônicas no uso das tecnologias do concreto, do aço, da madeira, da alvenaria estrutural, da argamassa armada, do solo-cimento e outras tantas, cada uma delas apropriada às condições de trabalho estrutural, às circunstâncias de como se dá a produção de cada sistema em cada região, objetivando a melhor relação custo-benefício;

f) outro aspecto, aparentemente paradoxal, que une as experiências arquitetônicas contemporâneas é a liberdade com que cada arquiteto imprime à sua obra, o que caracteriza as diferenças que toda obra de arte deve ter e onde se expressa a individualidade do criador. E não poderia ser diferente: regiões, lugares, sítios, relevos, climas, programas, tipologias, usos, sistemas construtivos, materiais e tudo o mais, bastante diversos, não há porque engessar formas, com padrões e modelos dogmáticos, materializando mais um “novo estilo”.

Há sim, que haver coerência global no planejamento, no projeto, na fabricação e na execução da obra, de modo a satisfazer as necessidades econômicas, fisiológicas, ambientais e estéticas, direcionadas à razão e à emoção do homem;

g) portanto, uma característica estrutural da visão contemporânea da arquitetura está na conjunção de questões interagentes que ocorrem na produção da arquitetura – homem, lugar, uso, medida, ambiente, técnica, matéria, ciência, tecnologia – enquanto aspectos de um universo objetivo, com o conjunto de variáveis do mundo sensível das idéias e da criação, nessa constante busca da essência, do equilíbrio, do harmônico, do duradouro, com o permanente desafio da busca de excelência estética, econômica e construtiva e no atendimento às satisfações físicas, e psíquicas dos indivíduos que dela usufruem.

A arquitetura contemporânea é o resultado físico-espacial do encontro equilibrado e harmônico entre dois mundos: o racional e o sensível.

Sobre este autor
Cita: Igor Fracalossi. "Fundamentos da Arquitetura Contemporânea / Siegbert Zanettini" 03 Abr 2013. ArchDaily Brasil. Acessado . <https://www.archdaily.com.br/br/01-106915/fundamentos-da-arquitetura-contemporanea-slash-siegbert-zanettini> ISSN 0719-8906

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