A Literatura da Arquitetura, uma conversa com Germán del Sol [Parte I]

Depois de esperar um breve momento no salão principal do seu escritório, Germán saiu da sua sala, apareceu no salão onde eu estava, me cumprimentou e me convidou a acompanha-lo de volta a sua sala para darmos início à conversa. Sentei-me no sofá e ele sentou-se em sua cadeira de trabalho, em frente a mim. Perguntei-lhe se o incomodaria se eu gravasse o áudio de nossa conversa. Disse-me gentilmente que não. Eu não tinha nenhum script, nenhum enfoque para dar à conversa. Simplesmente conversamos.

[Germán del Sol] Entremos a tiro a matar. A arquitetura é uma arte. Toda arte requer ofício. Mas arte é ir além do ofício.

Em meio à crise e a falta de trabalho dos anos oitenta, parecia que todos os problemas da vida se resolveriam com dinheiro. “Como meu pai costumava dizer –dizia um personagem da série Texas–: somente há uma coisa mais importante que o dinheiro: mais dinheiro”. Parecia que todos nós arquitetos tínhamos que fazer negócio, investir e fazer obras próprias. Tínhamos que nos tornar comerciantes.

Não sou contra o comércio. Ao contrário, creio que foi a origem da cidade. Mas a arte é absolutamente distinta, e serve para outra coisa. A arte é essencial para a vida humana, o comércio não. O essencial, como disse o poeta argentino Hugo Mujica, é a gratuidade que nos faz humanos.

Sifnos, gratuidade. Cortesia Germán del Sol

Venho chegando de uma viagem a Cusco, onde as obras mais extraordinárias que vi são quase todas inúteis. Na maioria das plataformas (em espanhol, andenes) se cultivam alimentos. Mas as plataformas mais importantes, as que estão feitas com mais cuidado, as que mostram o esplendor dos Incas, são as que se fizeram em Pisaq para pôr flores. Para que servem as flores? Por que se põem flores nos parques? Para que servem os parques? A parte que se pisa do parque serve para que os grandes caminhem e as crianças brinquem. Mas a parte do parque que se vê e não se pisa, e que tem flores, uma fonte de água ou massas de arbusto, como em Versalhes, é a parte mais importante. Aquela que fazemos porque somos humanos, isto é, porque aspiramos transcender a parte prática da vida que é simplesmente sobreviver. Porque não é humano contentar-se, como o tordo, com puro comer e cagar.

Pisaq, plataformas feitas com cuidado. Cortesia Germán del Sol

Por isso, o mais importante na vida é o que fazemos para transcender sua vulgaridade. O que fazem até os delinquentes. Nas populações mais perigosas de Santiago, os bandos têm nomes e um sentido de missão, inclusive para fazer mal. São, por exemplo, “Los Philips” e “Los Ratones”. Los Philips roubam, mas não matam. E Los Ratones matam, mas não roubam. Uns roubam da pessoa sua carteira, mas a deixam viva, e os outros a matam, mas não lhe roubam a carteira.

Se entre aqueles que aparentemente desprezam a condição humana há um sentido de missão inclusive para cometer crimes, como não vamos ter nós arquitetos que pretendemos dar à construção um presente com a arquitetura.

[Igor Fracalossi] E que sempre é inútil.

[GS] Parece inútil. A arquitetura desta peça é o que está em cima de nossas cabeças e que aparentemente é um vazio de coisas, que não serve para nada.

Massas de boj em Albi, inutilidade e esplendor. Cortesia Germán del Sol

[IF] Certo dia me dei conta de que a arquitetura parece ser mais um estado temporal que uma coisa espacial. Quando se está utilizando a arquitetura como construção talvez a arquitetura mesma não exista. Somente no momento em que se está contemplando a arquitetura é que talvez ela exista.

[GS] Talvez tenha razão. Alguém disse que ninguém nunca tinha visto uma peça vazia, ou um bosque virgem. Porque no momento em que alguém entra, a peça não está vazia, nem o bosque, virgem.

Talvez, as coisas somente existam se alguém as vê. Existe uma ruína se ninguém a conhece ainda? Talvez, a arquitetura possa existir primeiro por nostalgia, antes que se converta em um lugar. Como resposta à necessidade humana de interiorizar-nos com a terra e levar uma vida fecunda apesar de não saber muito de nada.

Pisaq, plataformas de flores pelo puro gosto. Cortesia Germán del Sol

Não pretendo ditar regra, e se me equivoco é de puro cantorcomo dizemos no Chile, e terei muito gosto em me corrigir. Por isso me arisco a lhe responder, qual é o uso da arquitetura? Para pôr um exemplo, na escola de Arquitetura da PUC, você não espera encontrar só salas de aulas, ateliers e lugares de descanso, mas sobre tudo o seu próprio esplendor como aluno. Quando há Arquitetura, você vê refletido o melhor de si. Isso pode passar numa casa muito simples e não passar no Palácio de La Moneda. Se no La Moneda se sente só o poder, quer dizer que há uma organização política, mas não há arquitetura. A arquitetura não pode mudar a realidade, mas pode mostrar o melhor dela. Seguindo com o exemplo, no La Moneda tem que estar presente de alguma maneira, o melhor que têm feito os chilenos nos últimos nove mil anos. Para isso se fez Brasília. Para mostrar ao Brasil o que os brasileiros eram capazes de fazer: transladar a capital do Rio, e centraliza-la em relação ao território que queriam compreender. Para isso serve a Arquitetura. Para dar lugar ao esplendor da vida humana tal como é quando se olha com afeto.

É o que se espera além do mais até da praça mais modesta. Porque a praça não serve somente para que as crianças brinquem e nós velhos tomemos sol, mas para que entre as casas e edifícios haja um lugar vazio que não está construído e que somos capazes de deixar intocado para alargar o espirito.

Viña Seña, Alameda. Cortesia Germán del Sol

Em Barcelona, você pode viver num apartamento menor que este quarto onde estamos. Mas você me contaria: “saio à rua, onde há calçadas largas, bares, gente diversa caminhando”, e ainda que o tópico seja dizer que nunca se está mais só que entre a multidão, quando você caminha só pela rua, se sente acompanhado por esses desconhecidos que nem te olham.

Qual é a grandeza do espaço público aqui no Chile? Fantoches. Obras de teatro, uma boneca gigante francesa, o Cirque du Soleil, e os festivais, filmes e concertos ao ar livre. Nosso espaço público é um espetáculo, não um lugar para a vida pública. Se não há fantoches e uns caras que lançam chamas pela boca, não há festa de rua. Talvez somos espectadores de nossa vida pública, porque temos muito sentido do ridículo para protagonizar as festas, e não sentimos o prazer de estar sentados olhando passar a vida sem fazer nada.

Chan Chan, vazio fecundo. Cortesia Germán del Sol

[IF] É este temor frente ao vazio, frente ao que não tem função. Se alguém vê algo que está vazio, sente uma obrigação de preenchê-lo.

[GS] Tem toda a razão. Talvez a sociedade contemporânea tema o vazio porque associa o prazer com a sensibilidade e não com alguma forma de espiritualidade. Por que marcham os estudantes? Por que protestam? Talvez porque a sociedade chilena não transmita aos jovens o desejo daquilo invisível, que mais que financiá-la, lhes dê sentido a sua existência. E eles nem se quer se dão conta. Eles creem que reclamam por dinheiro. E quando lhes oferecem dinheiro, dizem não, não é isso. Não sabem que talvez buscam dar um sentido às suas vidas, e a dignidade de se sentirem valiosos para os demais. Nada que o dinheiro possa comprar. Mas a sociedade lhes transmitiu tacitamente que quando houvesse dinheiro para lhes pagar a educação, eles seriam felizes. E não. Não! Podem lhes dar tudo. Trabalho assegurado bem remunerado. E não lhes serve.

Campo ou esplanada de Monte Alban. Cortesia Germán del Sol

Tal como você diz, talvez o que se necessita seja abrir vazios para que cada um preencha com o que é, e não com o que tem. É o mesmo que fazer uma praça ou um parque enorme sem nada, algo que não somos capazes de fazer, porque tendemos a construir tudo, até a margem do mar. Se alguém propõe um parque que seja um plano de areia sombreado por alguns plátanos-orientais, é capaz de que lhe digam que não tem programa, isto é, que não serve para nada.

[IF] Isso é o que fez Brancusi com a “Mesa do silêncio”. Pôs os banquinhos tão longe da mesa, que a mesa não pode ser ocupada como mesa. É puro vazio.

[GS] Quando Brancusi faz um totem, por exemplo, o esvazia de todo símbolo e o deixa no essencial que é o totem comum de todas as culturas. Nele se unem as esculturas mapuches com os menhires de Carnac. Brancusi faz um menhir e o despoja de tudo. Para que o despoja? Não por um ato de pobreza –como se diz–, uma arte pobre. Não. Mas para que você o preencha. A mesa sem coisas em cima, a enche cada um com sua imaginação. As praças vazias em muitas partes do mundo, especialmente na América, se enchem de maravilhas; de gente que, com seus desejos, suas esperanças, seus fracassos e seus sonhos, as enchem de vida.

Tótens de Brancusi. Cortesia Germán del Sol

E para não ir mais longe, aqui em Santiago em vez de valorizar esses lugares vazios que estão por aí e por ali perdidos esperando seu destino, que não foram vendidos, e que são o melhor da cidade, os chamamos de terrenos baldios –ou inúteis–. E as prefeituras querem obrigar a construí-los, porque lhes desespera que estejam vazios, que é como são mais fecundos para a cidade. Um silêncio que desespera, se tapa com música ambiental.

Penso que você se deu conta de algo, que pelo menos a mim me ensinaram, quando um professor disse: há vezes em que o melhor é não fazer nada.

[IF] Uma vez eu escutei um ator brasileiro que disse que o melhor amigo é aquele com quem você pode ficar calado.

[GS] Claro. A única namorada que vale a pena é com quem pode ficar sem falar. E o melhor espaço é esse onde com o passar do tempo caiu tudo o que sobra, e fica então uma ruína, cheia de potencial para que cada um imagine o que queira. Os espaços cheios estão mortos. Quanto mais cabines telefônicas, caminhozinhos, assentos, plantas e grama tenha uma praça, mais morta está. Em troca, numa praça vazia cabem todos os caminhos possíveis. Uma pessoa pode imaginá-la como areia, outra com grama; um colocaria árvores, outro, assentos. Numa praça vazia tudo cabe. Quando você já decidiu fazer uma coisa, morre a possibilidade de todas as demais. A potência se converteu em obra, e, portanto, em obra morta.

Porque a vida não se acumula. Todo o contrário: no momento em que o plano de vida se cumpre, se está morto. Por isso minha mãe dizia que sonhássemos com algo que valesse a pena, que não fosse Deus o que cumprisse nossos desejos. Há que ter sonhos que não se possam cumprir, para que valham a pena, porque se se cumprem se acabam.

Terreno vazio em San Damian. Cortesia Germán del Sol

Mas, voltando a sua pergunta inicial, a poesia é a que dá sentido gratuito à Arquitetura. Isto é, a deixa aberta para que cada um veja refletida nela seu próprio esplendor. A poesia não serve para explicar como manejar seu computador. O poeta não sabe bem o que entenderá cada qual. E te incita a pensar uma coisa, e ao outro, outra. Porque não pretende dirigir-te. É uma palavra gratuita. Não quer te vender uma televisão, nem um programa politico.

É muito importante entender a relação entre poesia e a Arquitetura. Muitos tentaram e poucos conseguiram tão bem como os escritos de Alberto Cruz e Godofredo Iommi, que são muito difíceis de entender, talvez porque eles como mestres Zen, não querem explicar o inexplicável, e deixam que cada um receba o que possa depois de um merecido esforço de abertura –porque “viver poeticamente é viver abertos a receber o bom do dia”, como diz um genial amigo–.

Porque quando não se entende, e me incluo, se arrisca a repetir como papagaio frases que não se compreende. E as escolas de arquitetura são muito tentadas a ter um pensamento próprio. Está muito bem. Mas o pensamento tem que ser mastigado constantemente. Não pode se resumir em slogans fáceis de recordar. É o que sinto quando escuto aos comunistas, que mais que responder, repetem frases convenientes para eles, mas não para o fruto da conversa, que não é convencer aos demais, mas tratar de entende-los. Com a poesia, eles não podem se meter, porque têm muitas leituras que não se pode manipular.

Não há quase ninguém que se atreva a dizer o que é a poesia e qual é a sua relação com a Arquitetura. Ninguém. Por isso não se fala de poesia, mas tampouco de beleza. Então, a relação com a poesia se transforma numa revoada, como dizem as crianças. Ou como disse Sergio, um huaso vizinho, sobre os alemães que o visitaram, “falam diferente de mim, não se entende nada o que estão dizendo”. Eu percebo pelos comentários anônimos na internet que há gente jovem que não tem lido poesia e pensa que estas ideias são especulações de esnobes; que eu sou “um cavalheiro opinando sentado numa poltrona”; que para conhecer a realidade “há que sair à rua”, com parca vermelha como os pobres ministros em campanha. E eu lhes respondo que para pensar você tem que se sentar e deixar que as ideias lhe assaltem sem estar envolvido na tremenda urgência da ação.

Praça vazia de Mesquita em El Cairo

Jorge Teillier disse que a poesia é uma moeda que tem que estar em todos os bolsos. Também nos teus. E, para não encher teu saco, vou ler um só poema, se não se importa. Tem um minuto? Vou buscar o livro.

[IF] Claro.

[GS] Este poema chama-se “Bajo el cielo nacido tras la lluvia” e o leio porque é fácil explicar sua relação com a Arquitetura. Disse: “Sob o céu nascido após a chuva / escuto um leve deslizar de remos sobre a água”. Por que é poético? Porque sempre quando observamos a chuva, sentimos falta do sol. Então a resposta como arquiteto é nos defender dela. E entender como boa só uma parte da realidade. Não se dar conta de que para que haja dia tem que haver noite, ou que só passando um pouco de sede se aprecia o sabor da água fresca. Pensar, por fim os problemas acabaram: “acabou a chuva, não faz falta um teto”. Então, o que nos mostra o poeta? Que há um céu que sempre nasce depois da chuva. O que vê o poeta? Vê que às vezes a chuva nos mostra o céu. Que a luz que apagamos nos traz a memória da luz (ler o poema). Nos mostra que a chuva é um dom, não um problema.

E segue… “Sob o céu nascido após a chuva / escuto um leve deslizar de remos sobre a água, / enquanto penso que a felicidade / não é senão um leve deslizar de remos sobre a água.” A felicidade não é algo que se pode agarrar e guardar. Há muita gente que crê que a felicidade ou a dor são momentos muito bons ou muito ruins que se guardam no coração ou na alma. Teillier em troca diz que “…a felicidade é um leve deslizar de remos sobre a água”. Ou seja, o remo só toca a felicidade na água, e sai. E sai molhado, mas sai sem nada. A felicidade não é um montão de água que você recolhe num tanque. É algo que se toca e se vai. Então alguém pode bem dizer que a Arquitetura é o mesmo. A Arquitetura não é a matéria que se pode tocar, mas o que ela evoca em cada um. É um ir e voltar entre a realidade e a esperança, entre a vida cotidiana e os melhores sonhos.

Segue, e então diz que “A felicidade é o espaço do silêncio / entre a minha voz e a voz de alguém”. A distância que há entre umas coisas e outras é uma experiência arquitetônica.

Isluga, povoado cerimonial, também se vive onde se sonha. Cortesia Germán del Sol

[IF] Está um pouco de acordo com o que penso, que a arquitetura é um momento.

[GS] Claro. A arquitetura vive-se em muitos momentos, mas se tem que projetar para permitir esses momentos. O uso muda, mas a arquitetura permanece. Há plataformas pré-incaicas que têm três mil anos. Seu uso agrícola já passou. Mas o cuidado com que estão feito aviva o prazer de seguir fazendo as coisas bem, pelo puro gosto de fazê-las.

Então, o que poderia aprender eu? A poesia te diz que, por exemplo, mais que os muros mesmos, o que importa é a distância que há entre eles. É o que chamamos na arquitetura espaços intersticiais. A distância que media entre uma coisa e outra. O segundo que se espera quando se vê cair o raio, para sentir o trovão.

Por exemplo, neste quarto que é muito simples, tudo o que gosto é que a porta não está no mesmo plano que o interior, porque fizeram este armário que dá mais espessura à parede. Este é um exemplo de espaço intersticial.

Maicillo e Plátanos Orientais. Cortesia Germán del Sol

[IF] Um passo.

[GS] Um passo. Uma coisa vazia que não serve muito. E se esse vazio se prolongasse um pouco, seria melhor. Essa é a distância entre minha voz e a voz de alguém. Um silêncio. “Isso foi a felicidade –disse– desenhar na geada figuras sem sentido / sabendo que não durariam nada, / cortar um ramo de pinheiro / para escrever um instante nosso nome na terra úmida”. Ou seja, a felicidade é escrever na areia o seu nome e o de sua namorada antes que chegue a onda que os apaga.

O que significa? Que a felicidade não se retém. O mais importante na Arquitetura não se retém, tem que se liberar com toda confiança. Nós arquitetos somos, para te dizer uma bobagem, os que colocamos a areia na praia para que as pessoas escrevam seus nomes e deixamos que suba o mar e os apague. Nós arquitetos não somos, como creem alguns, os que fazem uma calçada de concreto na beira do mar com corações com os nomes de muitas pessoas, e o defendemos do mar para que dure. Vale a bobagem do exemplo.

A arquitetura não é controlar a vida. É dar lugar na vida às coisas que hoje em dia pensamos que não têm valor, como, por exemplo, que os nomes se apaguem, que a felicidade ou a dor não se acumulem, que a escuridão é às vezes melhor que a luz, e o silêncio melhor que a música, a chuva tão boa como o sol, a companhia e a riqueza tão boas como a solidão e a pobreza escolhidas…

E quem te abre essa porta, quem te explica que isso tem valor? Isso é o que te ensina a poesia.

 

Veja a segunda parte dessa conversa aqui.

Sobre este autor
Cita: Igor Fracalossi. "A Literatura da Arquitetura, uma conversa com Germán del Sol [Parte I]" 02 Mai 2013. ArchDaily Brasil. Acessado . <https://www.archdaily.com.br/br/01-110614/a-literatura-da-arquitetura-uma-conversa-com-german-del-sol-parte-i> ISSN 0719-8906

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