A madeira na construção contemporânea é comumente associada ao aconchego, simplicidade e, de certa maneira, nobreza. Afinal, é um material que exige manutenção mais frequente que o concreto, por exemplo. Ao mesmo tempo, anuncia-se como uma possível alternativa construtiva dentro do pensamento de design regenerativo, precisamente por fazer parte de um ciclo orgânico natural ao planeta. Representantes arquitetônicos do uso da madeira não faltam, mas a madeira carbonizada (ou yakisugi) tem ganhado atenção e protagonismo dentre as opções de acabamento.
O papel da madeira na história da arquitetura japonesa tampouco é novidade. O que espanta o pensamento ocidental é a maneira de “ler” os simbolismos que se podem associar a ela. Por exemplo, a madeira que reveste o banheiro tradicional japonês é exaltada com demasiada provocação por Junichiro Tanizaki em seu ensaio Em louvor da sombra. Diz o autor sobre o vaso sanitário:
A madeira encerada seria ainda melhor, mas mesmo sem nenhum acabamento esse tipo de material adquire tonalidade escurecida com o passar do tempo, e o atraente desenho dos veios proporciona curioso efeito relaxante.
Afora a possível ironia, o ponto que merece atenção na passagem é a ideia de que o desgaste ou envelhecimento da madeira – devido aos processos naturais que modificam sua cor pela ação da humidade – a tornariam mais elegante, mais bela. Em outras palavras, a “deterioração” do material é o que revela seu potencial e sua beleza. É claro que o acúmulo do tempo traz consigo a ideia de uma vida bem aproveitada, ou histórias pregressas e múltiplas, o testemunho de muitos anos. Tais características são apreciadas em culturas e localidades diversas. A inversão que cabe sublinhar aqui é a associação entre a destruição e a vida (útil) do material.
Nesse sentido, o yakisugi é mais um exemplar dessa ressignificação simbólica. Para além do aspecto estético atraente, o tratamento da madeira pela queima é o que garante sua preservação. Assim como o aço corten, em que a camada oxidada protege o material preservado no interior, a superfície queimada da madeira mantém intacto seu núcleo. Tratando de materiais propícios à combustão, a madeira é facilmente elencada como uma das primeiras da lista. Ademais, o fogo também é associado à destruição e ao fim daquilo que foi tocado por ele.
A resistência ao fogo é um fator importante em qualquer construção, e tragédias arquitetônicas devido a incêndios se acumulam há séculos, marcando sempre a perda, o desaparecimento, a ruína e a morte. No Brasil, o incêndio no Museu Nacional em 2018 levantou questões relevantes sobre políticas públicas nos âmbitos culturais e museais através da perda de seu acervo para o fogo. Contudo, um trabalho conjunto dos professores Sergio Azevedo (LAPID, UFRJ), Jorge Lopes e Claudio Magalhães (NEXT, PUC-Rio) e Carlos Eduardo Félix da Costa (Cadu) (LINDA, PUC-Rio) demonstra não apenas o processo da madeira carbonizada como traz a leitura (ou lembrança) de que todo fim significa um novo começo.
A obra consiste na escavação de uma viga de madeira do museu, por uma fresa computadorizada, replicando um vaso da cultura Chimu. O motivo é um felídeo, e o original foi tido como perdido no incêndio até ser reencontrado intacto no processo de resgate. De certa forma, a história do vaso de cerâmica acaba espelhada na sua réplica esculpida: um felídeo intacto escondido sob as cinzas. Esse exemplo não reverte o fato de o incêndio ser uma tragédia, tampouco substitui os itens perdidos, mas levanta, simbolicamente, o caráter cíclico de vida e morte e nova vida dos seres e coisas no mundo.
Retornando especificamente à técnica do yakisugi, o arquiteto e historiador Terunobu Fujimori faz uso dela em seus projetos, em parte pela simplicidade de execução, em parte pela durabilidade da madeira após a queima. No projeto do Lamune Onsen, o arquiteto recobriu a fachada com tábuas de cedro carbonizadas. Devido à extensão das peças e a empena durante o processo de carbonização, os espaços entre ripas foi preenchido com argamassa. O efeito é uma fachada listrada, muito diferente do imaginário comum japonês, mas que, ao mesmo tempo, poderia estar na paisagem de fundo de algum filme fantástico do Studio Ghibli.
Fujimori costuma executar o processo artesanalmente e acompanhado de amadores, em geral, de campos fora da arquitetura. Apesar de trabalhoso, o yakisugi é um processo simples, e, para Fujimori, a diversidade de mãos resulta em diversidade de texturas e “imperfeições”. A heterogeneidade de resultados não vem apenas da mão-de-obra: por ser um material natural, cada peça por si só já difere das demais, e cada uma reagirá de maneira própria à queima. A combinação entre material e mão-de-obra na execução do yakisugi, no caso de Fujimori, também reaproxima a arquitetura ao saber popular ao invés de restringi-la ao círculo especializado.
Atualmente, a madeira carbonizada é produzida industrialmente, o que garante uma queima mais uniforme e de todos os lados das tábuas. De qualquer forma, o aspecto ressaltado aqui é a ampliação do campo simbólico, extrapolando seu uso estético ou funcional. O processo traz consigo a reflexão de que a destruição não é necessariamente algo negativo – afinal, protege a madeira. Torna-se exemplo material do ciclo natural da vida e morte – e pode ser mobilizada dessa maneira em projetos arquitetônicos, ou seja, amplia também o repertório simbólico do campo. É uma técnica secular, e pode ser utilizada e difundida de maneira que inclua mais pessoas no âmbito construtivo.
A matéria-prima orgânica, seu tempo de vida, sua deterioração, tudo isso reforça a vantagem da técnica em contextos ambientais, mas os significados que podem ser mobilizados dela também ensinam sobre vida. A madeira carbonizada pode aproximar a própria arquitetura do fluxo natural de todo ser na Terra.
Este artigo é parte dos Temas do ArchDaily: O futuro da madeira. Mensalmente, exploramos um tema em profundidade através de artigos, entrevistas, notícias e projetos de arquitetura. Convidamos você a conhecer mais sobre os temas do ArchDaily. E, como sempre, o ArchDaily está aberto a contribuição de nossas leitoras e leitores; se você quiser enviar um artigo ou projeto, entre em contato.