A arquitetura contemporânea, como disciplina e prática, jamais nasce do zero. Os projetos realizados hoje são baseados numa série de experimentações que ocorreram desde o primeiro momento que a humanidade começou a conceber os espaços de habitação e convívio. Numa costura intrínseca entre costumes, tradições, materiais locais e técnicas construtivas, surgiram as arquiteturas ancestrais e vernaculares. A influência do contexto e da cultura de cada população pode ser de grande inspiração para profissionais da arquitetura na contemporaneidade que, ao olhar para o passado, conseguem responder eficientemente ao futuro.
Não basta pensar no propósito e estrutura ao projetar. Também é necessário compreender a função social e significante que um edifício pode representar dentro de seu contexto cultural e geográfico. Mais do que oferecer a sensação de pertencimento à comunidade que utilizará o espaço, compreender a cultura local traz importantes soluções espaciais. Ela pode sugerir a organização espacial e funcional conforme o modo como as pessoas interagem entre si através de pátios internos, espaços comunitários, áreas de culto ou outros elementos que sejam importantes para o encontro. Ou apresentar diferentes técnicas tradicionais e materiais locais, que junto da compreensão da habilidade da mão-de-obra, agregam um grande potencial sustentável de transformação social.
Além disso, a organização espacial e funcional junto dos materiais adequados podem brindar um excelente conforto térmico e lumínico sem a necessidade do uso de equipamentos que exigem outros tipos de energia que não as naturais. Trata-se de estratégias que respondem de maneira sensível e eficiente às condições climáticas locais, promovendo a eficiência energética e diminuindo o impacto ambiental.
Mergulhar na cultura local, também é se orientar para decisões em relação à forma e estética. A busca ou reinterpretação de elementos tradicionais, como padrões decorativos e ornamentos, materiais específicos e tipologias próprias, podem ser incorporadas para refletir a identidade cultural e visual da comunidade. Preservando memórias e técnicas diante de possíveis apagamentos e ampliando o repertório arquitetônico de cada região.
Deste modo, projetos que adotam a cultura local durante o seu processo, costumam ter grande êxito e reconhecimento, não só pela comunidade, mas também pela crítica especializada que reconhece o poder inventivo que há em traduzir conceitos locais para técnicas que a contemporaneidade possibilita. Demonstrando o poder criativo de arquitetos que possuem a consciência do seu traço e como ele se estabelece a partir de um saber coletivo, sem apagá-lo.
Abaixo, reunimos cinco nomes consagrados, e que foram bem sucedidos na tarefa de compreender e desenhar a partir das culturas locais, para servir como inspiração:
Anna Heringer
Anna Heringer cresceu numa pequena cidade austro-bávara próxima de Salzburg. Aos 19 anos passou um ano morando e trabalhando em Bangladesh, onde hoje possui a maioria de seus projetos realizados - além de outros países como a China e o Zimbábue.
Em sua prática, a leitura do contexto local é fundamental para cada projeto assim como a sustentabilidade e impacto social que ele pode causar. A arquiteta conta que para ela é imprescindível que os materiais e fontes de energia sejam locais, “com as fontes de energia, penso no trabalho humano”, reiterando que se não for utilizado trabalho humano, "criamos um problema social" e não há um giro econômico na comunidade, que permite diferentes movimentos. Quanto aos materiais locais, a alemã atesta: "Temos materiais locais fantásticos em todo o mundo, só precisamos ver e estar ciente deles. Menos concreto, mais terra - não podemos continuar a construir como fazemos. Aqui na Alemanha, descobri que a solução mais barata é sempre a menos sustentável, enquanto em Bangladesh a solução mais barata também é a mais sustentável".
Balkrishna Doshi
Com uma prática que se baseia na influência das culturas indianas e de seus mestres Le Corbusier e Louis Kahn, Balkrishna Doshi chegou a um equilíbrio entre formas modernas e tradicionais, o que lhe brindou a maior honraria da arquitetura em 2018, o Prêmio Pritzker. Na ocasião, o júri destacou como o uso de pátios, jardins e passagens cobertas, criavam não apenas espaços para proteger do sol, mas também para prazer e conforto dos usuários, gerando uma arquitetura que uniu a pré-fabricação com técnicas locais e "desenvolveu um vocabulário em harmonia com a história, cultura, tradições locais e as mudanças pelas quais seu país de origem passava".
“A arquitetura é uma manifestação da vida e do mundo que acontece por meio de nossas ações como se fosse um pano de fundo”, o arquiteto compartilha em The Promise, curta-metragem sobre sua obra. Uma frase que sintetiza o seu pensar e permitiu a criação de uma arquitetura não apenas enraizada nas sensibilidades de seu contexto, mas que funda ambientes que difundem a tradição indiana e abriga a transformação desta na contemporaneidade. Assim, Doshi criou edifícios que celebram a vida a partir da sustentabilidade social, cultural e econômica. Uma arquitetura que permanece significativa para a comunidade.
Fancis Keré
Quando recebeu o Prêmio Pritzker em 2022, Francis Kéré já era conhecido por sua obra que busca resolver necessidades básicas, orçamentos limitados, técnicas vernaculares, a cultura local e a comunidade que a mantém e constrói. Uma costura que acontece sem sacrificar a beleza da arquitetura. Ao compreender o conhecimento espacial ancestral, principalmente de seu país natal, Burkina Faso, Keré traduz as soluções técnicas a partir de seu olhar. Respeitando o contexto, material e mão de obra, ele implica pequenas mudanças que, junto das comunidades que constroem os edifícios, concebe uma arquitetura que se mescla com o contexto social e geográfico.
Ao relatar os motivos pelos quais Keré ganhou o Pritzker, Nicolás Valencia afirma: "Nas obras de Kéré, nada é supérfluo, mas isso não significa que ele exclua da equação o bom desenho que nos emociona. Ele consegue um delicado equilíbrio entre a reformulação das técnicas locais e o design singular, evitando a romantização da precariedade. Com efeito, Kéré não pretende institucionalizar ou exportar a estética, ou as técnicas construtivas de sua cidade natal, mas entende que esses princípios só funcionam no local a que pertencem e que em seu processo de construção ele pode transferir conhecimento para os trabalhadores e a sociedade, sem cair na ilusão de que os arquitetos deveriam desaparecer para dar lugar a uma comunidade plenamente qualificada."
Marina Tabassum
A premiada arquiteta e professora, Marina Tabassum, tem sua obra intrinsecamente conectada ao seu país natal, Bangladesh. Com um contexto histórico e político conflituoso, hoje o país é marcado por uma alta desigualdade de renda e sofre com calamidades naturais. Fatores que, junto das tradições espaciais locais, conformaram a ética arquitetônica de Tabassum: atenta à responsabilidade social e envolvida com o contexto cultural para que seus projetos causem impactos positivos e enfrentem a crise climática.
Assim, elementos como lugar e memória, luz e espiritualidade, permeiam o trabalho da arquiteta que está, sobretudo, em sintonia com o contexto - seja natural ou urbano - através do uso de materiais locais. Desta forma, ela se baseia em técnicas vernaculares e ancestrais para desenvolver projetos que melhoram a vida das comunidades e respondem aos desafios políticos e ambientais que existem em seu país.
Wang Shu
"A arquitetura não é apenas um objeto que você insere no contexto", explica Wang Shu. "Sua experiência da arquitetura começa longe do edifício. Arquitetura não é apenas a casa em si; mas também inclui uma grande área em torno dela. Tudo isso é arquitetura."
O arquiteto chinês a frente do Amateur Architecture Studio, recebeu o Prêmio Pritzker em 2012 por sua atuação alinhada ao contexto cultural e histórico do seu país. Segundo o presidente do júri da premiação daquele ano, Lorde Palumbo: “A questão sobre a relação apropriada do presente com o passado é particularmente oportuna. O recente processo de urbanização na China convida ao debate sobre quando a arquitetura deveria ser ancorada na tradição ou quando deveria olhar somente ao futuro. Como com qualquer grande arquitetura, a obra de Wang Shu permite transcender esse debate, produzindo uma arquitetura que é atemporal, profundamente enraizada no seu contexto e ainda assim universal.”
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