A discriminação das mulheres dentro da profissão na arquitetura é um tema que vem sendo abordado com cada vez mais frequência. Inúmeras situações listadas e ilustradas vão desde a discrepância salarial em comparação com os homens, a falta de respeito no gerenciamento de obras e equipes por parte dos funcionários do sexo masculino, a histórica invisibilidade e consequente falta de reconhecimento das mulheres na carreira, entre muitas outras. Diferentes desmotivações as quais fazem com que, mesmo sendo maioria dentro dos cursos de arquitetura pelo mundo, muito poucas são as mulheres que conseguem se consolidar e ganhar destaque dentro da profissão.
Entretanto, o sexismo não para por aí. Além da discriminação sofrida em termos profissionais, é possível perceber a objetificação da mulher também na imagem e nos conceitos arquitetônicos.
A prática da objetificação da mulher é uma herança do sistema patriarcal e da divisão sexual do trabalho que enxerga as mulheres como objetos, seja de beleza ou de prazer, destinados ao consumo masculino, banalizando sua imagem e hipervalorizando a aparência em detrimento de outros aspectos que as definem como indivíduos. Há anos sua aplicação pode ser vista em diferentes âmbitos como no esporte, com o enquadramento das câmeras e o uniforme muitas vezes menor e mais colado ao corpo, ou na publicidade, com as propagandas que colocam um corpo feminino seminu, totalmente voltadas para atrair a atenção dos consumidores. Esses são alguns exemplos mais usuais quando se fala em objetificação da mulher, situações que – tardiamente – estão sendo revistas. Porém, o que quase não se discute é a objetificação presente no meio arquitetônico respaldada por famosas falas e projetos de arquitetos reconhecidos mundialmente.
O arquiteto japonês vencedor do prêmio Pritzker em 2019, Arata Isozaki, por exemplo, era obcecado pelo corpo da atriz norte-americana Marylin Monroe. Para ele, suas curvas eram o simbolismo da perfeição; Monroe para Isozaki era como o modulor para Le Corbusier. Suas obras foram permeadas pelas curvas da atriz desde o design de móveis, com a cadeira Marylin como expoente, até grandes edificações. Ele próprio nunca negou essa influência, relatando em diversos textos e entrevistas sua obsessão, afirmando que as curvas de Monroe eram seu condicionante de desenho e sua inspiração, assim como seriam a topografia ou o contexto para a maioria dos arquitetos. Um dos projetos mais conhecidos de Isozaki e que reflete essa obsessão é o Museu de Arte Contemporânea de Los Angeles.
Ainda que de forma mais subjetiva, o arquiteto brasileiro Oscar Niemeyer teve sua obra marcada pela materialização do corpo feminino, pensamento difundido por sua célebre citação na qual afirma que “não é o ângulo reto que me atrai, nem a linha reta, dura, inflexível criada pelo homem. O que me atrai é a curva livre e sensual. A curva que encontro nas montanhas do meu país. No curso sinuoso dos sentidos, nas nuvens do céu. No corpo da mulher preferida.” Nela é possível perceber o tripé que alimentava o trabalho do arquiteto, mulher, biologia e natureza, em um cintilante erotismo que se materializou em obras tão famosas e mundialmente cultuadas.
Claro que é fundamental entender o contexto histórico desses arquitetos, vivendo um momento no qual a objetificação da mulher não era um assunto em pauta, no qual certas afirmações e inspirações eram banalizadas e não problematizadas como acontece hoje. Entretanto, esse texto talvez não tivesse sido escrito se as associações ao corpo feminino e sua objetificação na arquitetura tivessem parado no século passado.
Em 2012, como afirma Lance Hosey no texto Sexism Is Alive and Well in Architecture, o Conselho de Edifícios Altos e Habitat Urbano concedeu ao Absolute World Towers em Mississauga, Ontário, o prêmio de "Melhor Edifício Alto das Américas" com uma observação do júri a qual dizia que "talvez não seja surpreendente que os edifícios ganharam o apelido local, Marilyn Monroe, com a forma curvilínea e sexy em uma associação óbvia." Detalhe: todos os jurados eram homens.
Do outro lado do oceano, em Melborne, na Austrália, a recém inaugurada Premier Tower com seus 68 andares foi inspirada no corpo da cantora Beyonce, mais precisamente no videoclipe da música Ghost no qual a celebridade se contorce em meio aos véus esvoaçantes. Não entremos aqui na discussão sobre o papel assumido por algumas celebridades no culto ao padrão de beleza e a linha tênue entre se apresentar como feminista ou como objeto sexual. Não vem ao caso. O que interessa nesse texto é lançar luz sobre essas inspirações conceituais que utilizam o corpo da mulher como diretriz fomentando, indiretamente, a objetificação e a hipervalorização da aparência feminina. Legado de um modo de pensar sexista que acaba retroalimentando a própria desvalorização da mulher na profissão, ofuscando suas qualidades intelectuais.
Para finalizar, assim como Hosey afirma, emular os corpos femininos na arquitetura é uma forma de objetificar as mulheres, mas a prática também acaba, muitas vezes, objetificando a própria arquitetura e reduzindo as edificações a meros totens ou esculturas. Apesar de respeitar o processo criativo e as motivações pessoais de cada um, vale ressaltar que estamos vivendo um momento particularmente repleto de estímulos e com grandes questões ambientais e climáticas que precisam ser desenvolvidas por meio da arquitetura, o que por si só já abre uma gama enorme de novas fontes de inspiração que não sejam o corpo das mulheres.