Parte da concepção de arquitetura – como se entende desde a modernidade – passa necessariamente pela permanência. A construção tectônica pretende-se durável, e muitas são as reflexões articuladas a partir dessa durabilidade. O que significa, então, associar a arquitetura com a efemeridade? E quando a própria ideia de permanência está atrelada ao transitório? A cerimônia do Shikinen Sengu, no Japão, pode ajudar a responder a essas perguntas.
Dentro do pensamento arquitetônico hegemônico, o monumento talvez seja o primeiro exemplo de permanência na cidade. Representação de algo que se julga digno de memória, o monumento é símbolo dessa intenção de perenidade, mas não é o único. Sedes governamentais, tribunais, templos, propõem-se estáveis para reforçar ideais sólidos, atemporais. Evocam conceitos imateriais, e a arquitetura passa a atuar como uma espécie de invólucro ou forma para esses conceitos. O ponto interessante do Shikinen Sengu é a dissociação entre solidez construtiva e os conceitos a ela atrelados.
A cidade japonesa de Ise é localizada na província de Mie, e abriga o Jingu (templo), cuja reconstrução ocorre periodicamente desde o ano 690, durante o governo da imperatriz Jito. A cerimônia, comumente chamada apenas Sengu, consiste na reconstrução do Jingu a cada 20 anos. O Jingu é um complexo de templos, sendo os principais Naiku (templo interior) e Geku (templo exterior). O primeiro é dedicado a Amaterasu Omikami, deusa do sol, enquanto o segundo homenageia Toyouke Omikami, deusa da agricultura, abrigo e indústria.
Ambos são erigidos no estilo Yuitsu shinmei-zukuri, que reúne algumas características formais para os templos, mas que são inspirados nos armazéns que guardavam os grãos da colheita de arroz na antiguidade japonesa. O Jingu possui estrutura em madeira de cipreste, piso elevado e cobertura de sapê. Como o templo é construído em madeira, a exposição às intempéries e o contato dos pilares com o solo desgastam os edifícios ao longo dos anos, fazendo-se necessária a construção de novos edifícios regularmente. A reconstrução é acompanhada de celebrações e eventos que envolvem toda a comunidade da região, e também são uma forma de manter as tradições, métodos construtivos e técnicas de carpintaria vivos.
O período de 20 anos entre cerimônias é preenchido com etapas da reconstrução: desde a coleta e preparo da madeira até a fabricação das partes do templo. O processo de preparo da madeira que estrutura o Jingu leva 8 anos. A madeira é proveniente em parte de uma floresta do próprio Jingu – que possui um terreno de reflorestamento com um plano de 200 anos para atingir a autossuficiência de matéria prima para o Sengu –, e em parte de outras cidades. As toras são transportadas ao longo do rio, e a cura é feita com submersão das peças em água por dois anos, e secagem por mais um ano.
O preparo exige não só o tempo “lento” necessário para que o material esteja em seu melhor desempenho, como mão-de-obra especializada em sua fabricação e montagem. Assim, as técnicas são passadas ao longo de gerações da comunidade envolvida, mantendo viva uma técnica construtiva ancestral, cujo vitalidade teria se perdido não fosse pela necessidade de construção do novo templo.
Junto às celebrações de preparo da madeira, ocorre uma cerimônia de coleta, limpeza e empilhamento de seixos do rio da cidade para forrar o terreno do Jingu novo. O transporte dos elementos dos templos para o terreno são acompanhados de cortejos, mobilizam Ise e as cidades vizinhas, e configuram um ritual com músicas e interações entre os carregadores dos materiais e o público. Uma inversão conceitual se anuncia na descrição geral do Sengu: memória e tradição tornam-se eternos através da ruína e demolição do antigo templo e construção do templo novo.
Naiku e Geku possuem um terreno vazio adjacente, destinado a receber as construções novas. Depois de erigidos, transfere-se os pertences dos antigos templos para os novos, num ritual que culmina com a transferência do espelho de Amaterasu, que consagra o novo Naiku. O templo antigo é desmontado, e as partes aproveitáveis são utilizadas nos torii (pórticos de entrada do Jingu), transportadas para outros templos do complexo, ou de outras prefeituras, para que se faça a manutenção de suas construções.
Essa constante obra, na visão dos envolvidos, é o que faz o Jingu perdurar ao longo dos séculos, tornando-o eterno. Existem dois aspectos bonitos nessa abordagem. O primeiro é que a permanência não está ligada à arquitetura como obra única, mas à arquitetura como ideia. O que importa não é esse ou aquele edifício específico, mas o modelo do templo, o Yuitsu shinmei-zukuri. A arquitetura é o meio pelo qual as músicas, os costumes, as técnicas sobrevivem.
O segundo é que a própria degradação dos materiais do Jingu evoca o ciclo de vida e morte de tudo que é vivo (e inanimado também, por que não?) na Terra. Além da reabsorção dos materiais após a desmontagem ou demolição – já que se trata de matéria orgânica –, conceitualmente, entende-se que tudo no mundo é transitório e eventualmente deixará de existir. O transitório é passageiro, mas não exclui a noção de ciclos, e estes podem ser entendidos como eternos, afinal, é a perpétua repetição da ordem da vida. A degradação e reconstrução do Jingu refletem o ciclo infindável do tempo, das estações do ano, dos dias, da vida e da morte.
A imagem das ruínas pode trazer uma sensação ambígua ao observador. Por um lado, transmite a melancolia derradeira do transitório, do que se foi para não voltar. Por outro, as ruínas causam certa admiração, e não raro são apreciadas como belas. O Sengu tira a imponência da ruína ocidental, sem negá-la. O Jingu antigo não é abandonado, passa a fazer parte de outros edifícios e, de certa forma, se renova também.
Afora todas as minúcias culturais fascinantes do Shikinen Sengu, o intrigante é a ideia de uma arquitetura “perecível”, e que ganha valor (e eternidade) exatamente por esse aspecto. Uma das questões contemporâneas recorrentes diz respeito aos meios de retomar a ideia de viver e morrer de maneira mais confortável e respeitosa nos tempos atuais. A sabedoria indígena ensina sobre os ciclos da Terra, sobre a eternidade e sobre a comunhão entre humanos e não-humanos. O Shikinen Sengu junta-se ao rol de exemplos que têm muito a ensinar.