Essa imagem foi publicada em abril de 2013 no artigo “Como o Modernismo ficou quadrado”, com co-autoria de Michael Mehaffy. Ela foi reproduzida várias vezes com as reimpressões do artigo original, e em ensaios de outros autores que discutem nossas ideias.
E ainda assim, a imagem acima reaparece subsequentemente com uma nova legenda que contraria completamente os fatos e muda nossa mensagem original. Editores e autores bem intencionados elegeram a nova legenda "Do Artesanal ao Industrial", que coincide com a ortodoxia modernista na evolução de estilos históricos de desenho. Eles não estão de nenhuma maneira pressionando o modernismo (estando interessados, ao contrário, na minha crítica do projeto modernista): é simplesmente que o dogma é tão convincente na nossa civilização que a troca dos rótulos se torna automática, uma resposta condicionada.
Para ver nossa pequena brincadeira, por favor note que o bule de "estética maquinista" à direita foi feito manualmente em 1879, ou seja, quase trinta anos antes da ornamentada caixa de jóias. A caixa de jóias Art Nouveau, por outro lado, foi produzida em massa depois do bule. Logo, a progressão canônica do artesanal ao industrial pareceria absurdamente que tivesse voltado no tempo, e, além disso, os rótulos artesanal/industrial são opostos a partir do que eles parecem. Eu concluo que a história oficial não é senão um truque. Em realidade, o que aconteceu historicamente foi que uma substancial e saudável indústria de produção em massa de artefatos ornamentados e objetos utilitários foi aniquilada por uma conquista do marketing, não necessariamente pela industrialização.
O "look industrial", além disso, representa uma escolha puramente estética, e não tem nada a ver com a produção industrial. Qualquer leitor pode facilmente verificar que os icônicos mas inúteis artefatos esculturais da Bauhaus e do De Stijl eram todos dispendiosamente feitos à mão para conjurar a imagem de uma "estética da máquina" (enquanto muitos dos seus mobiliários são sadisticamente desconfortáveis). Porém, tais objetos não eram ao menos industriais: eles, na verdade, substituíram objetos produzidos em massa eminentemente práticos, como uma estética extinguiu outra de maneira totalizante. Os típicos apologistas do Modernismo estão portanto completamente equivocados. A comumente aceita racionalização vinda da Bauhaus, que, como muitos dos seus decretos, é pura propaganda, foi inventada sem apoio de qualquer tipo de verdade.
Qual era o real propósito por trás dessa substituição de estéticas? Eu somente posso oferecer uma opinião. (Os escritos de seus perpetradores principais não contribuem, sendo auto-álibis para seus prejuízos estéticos: suas ações revelam uma ainda mais desagradável verdade que as suas palavras negam.) Por volta do salto ao século XX, um punhado de projetistas e arquitetos voltaram-se veementemente contra estruturas vivas e manifestações visuais da vida mesma. Qualquer expressão geométrica de uma forma viva e sua complexidade foram condenadas à extinção. Uma pseudo-filosófica retórica habilmente desonesta convenceu o público de que se tornar devotos desse movimento ideológico era essencial para o progresso humano; que ele de alguma maneira representava o destino manifesto.
A partir daí, a eliminação da vida do ambiente veio ser vista com uma condição necessária ao crescimento tecnológico e desenvolvimento. Tragicamente, muitas pessoas continuam a acreditar religiosamente na desavergonhadamente fabricada progressão modernista "do artesanal ao industrial" ainda hoje. Esse velho artifício de marketing é ensinado como evangelho nas escolas de arquitetura. As pessoas aceitam uma falsa lógica desmascarada por eventos documentados de projeto e produção industrial. Pior de tudo, essa propaganda é cúmplice de preocupações transparentemente falsas para com os pobres e a justiça social.
Essas observação abre novos questionamentos que fazem os atuais projetistas e acadêmicos extremamente desconfortáveis (assim como sentar numa cadeira De Stijl). Todos assumem que várias gerações de arquitetos e projetistas se apropriaram de preocupações éticas e sociais como um tema de direção na condução de suas profissões. De modo similar, se supõe que os acadêmicos dão escrupulosa prioridade à verdade sobre eventos atuais e descobertas científicas. Isso não aconteceu, e ninguém percebeu.
A invenção de uma história fictícia do desenho escondeu uma atitude ainda mais sombria: a negação das próprias natureza humana e natureza biológica. O desenho, procurando ser verdadeiro e útil à humanidade, precisa acomodar tanto nossa anatomia quanto nosso sistema neuro-fisiológico. Utensílios, mobiliários e ambientes desconfortáveis negam o primeiro; enquanto que edifícios e espaços urbanos abstratos, incoerentes, privado de ornamentos, negam o segundo. A natureza biológica ânsia informações estruturais ricamente ordenadas em nosso ambiente imediato, tanto quanto nosso sistema neural precisa de padrões, texturas e materiais naturais. Começando pelo modernismo precoce, tudo isso foi proscrito, e os projetistas contemporâneos continuam trabalhando estritamente com aquela ideologia.
O projetista de computação da Apple, Sir Jonathan Ive, explica claramente o problema: "Nossos competidores estão interessados em fazer alguma coisa diferente, ou querem parecer novos. Eu acho que esses são os objetivos completamente equivocados. Um produto tem que ser genuinamente melhor... não se trata de... um bizarro objetivo de marketing para parecer diferente. [Esses] são objetivos corporativos com escassa consideração às pessoas que usam o produto." Essa citação de uma entrevista de 2012 aplica-se à campanha de marketing notavelmente bem sucessida da Bauhaus, e destaca como nos devemos interpretar o projeto modernista a partir de agora.
Os primeiros modernistas aparentemente acreditaram que isso era sua prerrogativa especial para falsificar eventos históricos e negar necessidades biológicas, tudo pelo interesse em promover uma causa ideológica. Em suas próprias mentes, seus atos justificavam a busca de uma estética hostil à vida, alheia a todas as demais preocupações. Isso inclui ignorar a necessidade comum por verdade. Deixando suas obrigações éticas aos clientes e eventuais usuários de seus produtos, eles isoladamente buscaram um fanático (e em vários aspectos religioso) objetivo. Esses indivíduos deixaram-se levar por um princípio mais alto que os absolveu das obrigações éticas na base de qualquer prática profissional, que estavam em ação antes do Modernismo assumir.
Finalmente, notem que a própria matemática foi descoberta e desenvolvida pelo nosso sistema neuro-fisiológico, graças aos mesmos mecanismos utilizados na descoberta e desenvolvimento de padrões complexos e ornamentais. Negar o segundo é negar o primeiro: o modernismo suprimiu os processos cognitivos e neurais inteligentes que proporcionam a matemática. Claro, arquitetos de qualquer persuasão usam a matemática para alcançar seus fins; entretanto, negando a complexa informação ordenada no ambiente, os arquitetos e projetistas modernistas revelaram um viés anti-matemático, a uma hipocrisia fundamental sobre a natureza humana.
O que é verdade na disciplina de desenho? Várias condições vêm à mente. Primeiro, há verdade nos fatos e eventos históricos, segundo, verdade sobre fenômenos verificáveis, e terceiro, verdade matemática. No entanto, indivíduos e grupos tem frequentemente manipulado esses aspectos da verdade em busca de seus próprios interesses. Se nós achamos algumas vezes a geração de profissionais de hoje desrespeitando as condições de verdade anteriores, esse estado lastimável de acontecimentos parece ser herdado do século passado. Eu sugiro que isso não é um acidente, mas uma condição endêmica surgida de um inculcado modo de pensar.
A verdade matemática tem lamentavelmente sido corrompida para dar uma validez fraudulenta ao projeto modernista. Em matemática, uma verificável sequência de passos vincula um enunciado a outro num sistema que tem uma lógica interna consistente. O problema é que uma sequência verdadeira pode contudo vincular uma falsidade a um resultado que é consequentemente mal interpretado como verdade, ainda que a verdade do resultado dependa da verdade dos enunciados iniciais. O Modernismo inverteu as geometrias naturais: eliminou fractais, cores, texturas, e insistiu em materiais não naturais como o aço, o vidro, o concreto. O truque do Modernismo toma sua premissa não explícita de negar as estruturas vivas, e volta a apresentá-la logicamente como a "estética da máquina".
Discutir esse tópico arrisca gerar alguma controvérsia, especialmente naqueles que foram levados a acreditar inquestionavelmente no poder liberador da "estética da máquina". As pessoas são relutantes em disputar um ditame secular que se tornou uma tradição estabelecida. É impossível desenvolver uma fundação honesta ao desenho, no entanto, na medida em que a profissão é imobilizada por velhos prejuízos e práticas que falsamente vinculam o progresso tecnológico à eliminação da vida.
© Tradução: Igor Fracalossi.
Nota do editor e tradutor
Caros leitores, eu não deveria fazer isso, mas me parece necessário e importante. Todos os que já estudaram ligeiramente e se interessam pelo tema da interpretação sabem que a história é uma sequência de mal-entendidos, desvios, invenções e parcialidades. Estamos falando da historia feita pelos historiadores, que tem o oficio e a preocupação por bem registrar o passado. Na historia da Arquitetura, ou seja, o que pensamos que sabemos sobre o passado da Arquitetura, a situação se acentua. Sendo escrita geralmente por arquitetos, embora com especializações em historia, os mal-entendidos e disseminações são ainda mais preocupantes. O ensaio que vocês acabaram de ler não apresenta ideias novas, apesar de parecer. A suposta ortodoxia modernista já está há muitos anos contra-argumentada. O fato é que o único propósito estritamente modernista foi difundir um novo modo de projetar, propiciado pela revolução industrial e mais objetivamente pelo surgimento da fotografia. O modernismo é uma metodologia. Toda e qualquer ortodoxia formal ou visual foi algo criado por aqueles que comentavam e registravam a sucessão do tempo. O ensaio que vocês leram, apesar da clarificadora comparação da primeira imagem, entre o industrial e o artesanal, reforça uma suposta ortodoxia modernista, que só existiu à medida que a inventaram a posteriori como verdade.