Aproximações a uma metástase urbana / Igor Fracalossi

I

Existem seis critérios básicos para a identificação do câncer de pele de acordo com o método ABCDEF1: Assimetria; Bordas irregulares; Cores variadas entre marrom, vermelho e preto; Diâmetro maior que 6 mm; Evolução na elevação em relação ao nível da pele adjacente, ou nos outros critérios; e F) funny looking (aspecto engraçado).

No maior melanoma brasileiro, a Grande São Paulo, composta por trinta e nove municípios, os quais ocupam uma área de 7.947,3 km² e abrigam cerca de 19.822.572 habitantes, é possível identificar tais critérios.

Sua forma é perceptivelmente assimétrica.

Suas bordas são irregulares e pouco definidas, com maior imprecisão e expansão ao Leste e Oeste, com a aparição de novos eixos ou braços.

Suas cores variam prioritariamente em escala de cinza, mas também são perceptíveis tons de amarelo, marrom e vermelho.

O diâmetro estimado da área central do tumor é de aproximadamente 22 km, ainda que seu núcleo formativo, que corresponde ao centro da cidade de São Paulo, apresente um diâmetro de apenas 2 km aproximadamente.

Possui elevações na superfície, que se acercam aos 170 metros de altura, marcando uma curva evolutiva ascendente baixo um período de aproximadamente setenta anos.

E apresenta um aspecto engraçado.


II

Num estudo recente2, foram encontradas outras sete analogias, não somente ao câncer de pele, mas também à metástase3 cancerígena em geral, em comparação ao desenvolvimento da expansão suburbana. O ponto de partida para essa investigação foi a observação de comportamentos invasivos4 em ambos os casos.

1. Estruturas similares

Segundo os autores, os padrões de crescimento do câncer e da expansão urbana são muito similares. Ambos podem ser caracterizados por um padrão fractal, a partir, em primeira instância, de uma simples comparação visual entre uma seção de órgão metastatizado e uma imagem de satélite de uma região urbana. No obstante, estudos posteriores sobre os valores da dimensionalidade fractal (D) revelaram que ambos os casos apresentam valores muito próximos. Para o câncer de ovário e glioma foram calculados valores D entre 1.20-1.38, enquanto que para a expansão suburbana os valores estiveram entre 1.23-1.31.

2. Historia natural similar

A metástase cancerígena e o desenvolvimento da expansão suburbana apresentam uma história natural similar: ambos representam uma nova forma de crescimento dentro de um organismo maior, determinando seu comportamento invasivo. Do mesmo modo que câncer é uma nova forma de crescimento na história natural do corpo humano, a expansão suburbana, segregada e de baixa densidade, é uma nova forma de desenvolvimento na história natural do mundo.

3. Fatores iniciais similares

Os fatores iniciais também são similares. Primeiramente, os tumores recebem sinais para proliferar continuamente, devido a uma superabundância de fatores de crescimento ou de una alteração nos circuitos celulares. Em seguida, as células cancerígenas perdem a função das moléculas de inibição da proliferação. Ambos os fatores permitem a clonagem das células e levam ao crescimento invasivo.

No caso da expansão urbana, o crescimento foi proporcionado pela especulação financeira, mais que por necessidades reais, em consonância com o baixo custo de transporte motorizado, destacado no preço da gasolina. Sua aparência, assim como um câncer, é pobre em diversidade, altamente invasiva e baseada em um crescimento fractal5, limitado por barreiras naturais ou artificiais.

4. Padrões de invasão similares

Em relação aos padrões de invasão, as células cancerígenas, em um primeiro momento, se desvinculam das células vizinhas, degradando o tecido próximo, e logo invadem vasos sanguíneos ou linfáticos, migrando para novos focos de crescimento. Uma vez alcançado o novo sítio, as células começam a geração de um novo sistema de vasos e linfáticos, um novo sistema circulatório.

Com a expansão suburbana acontece algo similar. Seu desenvolvimento é engendrado pelos grandes corredores de transporte, prioritariamente aqueles feitos para os automóveis. E uma vez alcançado o novo sítio, sistematicamente mais afastado do núcleo central, surge de repente a necessidade de novas vias secundárias para a conexão entre os distintos equipamentos, como escolas, centros comunitários, feiras, etc.

5. Expansão clônica similar

A expansão do câncer se faz em detrimento da diversidade pré-existente nos órgãos e tecidos, necessária a sua sobrevivência, quando um determinado grupo de células cresce em quantidade anormal e se expande clonicamente ao ambiente. Esta é uma situação óbvia nos estados hiperplásicos6, os quais podem ser precursores do câncer, mas que se supõem que contêm a pequena e crucial população de células resistentes ao tratamento e que levam mais diretamente à morte do paciente.

No âmbito da expansão urbana, o comportamento clônico é visível na homogeneidade e baixa densidade dos agrupamentos residenciais. Tal constatação é amplificada pelas leis de zoneamento, as quais determinam a segregação de usos incompatíveis, impedindo a diversidade. A expansão suburbana, assim como o câncer, é uma monocultura, perceptível nas escalas urbanística e arquitetônica.

6. Sistema de “vasos” de distribuição similar

Enquanto que em tecidos normais os vasos sanguíneos apresentam padrões entrecruzados, ligeiramente hierarquizados, os tumores cancerígenos, através de processos de angiogênesis7, estimulam o surgimento de novos vasos, radiais e hierarquizados, de modo a suprir as necessidades de oxigênio.

Analogamente, os subúrbios, gerados por iniciativas de especulação financeira, são conectados ao núcleo urbano através de um sistema hierarquizado de vias, presente também no interior dos grupos. Os percursos possíveis tendem, consecutivamente, a se aproximar a apenas um, ao contrário do que acontecia nos bairros tradicionais, com seus padrões em grelha.

Tal padrão de distribuição, presente no câncer e nos subúrbios, representa a eficiência do comportamento invasivo de ambos os casos.

7. Causas de morte similares

Em geral, a causa das mortes por câncer transcorre de problemas derivados ou de tentativas de curá-lo. Em estados avançados, é comum o desenvolvimento de uma síndrome debilitadora, a caquexia8, que leva a perda de funcionalidade do sistema imunológico, as quais podem ser agravadas pela quimioterapia, facilitando infecções.

O par análogo à caquexia, na expansão urbana, é a deterioração das áreas centrais, enquanto os subúrbios continuam a crescer vividamente. O passo inicial para este processo é a constatação de que o número de moradores que deixam o centro é maior do que os que chegam. Logo, os impostos sobre a área se reduzem, promovendo mais decadência, mais perda de moradores, e crime.


III

A íntima relação entre o estado da expansão urbana atual e o processo de metástase cancerígena é sinal da iminência de morte das grandes metrópoles, o constructo que talvez melhor caracteriza a condição humana atual. De fato, no Brasil, metástases locais já ocorreram e têm se proliferado desde meados do século XX baixo a denominação de conurbações urbanas, em consequência dos estados hiperplásicos caracterizados pelos grandes conjuntos habitacionais afastados do núcleo central das capitais, financiados pelo estado. Além disso, desde a década dos 80’s, estes núcleos centrais sofrem as consequências da caquexia e infecções derivadas, como a violência, insegurança, prostituição e contrabando de drogas.

As metástases em outros órgãos, por outro lado, ainda parecem difusas e pouco aparentes. No entanto, talvez seja possível identificar pelo menos dois sintomas deste comportamento invasivo: 1) Poluição visível do ar e da água, tanto devido a liberação de resíduos e dejetos como de recursos naturais, como o petróleo; e 2) Desflorestamento para implementação de monoculturas animais ou vegetais, como a soja. Não obstante, é possível ir mais além, e se perguntar: seriam os arranha-céus, shoppings, centros culturais e terminais de transporte, presentes indistintamente em todos os recônditos do planeta, os sinais de uma metástase já em desenvolvimento?

O que se pede aos arquitetos: desenho urbano, não mais que isso. O problema que nos toca enquanto arquitetos é um problema de desenho. A cidade atual, o melanoma urbano, é uma mancha amorfa. Combater o amorfismo significa construir os limites, e construir os limites significa criar a identidade da cidade em sua totalidade. No entanto, como já se foi constatado no mesmo estudo pormenorizado anteriormente, tais limitações não podem ser de âmbito normativo, visto que o comportamento do câncer é superar tais barreiras legais, e por tanto fictícias. A busca –e o encontro– de áreas mais afastadas, mais tranquilas, mais baratas e de fácil ligação aos grandes corredores de circulação é a medida usual de fugir da situação oposta presente nos centros urbanos. No entanto, tal condição positiva é, como já se foi constatado, rapidamente deteriorada pela chegada de uma crescente população que demanda as mesmas condições de vida. Tal fato gera a saída do grupo inicial em direção a áreas mais afastadas, mas que novamente serão palco de um futuro colapso, o qual produzirá uma nova fuga, e assim continuamente9. A inexistência de barreiras físicas –naturais ou artificiais– é em boa medida causa deste crescimento invasivo e ininterrupto. Primeira proposição: construir os limites.

A cidade atual, o melanoma urbano, é um sistema de vasos circulatórios hiperhierarquizados, onde os principais exercem a função de eixos de expansão, invasão, angioplastia e metástases. Combater a hiperhierarquização significa, por um lado, multiplicar, diversificar e indeterminar as possibilidades e modalidades internas e limitadas da cidade, e, por outro, simplificar, homogeneizar y reduzir a estrutura viária destinada a automóveis. Possibilitar a liberdade, que não é senão a atuação autocrítica baixo a lealdade a certas regras, significa permitir a vida em quanto jogo. Para tanto, tal liberdade pede não somente pela deshierarquização e redução viária, mas também pela desrestrição de usos, ambas a favor da heterogeneidade e identidade individual, mas não sem ordem e rigor. Segunda proposição: construir sobre as vias novos parques.

As cidades atuais, os melanomas urbanos, são em grande medida indiferenciáveis entre si. Todas apresentam os mesmos componentes, as mesmas regras e são palco dos mesmos atos, ainda que cada condição natural seja singular. Combater a indiferenciação significa construir com o que é próprio do lugar, sendo este tanto os materiais quanto as técnicas. Construir o próprio é dotar de identidade a construção e a obra. Identidade é a transparência do que lhe é próprio. Terceira proposição: construir com a singularidade do lugar.

A cidade atual, o melanoma urbano, é um organismo que se desenvolve em suas bordas, em consumo do ambiente, e se apodrece em seu centro, já sem contato com as zonas de recursos. Combater a putrefação do centro significa construir nele, não intervenções decorativas, mas obras estruturais. Interromper o desenvolvimento periférico é construir no centro o que se construiria lá, não quantitativamente, mas qualitativamente. Quarta proposição: recriar o centro.

A metástase urbana, aparentemente em curso, é a oportunidade para um novo e necessário crescimento qualitativo das cidades, a partir da construção em seus núcleos centrais, com o singular do lugar, desde o desenho de seus limites, apoiado na invasão em contra-ataque da natureza, e com a deshierarquização e diversificação das possibilidades. Proposição final: tratar a cidade como câncer é possibilitar a compreensão da condição humana.

“Esta alma é mais profunda, mais dolente que a de qualquer outro animal. Encontra-se em irreconciliável oposição ao mundo inteiro, da que a separa seu próprio caráter criador. É a alma de um rebelde.”10


٭ ٭ ٭

Acrescento ao escrito original algumas auto-indagações finais: o suposto comportamento invasivo dos conglomerados humanos não seria mais bem um comportamento natural do homem enquanto espécie? Não fará parte da própria natureza antinatural do homem ser invasivo, e consequentemente destrutivo? Ou isto seria apenas uma desvirtuação do que seria o verdadeiro caráter transformador e criador do ser humano? Qualquer resposta a estas perguntas possivelmente não serão confortantes. Como diria o mesmo Oswald Spengler, “otimismo é covardia”.

* Artigo desenvolvido pelo autor no Programa de Doutorado em Arquitetura e Estudos Urbanos da Pontifícia Universidade Católica do Chile.

    1. Método proposto por Brent P. Hazen et al, The Clinical Diagnosis of Early Malignant Melanoma: Expansion of the ABCD Criteria to Improve Diagnostic Sensitivity, Dermatology Online Journal 5(2): 3, 1999. Disponível em: <http://dermatology.cdlib.org/DOJvol5num2/original/abcde.html>.
    2. RYAN, John J., et al. A systems biology approach to invasive behavior: comparing cancer metastasis and suburban sprawl development. BMC Research Notes 2010, 3:36. Disponível em: <http://www.biomedcentral.com/1756-0500/3/36>.
    3. Metástase é a proliferação de uma doença desde um ponto a outro não adjacente. Pode ser local –no mesmo tecido ou órgão– ou distante –quando atinge a outros órgãos–.
    4. Comportamento invasivo é a condição de crescer continuamente sobre o ambiente, apropriando-se de seus recursos.
    5. Segundo Benoît Mandelbrot, uma série fractal é aquela na qual a dimensão fractal (Hausdorff-Besicovitch) excede severamente a dimensão topológica, ou seja, um fractal se apresenta desde um começo em contínua evolução. Além disso, o fractal é um padrão auto-similar, ou seja, similar em qualquer escala. O fractal se repete a si mesmo em toda e qualquer escala. Ver Benoît Mandelbrot,Fractals and Chaos, Berlin, Springer, 2004.
    6. Hiperplasia é a proliferação quantitativa de um mesmo grupo de células, gerando o aumento de tamanho de um órgão ou tecido.
    7. Angiogênesis é o processo fisiológico que involucra o crescimento de novos vasos sanguíneos a partir de outros pré-existentes.
    8. Caquexia é uma síndrome debilitadora que faz com que o corpo favoreça as reações catabólicas de queima de energia, sobre as reações anabólicas que constroem os tecidos. De este modo, a ingestão calórica já não é suficiente para manter o tecido adiposo e a massa muscular corporal, e ambos entram em atrofia. Além disso, a perda de massa muscular em consequência da caquexia não é reversível nutricionalmente.
    9. O filme Making Sense of Place: Phoenix, the Urban Desert (2003) dá um bom exemplo desta condição de crescimento invasivo das cidades.
    10. Oswald Spengler, El hombre y la técnica, Editorial Ver, Buenos Aires, 1963 (1931), p.15.

Sobre este autor
Cita: Igor Fracalossi. "Aproximações a uma metástase urbana / Igor Fracalossi" 10 Abr 2013. ArchDaily Brasil. Acessado . <https://www.archdaily.com.br/br/01-108154/aproximacoes-a-uma-metastase-urbana-slash-igor-fracalossi> ISSN 0719-8906

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