Neste artigo, originalmente publicado no Australian Design Review como "Saudade de um Verde Presente", Ross Exo-Adams examina o medo que está por trás da tendência do urbanismo sustentável, e considera que a crise em meio a qual nos encontramos não pode ser confinada somente para as questões ecológicas.
Na última década, os arquitetos encontraram-se cada vez mais projetando distritos, bairros, zonas francas e até mesmo novas cidades inteiras: um fenômeno que tem sido acompanhado por um compromisso com a ‘sustentabilidade’, que agora aparece inseparável do próprio projeto de urbanismo. Enquanto a 'sustentabilidade' continua sendo um conceito vago, na melhor das hipóteses, ainda assim é se apresentada com senso de urgência semelhante àqueles que impulsionaram muitos dos grandes movimentos da arquitetura moderna frente à frente com a cidade. Implícita a tal urgência está uma referência retórica a um medo coletivo de alguma forma palpável, seja o medo da revolução (Le Corbusier), medo da tabula rasa cultural (Jane Jacobs, Team X) ou o nosso novo medo: colapso ecológico. É óbvio que os inumeráveis projetos "eco" que surgiram em todo o mundo não seriam viáveis se não o fato de eles apareceram em um contexto de catástrofe iminente - uma condição de proporções assustadoras. No entanto, a essência desse medo está longe de ser clara. De fato, à luz da catástrofe ecológica e em meio a qualquer fetiche por moinhos de vento ou por vegetação, os arquitetos têm cultivado o que parece ser uma nostalgia curiosa para o presente - um pragmatismo cuja falta de paciência para o passado procura uma espécie de reconstituição do presente em imaginar qualquer futuro. Então, se não a do caos climático, qual é a verdadeira natureza desse medo que está no cerne dos projetos urbanísticos de hoje, os '"urbanismos ecológicos"?
Saiba mais a seguir
Futuro: Urbanismo Ecológico
Claro que, para falar sobre sustentabilidade hoje, significa falar sobre um futuro projetado, evitando a todo o custo as pretensões de planejá-lo: no mundo da sustentabilidade, o futuro aparece como uma matriz de dados, estatísticas e metas, que tem como objetivo responder à iminentes registros universais de como abordar uma catástrofe. É um futuro não planejado, mas sim gerenciado. Projetar dentro desse mundo é uma tarefa delicada, um jogo entre os perigos desse futuro e a promessa de salvação, tudo transcrito na linguagem objetiva dos fatos. O desenho urbano integra o futuro como uma projeção científica do presente. Se essas projeções são arquitetonicamente vagas, elas são compensadas pelas projeções econômicas resistentes, em torno das quais o projeto urbanístico verdadeiramente está pendendo, sustentar um futuro não somente por razões ecológicas, mas também por razões econômicas.
Na verdade, para dar a tais projetos uma força, a retórica da sustentabilidade mobiliza um novo senso de moralidade em relação a catástrofe ecológica. Desta forma, o discurso sobre sustentabilidade possui um dever de apelo humanitário inevitável e ainda implícito. Como esses ideais alimentam uma economia de boas intenções, eles permanecem além da análise, envolvendo o projeto em uma silenciosa suspensão de julgamento. A linguagem da sustentabilidade desempenha um papel crucial na propagação desse trabalho, pois, longe de transformar radicalmente a cidade, a tarefa de desenho urbano, hoje em última análise, continua a nutrir o projeto de uma maneira diferente, através de um desenho comum com um suplemento retórico da bondade moral. Assim, o projeto de sustentabilidade se desdobra como uma promessa para um futuro apreendido apenas na sua consistência estatística, embora nunca considerado em sua concretização.
Falar sobre o design de tais projetos é em si uma tarefa complicada, uma vez que um projeto verdadeiramente "ecológico", ao invés de resultar de um formalismo arquitetônico, deve emergir dos vários sistemas da natureza que o pré-configuram: agora é tarefa do arquiteto identificar os sistemas espaciais da natureza. A suspensão do julgamento também ajuda a conceder ao projeto urbano uma espécie de liberdade formal, cuja indeterminação reflete as novas complexidades da realidade que o urbanismo ecológico deve agora fazer uso. Várias organizações da natureza são mapeadas no local para assim, oferecer uma disciplina básica estrutural sob as quais a população urbana deve submeter-se humildemente. Complementando gestos como esse, os chamados "corredores verdes" são planejados, que infiltram-se suavemente na cidade, "reconectando" as passagens naturais que a cidade tinha de algum modo bloqueado. Coberturas das edificações são agora densas florestas e passarelas urbanas urbanas aparecem como caminhos florestais. Como uma identidade formal e material, a arquitetura deve desaparecer: é uma necessidade infeliz da cidade que ainda não foi capaz de ser construída sem ela. Em vez disso, ela deve compensar sua carga na natureza com o uso excessivo de vidro - ato triunfal da arquitetura de auto-aniquilação.
Passado: Liberalismo, Natureza, Urbanismo
Apesar de toda a aparente novidade metodológica (ecológica) do urbanismo contemporâneo, a sua novidade é questionável. Se pudermos traçar o nascimento do termo "urbanismo" do século XIX - uma categoria ideologicamente relacionada às políticas emergentes do liberalismo - podemos observar várias ligações importantes com o atual conceito de urbanismo e desenho urbano. Quase um século depois da descoberta dos fisiocratas sobre o "caráter natural" inerente às relações sociais e econômicas, as transformações do estado começaria a perceber o potencial dessa "natureza" através de um programa do liberalismo político do século XIX. E assim como p liberalismo tem suas raízes fisiocratas (o "governo da natureza"), também fez com que o urbanismo se materializasse em um discurso pseudo-científico da natureza, que, em vez de impedir a "naturalidade" inerente da sociedade, procurou fazer uso da sua eventualidade, realidades e fenômenos naturais. No século XIX, os planejadores tinham reformulado totalmente a cidade como um "organismo biológico" onde naturalmente, as "partes funcionais" foram habilitadas por meio de estratégias de conectividade de infra-estrutura. O foco dos urbanistas é políticos tornou-se otimizar os sistemas de circulação para desencadear as capacidades de uma sociedade deixada à sua própria natureza - a "naturalidade" seria realizada através de uma massiva implantação dos sistemas de infra-estrutura moderna. Além disso, vislumbrando a cidade através de uma lente científica assessorada para esgotar a sua consistência política. Ao fazer isso, a forma urbana foi proferida independente da organização real da cidade, que se tornou, ao invés disso, em um sistema expansível de circulação e habitação. Desse modo, a cidade foi composta rigidamente ou vagamente de formas orgânicas, que cada mais desmentem uma indeterminação comum no coração da organização da cidade. Essa condição só se intensificou durante o século XX, desde a Cidade Jardim de Howard até os experimentos modernistas no funcionalismo e o movimento Metabolista entre outros inúmeros fascínios como os sistemas naturais.
Até mesmo como uma lembrança superficial do esquema básico proposto pelo urbanismo ecológico deixa claro que o novo urbanismo "sustentável"se insere confortavelmente dentro da história urbana. Em um nível fundamental, o locus operante de qualquer projeto "sustentável" permanece fielmente dentro dos sistemas de infra-estrutura e das estratégias de implantação no espaço. Além disso, a indeterminação e a permutabilidade desempenham um papel ainda mais forte na categoria de "uso misto" - uma categoria de desenvolvimento comercial que desloca toda a decisão da parte projetual para os caprichos do mercado, garantindo o cisma entre a forma urbana e a organização. Como tal, uma cidade ecologicamente projetada através das considerações do clima, ventos, luz, drenagem de água etc, pode se tornar tão convenientemente "sustentável" para o cliente através da criação de uma espécie de logotipo comercial. Por último, a parte "científica" que acompanha a sustentabilidade é, em geral, um remake das mesmas metáforas que foram aplicadas na cidade do século XIX, propondo a mesma adesão a um dogma positivista, um urbanismo baseado na infra-estrutura. Essa história do urbanismo é perpetuada através da reprodução no presente, cuja o valor é imediatamente coberto pelo espetáculo das novidades da tecnologia. Como tal, o urbanismo ecológico não é nada mais do que o produto do centenário urbanismo liberal, cuja novidade agora inclui estratégias de infra-estrutura para distribuição da "natureza". Essa novidade tenta representar a oposição entre natureza e a cidade obsoleta, uma vez que a cidade agora aparece como uma espécie de salvadora da natureza. No entanto, dizer que o urbanismo ecológico é simplesmente a repetição atual do urbanismo moderno revelaria algo mais sobre os objetivos ideológicos de tal projeto. Primeiramente, a incorporação da natureza dentro do domínio da infra-estrutura é uma ideia nova a medida em que produz uma inversão retórica em relação à virtude inerente do urbano: não mais a fonte da catástrofe ecológica, o urbanismo aparece agora como seu antídoto. Em segundo lugar, devido ao clima neo-liberal em que a sustentabilidade tem amadurecido, a cidade como um todo tornou-se um objeto de investimento privado, criando, talvez pela primeira vez na história moderna, a possibilidade da cidade privada. Essa mudança atingiu seu ápice, em parte, graças ao surgimento do urbanismo ecológico, expondo o desenvolvimento urbano puramente capitalista a um discurso carregado de notas de salvação. Justo quando estava ficando claro que a história da urbanização moderna coincidiu com a história do desastre ecológico, a figura da cidade foi radicalmente transfigurada em uma estrutura tecnológica de redenção, concedendo uma espécie de urgência escatológica para o desenvolvimento em larga escala. Medo, mobilizado pela crise ecológica, permanecerá no centro dessa urgência.
Presente: Crise, Medo, Reforma
Limite entre um futuro desconhecido e não planejado e um passado perpetualmente esquecido, o nosso momento presente tornou-se determinado pela crise. "Crise", no final do século XVIII, tornou-se uma "assinatura estrutural da modernidade", de acordo com Reinhar Koselleck. Através do conceito moderno de crise, o seu significado ampliado foi utilizado como uma força histórica motivacional, legitimando as categorias de "progresso" reformista. As crises, a partir do século XVII, seriam vistas como um registro cíclico da história, cujo outro lado da moeda sera a reforma. Planejadores e arquitetos fizeram uso desse ciclo crise-reforma para gerar força política e econômica por trás dos projetos. A famosa frase de Le Corbusier, "arquitetura ou revolução", é precisamente tal clamor por reforma. E, nas suas proliferações mais contemporâneas, Koselleck nos diz: "[o] conceito de crise, que já teve o poder de representar alternativas inevitáveis, duras e não negociáveis, foi transformado para atender às incertezas de qualquer coisa que possa ser favorecida em um determinado momento."
A falta de determinação evidente no discurso da sustentabilidade e reproduzida na prática do desenho urbano ecológico só é explicável pela indeterminação aparente da natureza com a qual crise ecológica é tratada. No entanto, se a própria consistência da crise ecológica é tão vaga, qual é a verdadeira fonte do nosso medo? Examinando qualquer uma das representações hiper-reais que se tornaram representações comuns de projetos, torna-se evidente que, ao invés de se aproximar da verdadeira profundidade da catástrofe ecológica, esses projetos tratam de uma ansiedade completamente diferente. O apelo à sensação aparece tão proeminente em tais imagens, que muitas vezes pode esconder uma leitura clara do conteúdo real da imagem. Por dentro do ambiente saturado e pela falta de uma distinção entre o primeiro plano e o fundo, aí reside uma liminar implícita para visualizar a imagem com uma espécie de melancolia, como se fosse uma "foto instantânea" de uma vida que aparentemente "era uma vez" - uma imagem que, não indicando nem o passado, nem o futuro, pergunta não o que poderia ser, mas o que deveria ser. Composta pela retórica do desastre climático embutido no urbanismo ecológico, podemos visualizar essas imagens como uma espécie de catálogo visual de tudo que está ameaçado e preservado. Longe de ser uma preocupação com a aniquilação da natureza - a natureza em tais imagens aparece ão como um deserto em perigo, mas como uma superfície abundante e manipulável, um (grande) acessória urbano - ais imagens tornam visível outro medo muito mais profundo e de fato politizado. O que é transmitido é o medo da perda, não da natureza ameaçada e sua capacidade de sustentar a vida, mas a perda das condições que sustentam a utopia liberal ameaçada. Simplesmente retirando os acessórios tecnológicos e vegetais de tas imagens, esse medo da perda torna-se claro: as composições propõem um pouco mais do que uma nostalgia liberal para o presente - um presente que é etéreo, simulado. Os ecos morais nessa estrutura retórica em última análise, serve para disciplinar a imaginação arquitetônica, reduzindo-a em uma reinterpretação patológica do presente.
Se, ao longo da modernidade temos cultivado uma percepção do futuro como algo a ser planejado, hoje damos testemunho a uma nova atitude para com o futuro, que propõe ao invés de controlá-lo. O efeito dessa mudança é uma paralisia do presente, que é, então, perpetuamente monitorado, ajustado e re-administrado continuamente para o futuro. Desta forma, talvez a verdadeira crise que a profissão enfrenta é o tratamento persistentemente liberal da "crise" em si, pois, igual Koselleck disse, como uma "tendência para a imprecisão e indefinição [...] pode-se ser vista como o sintoma de uma crise histórica que ainda não pode ser totalmente avaliada.
Ross Adams possui Mestrado em Arquitetura pelo Instituto Berlage, em Rotterdam, NL, e é bacharel em Ciência Biomaterial pela Universidade de Carolina do Norte, Chapel Hill. Ele já trabalhou como arquiteto e urbanista em escritórios como MVRDV, Foster & Partners, Arup e Productora. Atualmente, ele está concluindo seu doutorado na London Consortium.