Como as cores influenciam as narrativas e espaços do cinema

É sabido que as cores evocam sentimentos específicos, portanto são utilizadas para transmitir ou causar um ou outro efeito na superfície em que é aplicada, ou no observador que a contempla. Na arquitetura, a cor desempenha um papel fundamental na definição da forma. Materiais em seu estado natural já possuem uma coloração própria, que é percebida de uma certa maneira. No entanto, quando tingidos de alguma forma, a percepção do observador é alterada, levando a associações de sensações diferentes em relação ao mesmo objeto. Essa transformação na sensação devido à cor ocorre em qualquer meio visual, dos tridimensionais (como arquitetura), aos bidimensionais imóveis e móveis: gravuras, fotografias, pinturas e filmes.

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A cor está intrinsecamente ligada à luz: objetos aparentam ter coloração por causa da absorção e reflexão de certos comprimentos de onda de luz. Ao serem captadas pelo olho, células chamadas cones detectam esses comprimentos de onda e enviam os sinais para o cérebro, que por sua vez, processa a informação para criar a sensação de cor. Na sua essência, a cor se manifesta por meio dos diversos comprimentos de onda de luz que iluminam o ambiente circundante, mas sua verdadeira essência reside nos complexos processos neurais dentro dos olhos e cérebro, e que terminam por moldar (e mudar) a percepção do mundo. Isto significa dizer que a cor é um aspecto essencialmente abstrato e completamente subjetivo. As associações e correspondências de determinados tons com certos sentimentos pode variar de acordo com o período histórico e contexto social. O que é comum na experiência da cor é que o olho humano – quando em seu funcionamento esperado – vê o mundo em cores.

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Hotel Chevalier (dir. Wes Anderson, cinematografia Robert Yeoman, 2007). Captura de tela

No cinema, uma arte capaz de registrar com certa veracidade a vida e o mundo, a inserção da cor não foi suave. Sem a tecnologia que captasse as imagens em cores, os filmes eram coloridos manualmente, até o desenvolvimento de um processo da Technicolor que gravava as imagens já coloridas durante a filmagem. Apesar da resistência de críticos e diretores, que acreditavam que aspectos importantes do filme – como a atuação ou narrativa – seriam perdidos com a “distração” das cores, os filmes coloridos certamente não seriam repudiados. Afinal, o mundo é colorido.


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A própria dualidade entre preto e branco e colorido é explorada no cinema, articulando ideias opostas. O Mágico de Oz (dir. Victor Fleming, cinematografia Harold Rosson, 1939) apresenta o mundo real indolente e monótono sem cores, e, a partir da entrada de Dorothy em Oz, as cores animam um mundo mais interessante e dinâmico que o anterior. Em contrapartida, em Pleasantville (dir. Gary Ross, cinematografia John Lindley, 1998), o mundo perfeito, achatado e fantasioso homônimo é todo em preto e branco, e colore-se à medida que se aproxima da realidade contraditória e conflituosa. Nesses dois casos, o uso da cor acontece entre fantasia e realidade, em extremos opostos. O que poderia reforçar a mutabilidade do que se associa à cor.

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O Mágico de Oz (dir. Victor Fleming, cinematografia Harold Rosson, 1939). Captura de tela

As correspondências de tons quentes com vigor, dramaticidade e eloquência ou de tons frios com placidez e delicadeza acompanham a semântica da arte há séculos. No cinema, essas correspondências foram reforçadas por Natalie Kalmus, chefe executiva do departamento de arte da Technicolor. Para garantir que a câmera e o filme registrassem as cores da forma mais acurada possível, Kalmus escolhia criteriosamente as cores do cenário e figurino que melhor se adequassem à capacidade de gravação do equipamento. Parte da análise de cores de Kalmus ecoam o “senso-comum”: azul representa a harmonia e refresca (ou esfria), e o cinza, por ser uma mistura de preto e branco, está associado à tristeza e à incerteza. Por outro lado, algumas afirmações soam estranhas aos tempos atuais, como o efeito suavizante do amarelo-limão ou o verde opaco como representante da preguiça ou inveja.

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Dor e Glória (dir. Pedro Almodóvar, cinematografia José Luis Alcaine, 2019). Captura de tela

O caráter subjetivo (e mutável) das cores transforma seu uso em mais um meio de comunicação. Tanto que as cores são associadas a posicionamentos políticos, e usadas como signo, contra ou a favor de determinado lado. E instrumentalizadas como tal: os partidos estadunidenses, as eleições da última década no Brasil, a Guerra Fria. O azul e o vermelho, por exemplo, foram explorados no filme Reddishblue Memories (2017) do artista Iván Argote, precisamente sobre a emulsão utilizada nos filmes da Kodak, e como o desbotamento da fotografia “denunciaria” a posição política da empresa.

Os cenários e figurinos de Pedro Almodóvar não só agregam a seus personagens – e seus estilos de vida –, como passam a ambiência emocionada de suas tramas. Além disso, é possível fazer uma leitura histórica do contexto espanhol, com a Movida Madrileña – movimento cultural e artístico surgido com o final da ditadura de Franco – e o estilo CutreLux, uma espécie de mescla espanhola do kitsch e punk. A paleta carregada tornou-se assinatura do diretor, mas é interessante pensar que, juntamente com seus roteiros, as cores “amadureceram” da juventude rebelde para os adultos do século XXI, sem negar o papel formativo da Movida no caráter de Almodóvar, ou no ímpeto de seus personagens, que de certa forma, se constituem dela também.

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Marie Antoinette (dir. Sofia Coppola, cinematografia Lance Acord, 2006). Captura de tela

Altamente colorida, mas bem menos pigmentada, é a paleta – também assinada – de Wes Anderson, onde os tons pasteis predominam, o que certamente contribui para a leitura mais delicada e lúdica de seus filmes. A grande combinação de cores complementam a peculiaridade de seus personagens, suas interações e as situações apresentadas. Enquanto as cores de Anderson trazem sensações tidas como positivas, Sofia Coppola também se utiliza dos pasteis em seus filmes, numa leitura mais melancólica. O esmaecimento das cores, em ambos casos – como a dicotomia preto e branco e cores –, trazem ideias opostas pelo uso dos mesmos recursos.

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Herói (dir. Zhang Yimou, cinematografia Christopher Doyle, 2002). Captura de tela

O emparelhamento de emoções e cores é direto no filme Herói (dir. Zhang Yimou, cinematografia Christopher Doyle, 2002), em que as diferentes versões da história são coloridas de acordo com a intensidade dos sentimentos dos personagens. A interpretação reitera a comparação hegemônica – dos vermelhos turbulentos, para os calmantes azuis e verdes, para o apaziguado branco –, e, de alguma maneira, representam o percurso do indivíduo na prática do Zen Budismo, cujo objetivo é o desapego do mundano. Apesar de a equipe ter declarado que a escolha de cores para o filme foi meramente estética, a interpretação particular cabe ao observador, bem como a percepção das nuances utilizadas. 

A leitura subjetiva das cores é o que permite a exploração criativa em diferentes campos do conhecimento. Ainda que exista uma certa homogeneização das imagens, especialmente em interiores, o mundo circundante não deixou de ser colorido. A significação, associação e correspondência cromática segue aberta o suficiente para combinações diversas. As telas de cinema o provam.

Este artigo é parte dos Temas do ArchDaily: Cor na arquitetura. Mensalmente, exploramos um tema em profundidade através de artigos, entrevistas, notícias e projetos de arquitetura. Convidamos você a conhecer mais sobre os temas do ArchDaily. E, como sempre, o ArchDaily está aberto a contribuição de nossas leitoras e leitores; se você quiser enviar um artigo ou projeto, entre em contato.

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Sobre este autor
Cita: Helena Tourinho. "Como as cores influenciam as narrativas e espaços do cinema" 03 Set 2023. ArchDaily Brasil. Acessado . <https://www.archdaily.com.br/br/1005336/como-as-cores-influenciam-as-narrativas-e-espacos-do-cinema> ISSN 0719-8906

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