Clive Bell define arte como significant form.
O rabisco não é nada, o risco – o traço – é tudo. O risco tem carga, é desenho com determinada intenção – é o “design”. É por isto que os antigos empregavam a palavra risco no sentido de “projeto”: o “risco para a capela de São Francisco”, por exemplo. Trêmulo ou firme, esta carga é o que importa. Portinari costumava dar como exemplo a assinatura, feita com esforço, pelo analfabeto (risco), com o simples fingimento de uma assinatura (rabisco).
O arquiteto (pretendendo ser modesto) não deve jamais empregar a expressão “rabisco” e sim risco.
Risco é desenho não só quando quer compreender ou significar, mas “fazer”, construir.
1. Introdução
Duas dificuldades se apresentam fundamentais, quando se considera o problema do ensino do desenho no curso secundário.
Primeiro, é que as aulas serão muitas vezes ministradas por pessoas pouco esclarecidas, ou mal esclarecidas sobre o que de fato importa, convindo assim restringir ao mínimo indispensável a intervenção do professor, a fim de que a própria estruturação do programa atue por si mesma, de forma decisiva, na orientação do ensino. Deste modo, sendo o professor pessoa inteligente e mais bem in formada, o ensino dará o seu maior rendimento; no caso contrário, a ação dele tornar-se-á menos nociva.
A segunda dificuldade é que os objetivos do ensino do desenho, nesse curso, são de natureza contraditória. Contradição que os programas não costumam levar na devida conta, estabelecendo-se em conseqüência no espírito dos alunos, uma certa confusão que se vai agravando com o tempo a ponto de comprometer irremediavelmente, mais tarde, no adulto, a capacidade de discernir e apreender no seu sentido verdadeiro o que venha a ser, afinal, obra de arte plástica.
De uma parte, com efeito, o ensino do desenho visa desenvolver nos adolescentes o hábito da observação, o espírito de análise, o gosto pela precisão, fornecendo-lhes meios de traduzirem as idéias e de os predispor para as tarefas da vida prática, concorrerá também, para dar a todos melhor compreensão do mundo das formas que nos cerca, do que resultará necessariamente, uma identificação maior com ele.
Mas, por outro lado, tem por fim reavivar a pureza de imaginação, o dom de criar, o lirismo próprios da infância, qualidades, geralmente amortecidas quando se ingressa no curso secundário, e isto, tanto devido à orientação defeituosa do ensino do desenho no cursos primário, como devido mesmo à crise da idade, porque, então, esses novos adolescentes, atormentados pelas críticas inoportunas e inábeis dos mais velhos, já perderam a confiança neles mesmos e naquele seu mundo imaginário onde tudo era possível e tinha explicação: sentem-se inseguros, acham os desenhos que fazem ridículos, tem medo de “errar”.
Ora, precisamente aquelas qualidades é que irão constituir, por assim dizer, o fundo comum de onde brotarão, mais tarde, as manifestações artísticas quaisquer que elas sejam. Importa, assim, cultivá-las a fim de que os mais capazes, neste particular, possam encontrar naturalmente o seu caminho, ao invés de vê-lo obstruído por um ensino absurdo que ainda apresenta o grave inconveniente de estimular as falsas vocações.
O seu objetivo, entretanto, não é só esse de reavivar, em benefício principalmente dos mais dotados, tais qualidades; é, também o de permitir que, ao terminarem o curso aos quinze ou dezesseis anos de idade, todas as moças e rapazes, indistintamente, tenham, senão a perfeita consciência, – o que só a experiência, depois, poderá trazer –, ao menos noção suficientemente clara do que venha a ser uma obra de arte plástica, não como simples cópia, mais ou menos imperfeita, da natureza, mas como criação à parte, autônoma, que dispões dos elementos naturais livremente e os recria a seu modo e de acordo com suas próprias leis.
Dessa diversidade de objetivos resultam modalidades diferentes de desenho, o que se poderia resumir, para maior clareza, da seguinte maneira:
- para o inventor quando concebe e deseja construir – o desenho como meio de fazer, ou desenho técnico;
- para o curioso quando observa e deseja registrar – o desenho como documento, ou desenho de observação;
- para o ilustrador quando imagina uma coisa ou uma ação e deseja figurá-la – o desenho como comentário ou desenho de ilustração;
- para decorador quando inventa e combina arabescos – o desenho como jogo e devaneio, ou desenho de ornamentação;
- para o artista quando, motivado, utiliza em maior ou menor grau, essas diferentes modalidades de desenho, visando realizar obra plástica autônoma e expressar-se – o desenho como arte, ou desenho de criação;
Ou seja, esquematizando ainda mais para facilitar a aplicação didática:
- para a inteligência quando concebe e deseja construir, o desenho como meio de fazer, ou desenho técnico;
- 2 – para curiosidade quando observa e deseja registrar – o desenho como documento, ou desenho de observação;
- 3 – para o sentimento quando se toca; para a imaginação quando se solta; para a inteligência quando “bola” a coisa ou está diante dela e deseja penetrar-lhe o âmago e significar, o desenho como meio de expressão plástica, ou desenho de criação.
- ensino do desenho, no curso secundário, deve ser, pois, orientado simultaneamente nestas três direções distintas e é imprescindível que as crianças apreendam, logo de início, essa diferenciação fundamental. Nesse sentido, seria desejável que o próprio programa fornecesse ao professor os meios de esclarecer convenientemente os alunos, ilustrando cada uma das modalidades de desenho acima indicadas, como exemplos apropriados.
a) 1º exemplo – Desenho como meio de fazer, ou desenho técnico:
Mostrar como tudo que existe fabricado pelo gênio do homem, viveu primeiro como idéia na imaginação de alguém; explicar que quando a idéia ocorre ao inventor, ele a traduz numa fórmula ou num gráfico, ou seja, um desenho esquemático, desenho bisonho e aparentemente destituído de sentido, mas que significa tudo, porquanto a idéia está contida ali; grifar a importância desse desenho, lembrando aos alunos como, na eventualidade da morte do seu autor, outros poderão retomar, graças a ele, o raciocínio interrompido; novos desenhos em escalas diversas e cada vez mais precisos, para a construção de modelos, depois outros desenhos alterando, aperfeiçoando, apurando, até aos desenhos definitivos de execução, muitas vezes em tamanho natural, e é só então que a humanidade toda aproveita e se beneficia do que foi um dia, simples idéia na imaginação de alguém; acentuar o sentido moral desse esforço comum em benefício da coletividade e, para gravar melhor no espírito das crianças, lembrar quantas centenas e milhares de desenhos não serão necessários para se fazer um automóvel, um avião, ou melhor ainda, um transatlântico.
b) 2º exemplo – Desenho como documento, ou desenho de observação:
Perguntar se todos não gostam de rever, pequenos, em fotografias antigas guardadas no álbum de família e de saber como eram seus pais quando moços e seus avós;
considerar, por outro lado, o quanto é também extraordinário podermos reconhecer, quase como a parentes, tantos homens e mulheres famosos ou anônimos do tempo antigo, apenas porque foram retratados por artistas da época;
considerar, ainda, como seria interessante conhecermos o aspecto da nossa cidade quando começou e como foi que ela depois cresceu; lembrar que essa cidade pode ter mais de um ou dois séculos, talvez mais de três, e que, portanto, o único meio de satisfazermos a curiosidade, é recorrermos aos desenhos e às gravuras antigas, feitos por viajantes ou artistas, que acompanhavam as missões científicas na qualidade de “fotógrafos”;
mostrar estampas com reproduções dessas gravuras;
indagar se não gostariam também de observar os costumes de então; como seriam, por exemplo, as roupas do tempo da Independência, ou as casas quando Maurício de Nassau morou em Pernambuco, – mostrar reproduções dos desenhos ou pinturas de Debret, de Wagner ou Frans Post;
falar diretamente ao coração das crianças para que elas sintam e avaliem devidamente a importância desses desenhos antigos, graças aos quais ainda conservamos um reflexo dos aspectos e costumes de um temo que já foi vivido em “carne e osso” – assim como estamos a viver agora – e, para sempre, passou.
c) 3º exemplo – Desenho como for meio de expressão plástica, ou desenho de criação:
Reconhecer que a fotografia reproduz as coisas com muito maior perfeição que o desenho, mas que, apesar disso, o desenho lhe leva vantagem porque a fotografia, normalmente só reproduz o que vemos: – o alcance dela é, portanto, limitado, ao passo que o desenho cria formas livremente e reproduz e exprime tudo que imaginamos ou sentimos, – o seu horizonte, assim, não tem limites;
não nos é possível, por exemplo, fotografar a nossa alegria, a nossa dor ou a nossa angústia, senão de uma forma convencional e um tanto primária, procurando com a objetiva temas que correspondam, de algum modo, a qualquer desses estados de espírito, ou então recorrendo, artificiosamente, à fotomontagem;
com o desenho, da mesma forma que com a dança, o canto ou a palavra, podemos dar plena expansão àqueles sentimentos;
mostrar como o desenho é capaz de acompanhar, sem esforço, todas as divagações da nossa fantasia;
graças a ele podemos inventar formas inexistentes, combinar bonitos arranjos inexequíveis, balançar meninas gordas em frágeis ramos de roseira, fazer o mar vermelho, a terra azul (*a terra é azul, Gagarin), – tudo é possível com o desenho;
dar, ainda, como exemplo, o sonho: não se pode fotografar o sonho, podemos, entretanto, desenhá-lo, com todos os seus aspectos imprevistos e os seus mais extraordinários pormenores;
lembrar que o cinema também tem esse poder mágico, mas o cinema não revive o nosso sonho e sim outro sonho qualquer, reconstituído com tremendo esforço, à custa do trabalho de muita gente, de mil artifícios e muito dinheiro: desenhar é mais fácil – está ao alcance da nossa mão;
esclarecer, finalmente, que tais exemplos permitem diferençar de um modo literário e superficial o desenho de criação dos demais, mas não o explicam na sua essência como arte plástica, – resíduo a que afinal se reduz e significa sobretudo forma;
é que somente na Quarta Série, com o desenvolvimento natural do curso, essa qualidade plástica fundamental do desenho como arte poderá ser devidamente apreendida pelos alunos.
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E pela mesma razão porque não se obriga ninguém a compreender ou a sentir a boa música, nem todos se devem, tampouco, julgar obrigados a entender e sentir a obra de arte plástica verdadeira, mormente quando, desprendida das escoras da “imitações da natureza”, autônoma, ela se sustenta no muro ou no espaço por si mesma.
Seria conveniente prevenir aqui os alunos contra certas designações impróprias, embora de uso corrente, e umas tantas generalizações simplistas atualmente em voga: a expressão “arte abstrata”, por exemplo, quando aplicada aos mestres da arte moderna é de todo incorreta, pois nunca houve artistas tão cônscios do valor concreto das formas; e tanto mais imprópria porque confunde assunto e “representação” com conteúdo e “significação” quando cabia discernir: não é por seu assunto ou pelo que representam, mas por seu conteúdo plástico e significação, que as obras de arte antigas e modernas terão vida perene;
o grau de significação desse conteúdo é pois o que importa acima de tudo, e uma obra constituída de formas e de cores – sejam elas organizadas segundo preceitos naturalistas ideais, ou abstracionistas – terá sempre sentido pictórico e plástico concreto, não se podendo considerá-la “abstrata” senão do ponto de vista da coisa representada, isto é, do assunto;
daí a impropriedade daquela designação, pois se apega ao secundário em detrimento do essencial; por outro lado, toda manifestação de arte é necessariamente humana: o homem, com a sua paixão e o seu eterno lirismo, estará sempre presente, ainda mesmo quando ela deixe de ser figurativa ou expressionista e se apresente contida, formal e intelectualizada;
o recurso à figura, ao símbolo ou ao mito não é nem indispensável nem incompatível com a técnica moderna das artes plásticas, – ela tanto pode servir-se dele como ignorá-lo;
não se deve, tampouco, aferir do teor “humano” de um determinado conceito de arte pela sua maior ou menor aceitação popular; a popularidade das criações artísticas mais puras não depende apenas da educação e do amadurecimento intelectual das massas, tal como geralmente se supõe, – haja vista a ignorância das chamadas “elites”, cujas prevenções, nesse particular, ainda são mais acentuadas que as do homem comum – mas da sua educação artística, entendida não com propósitos de requinte cultural, mas como o pão e o vinho para os antigos, ou seja, visando atender a necessidades humanas primárias e fundamentais.
O presente programa foi elaborado precisamente com esse intuito de integrar a educação artística, da mesma forma que a literária e a científica, no quadro geral da educação secundária, a fim de possibilitar, aos poucos, um nível coletivo de simpatia, compreensão, discernimento e, como consequência, um grau generalizado de acuidade capaz de tornar a arte do nosso tempo de âmbito popular, pois é de lamentar-se que tantas criaturas que poderiam gozar dessa fonte puríssima de vida na sua plenitude, se vejam privadas dela tão-somente por falta de uma iniciação adequada; iniciação que deve constituir, portanto, a finalidade última do ensino do desenho no curso secundário.
E seria bom o professor fazer, nesse sentido, um apelo ao aluno para que não encare a série final do curso como uma porta que se fecha, mas, pelo contrário, como uma abertura que o predisponha a intuir, num simples traço ou numa elaborada e complexa obra, a presença dessa coisa misteriosa chamada arte.
Lucio Costa, 1940.
© Transcrição e Revisão: Igor Fracalossi