O chamado do Chthuluceno para a arquitetura

Questões climáticas têm sido pauta principal nas discussões sobre o futuro das cidades, mas certamente não são novas. O alerta para a irreversibilidade das ações humanas sobre o planeta percorre o discurso científico desde a década de 1980, pelo menos. Frente às urgências ambientais cada vez mais frequentes, Donna Haraway, no livro Staying with the trouble: Making kin in the Chthulucene, sugere uma mudança de atitude da parte humana do planeta para assegurar não apenas uma recuperação ambiental (ainda que parcial), mas a própria sobrevivência da espécie.

O chamado do Chthuluceno para a arquitetura - Imagem 2 de 7O chamado do Chthuluceno para a arquitetura - Imagem 3 de 7O chamado do Chthuluceno para a arquitetura - Imagem 4 de 7O chamado do Chthuluceno para a arquitetura - Imagem 5 de 7O chamado do Chthuluceno para a arquitetura - Mais Imagens+ 2

A autora usa o termo Chthuluceno para defender não apenas uma nova época, mas uma postura que envolve o que ela chama de pensamento tentacular e sympoiesis – a construção sincrônica da realidade. A palavra cthulhu deriva da grega khthonios, que significa “vindo da terra” e, para Haraway, abre-se tanto para a imaginação quanto para o estudo que permite a compreensão do mundo.

O chamado do Chthuluceno para a arquitetura - Imagem 5 de 7
© Qingling Zheng

Para a autora, a época do Chthuluceno toma de empréstimo e adapta a grafia do nome de uma espécie de aranha – Pimoa cthulhu – para tecer relações e histórias entre espécies. Morte e destruição estão presentes, contudo, o Chthuluceno possibilita trocas, nós, entrelaçamentos e alcance crescente.

Nada está conectado a tudo; tudo está conectado a algo. [1]

Tendo em vista a postura relacional do Chthuluceno, é possível incentivar ou perceber essas trocas nos espaços da arquitetura. Seres sociais, os humanos estão inseridos dentro de um contexto maior, mas que, inicialmente, pode ser visto intra-espécie: ninguém faz nada “sozinho”, para que um indivíduo tenha autonomia, existe um grupo de “outros” que participaram da construção daquela pequena realidade. É preciso lembrar que a construção de identidade se dá através da origem e da genealogia, o que pressupõe uma comunidade de semelhantes.

O chamado do Chthuluceno para a arquitetura - Imagem 3 de 7
Cobertura do Instituto Socioambiental - ISA / Brasil Arquitetura © Daniel Ducci

A vida em conjunto sempre foi uma questão a ser respondida arquitetonicamente, em geral, de maneira hegemônica, sempre a favorecer alguns em detrimento de muitos, ou dissociando o indivíduo do todo, como se houvesse uma separação possível. No Chthuluceno, a comunidade tem precedência sobre o individual. Os laços compartilhados por um grupo de pessoas – ligadas hereditariamente ou não – fortalece a colaboração e ajuda mútuas. Em contextos habitacionais, ocupações, co-livings e repúblicas evidenciam a constante negociação entre os moradores, e um tipo de “micro-clima” construído por todos, o que não exclui o dissenso. A harmonia não quer dizer uniformidade.

O chamado do Chthuluceno para a arquitetura - Imagem 7 de 7
Oosterwold Co-living Complex / bureau SLA © Filip Dujardin

A coletividade implica ônus e bônus em suas consequências. O Chthuluceno não é unicamente positivo. Envolve tentativas e erros, e uma certa quantidade de risco. Contudo, as contingências podem gerar outras realidades, alternativas àquela dominante. Espaços habitacionais coletivos demonstram mais claramente o aspecto de gestão compartilhada, e construída por seus habitantes em conjunto. Reconhecer o vínculo tácito ou explícito que se estabelece entre pessoas em qualquer espaço arquitetônico – residências, calçadas, espaços públicos – é compreender o pensamento tentacular e a abrangência de suas influências.

O chamado do Chthuluceno para a arquitetura - Imagem 4 de 7
Gando Primary School / Kéré Architecture © Siméon Duchoud

O uso consciente de materiais estende um pouco mais o alcance da teia de conexões da qual humanos – e arquitetura – fazem parte. A responsabilidade construtiva pode ser vista como uma relação que se expande para além dos agentes vivos – humanos e meio ambiente, com todos os seus integrantes, inclusive os primeiros citados –, e insere a arquitetura no conjunto em pé de igualdade com os demais, como agente inanimado porém ativo. Os exemplos cada vez mais frequentes de materiais construtivos naturais ou uso de materiais da própria região onde o projeto será construído são reflexos do pensamento tentacular aplicado à arquitetura.

O chamado do Chthuluceno para a arquitetura - Imagem 6 de 7
Ningbo History Museum / Amateur Architecture Studio © Iwan Baan

O design biofílico é uma forma de equilibrar a tensão entre humanos e seu entorno ambiental, e os materiais sustentáveis não só exigem menos do planeta, como permitem que a construção que porventura venha a ser desocupada ou demolida também seja reabsorvida ambientalmente. Ou seja, retomando a arquitetura como agente ativo no Chthuluceno, é como se ela também pudesse morrer, assim como seus ocupantes. A construção deixa de ser eterna, e a ruína deixa de ser detrito. Ao invés disso, passam a ser elementos dentro de um sistema em que outros elementos nascem, vivem e morrem. A compreensão do ciclo de vida e benefícios mútuos que permeiam as relações entre seres e objetos terrestres deve ser central para uma existência mais equilibrada entre estes mesmos seres e objetos.

Quais ideias usamos para pensar outras ideias importa. [2]

As relações são o ponto central do Chthuluceno, mas essa tampouco é uma ideia nova. Povos indígenas vivem essas relações há séculos, e seus conhecimentos ensinam outras formas de mundo. A crescente difusão desse conhecimento refaz a imagem corrente de mundo, e traz à tona, para a arquitetura, técnicas vernaculares que podem – e devem – ser retomadas e atualizadas para construir novos espaços. Não se trata apenas da matéria prima da construção, mas da inserção desta no ambiente, e vice-versa. As formas das aldeias e suas habitações ensinam sobre eficiência estrutural, energética e social. Ter acesso a esse conhecimento pode alterar o campo disciplinar e mitigar o dano humano aos seus conTerrâneos.

O chamado do Chthuluceno para a arquitetura - Imagem 2 de 7
Casa Asha / Atelier Marko Brajovic © Gustavo Uemura

Se no Chthuluceno a realidade é construída da simultaneidade das diversas interações entre seres e objetos, a arquitetura certamente faz parte dessa relação. Influencia e modifica seus ocupantes – humanos ou não –, ao mesmo tempo em que é influenciada e alterada por eles. Numa perspectiva mais respeitosa e responsável, as construções devem refletir as relações intra e interespécies que a rodeiam. Não faltarão desafios para isso, muito menos respostas inventivas e cativantes.

Notas:
[1] HARAWAY, Donna J. Staying with the trouble: Making kin in the Chthulucene. Durham e Londres: Duke University Press, 2016, p. 31. Tradução minha.
[2] Ibid., p. 34. Tradução minha.

Galeria de Imagens

Ver tudoMostrar menos
Sobre este autor
Cita: Helena Tourinho. "O chamado do Chthuluceno para a arquitetura" 22 Mai 2023. ArchDaily Brasil. Acessado . <https://www.archdaily.com.br/br/1000497/o-chamado-do-chthuluceno-para-a-arquitetura> ISSN 0719-8906

¡Você seguiu sua primeira conta!

Você sabia?

Agora você receberá atualizações das contas que você segue! Siga seus autores, escritórios, usuários favoritos e personalize seu stream.