O percurso histórico da construção conta, também, a história da humanidade. Os exemplares que perduraram no tempo dizem sobre seus contextos particulares, e os resquícios que sobreviveram às intempéries e deterioração narram o desenvolvimento tecnológico humano. Nos primórdios da construção, a operação comum (e a única possível) aos humanos era utilizar matéria-prima disponível do local onde estavam inseridos. Para muitos, isso significava construir com barro.
Desde o desenvolvimento de técnicas construtivas mais duradouras, materiais mais resistentes e que permitem composições formais mais variadas, a construção com terra está mais associada a contextos tradicionais e históricos, ecológicos, ou sociais — no caso de contextos rurais. De todo modo, no Brasil, sistemas construtivos com terra remontam à colonização e à mestiçagem decorrente dela. O processo de construção da taipa é um dos mais conhecidos, e possui o que se poderia chamar de duas variações: a taipa de mão (ou pau a pique) e a taipa de pilão.
Taipa de mão
Estima-se que esse sistema já estivesse em uso por volta de 5.000 a.C., e consiste na vedação de uma trama de madeira com uma mistura de terra crua — isto é, sem queima — e palha ou material vegetal. Normalmente, utiliza-se varas de madeira verticais fincadas no solo ou presas à fundação amarradas a madeiras roliças horizontais (em geral mais finas), resultando numa malha quadriculada sobre a qual será aplicada a terra, em ambas as faces da tela.
A técnica do pau a pique brasileiro consolidou-se a partir da combinação de técnicas dos colonizadores portugueses e de populações escravizadas africanas. Frequentemente, a taipa de sopapo era utilizada nas paredes internas das casas grandes, pois eram mais leves, e na construção das senzalas, reiterando um tipo de hierarquia social através da arquitetura. Como costuma ocorrer, a taipa de mão acabou associada a um tipo de edificação mais pobre e transitória, portanto, preterida no rol de exemplos das “grandes” arquiteturas brasileiras.
Todavia, essa técnica mobiliza conceitos significativos na mudança de postura demandada da disciplina. Por exemplo, permanece como exemplar vivo de um tipo de construção tradicional brasileira, além de desdobrar-se em práticas coletivas que configuram patrimônio imaterial, como a dança. O processo de pisar a terra para atingir a textura maleável necessária à aderência e manuseio sobre a estrutura de madeira, em algumas regiões, era comumente acompanhada de cantos, enquanto a dança se fazia no ritmo da pisada. A dança do coco pode ser entendida como uma transposição gestual, uma arquitetura invisível. Esse tipo de relação instiga porque toca os limites (ou falta deles) da disciplina como um todo.
A taipa de mão também é estigmatizada pela associação com a doença de Chagas, causada pelo protozoário Trypanosoma cruzi. Embora a construção possa abrigar os vetores transmissores da doença — insetos como o barbeiro —, a propagação desta é resultado da perturbação e desequilíbrio do ecossistema do qual os transmissores fazem parte. A alteração do território que ocupam e diminuição de predadores contribuem para o alojamento dos insetos nas construções. É preciso que as construções sejam devidamente revestidas — o que pode ser feito inclusive com argamassa de terra —, e as políticas públicas contemplem sistemas de autoconstrução, de forma que o conhecimento popular e tradicional possa se valer de investimentos e melhorias técnicas, o que seria dar seguimento à história da construção.
Taipa de pilão
Esse sistema já era usado por volta de 4.000 a.C. na região da Mesopotâmia. O processo se dá pela compactação da terra dentro de formas de madeira (taipal), em camadas de aproximadamente 15 centímetros. A forma é posicionada sobre o solo ou fundação (comumente sapata corrida), a terra é colocada dentro dela e apiloada. Quando compacta, uma nova camada de terra é sobreposta à anterior, e o processo é repetido até que se encha cerca de 2/3 da forma. Em seguida, a forma é desmontada e posicionada novamente sobre a parede erguida, e a sequência recomeça até que se atinja a altura desejada.
No Brasil, a taipa de pilão era o sistema construtivo trazido dos portugueses. Fortemente associada às regiões de Goiás e São Paulo, onde havia menor disponibilidade de pedras, a técnica em questão tornou-se uma espécie de sinônimo das construções bandeiristas. Estes edifícios possuíam plantas retangulares com salas centrais e alpendres, o que levou Luís Saia — então funcionário do antigo Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, hoje IPHAN — a levantar a possibilidade de as casas bandeiristas emularem as villas de Andrea Palladio. Neste quesito, não parece de todo surpreendente que a arquitetura brasileira tivesse sua fase neoclássica.
A taipa de pilão foi amplamente utilizada na região paulista dos séculos XVII ao XIX, e teve seu registro histórico e patrimonial resguardado pelo então SPHAN, já no século XX, graças ao envolvimento de nomes como Mário de Andrade, o já citado Luís Saia, Rodrigo M. F. de Andrade e Lucio Costa. A Capela do Morumbi, em São Paulo, é um dos exemplos marcantes deste processo construtivo. Originalmente parte da Fazenda do Morumbi, as ruínas remanescentes de uma construção em taipa de pilão foram restauradas e complementadas com alvenaria de tijolos pelo arquiteto Gregori Warchavchik, que as interpretou como programa religioso.
Essa atitude perante o projeto determina o resultado: Warchavchik mantém a linguagem arquitetônica colonial própria ao edifício restante, ecoa exemplares relevantes deste período arquitetônico — que são as igrejas —, mas faz uso do sistema construtivo comum a seu próprio tempo, sem fugir da matéria-prima: o tijolo de barro. Atualmente, a Capela do Morumbi faz parte do conjunto de edificações que compõe o Museu da Cidade de São Paulo.
Ambos casos são exemplos construtivos históricos brasileiros, e igualmente dignos de proteção patrimonial. Tanto a taipa de mão quanto a taipa de pilão configuram sistemas tradicionais e representantes do chamado saber-fazer popular, que seguramente é mais flexível que aquele técnico-científico, especialmente quando se trata de construção.
Isso não quer dizer que são a melhor solução para qualquer contexto: o desempenho estrutural deixa a desejar na resistência à tração, e as vedações não devem estar em contato direto com o solo, tampouco com umidade. Quer dizer, como com qualquer sistema construtivo, as taipas exigem determinados cuidados. A aproximação desses sistemas traz a possibilidade de construir sem o deslocamento de materiais estrangeiros à região da construção, afinal, a matéria-prima é proveniente do próprio local. O preparo in-loco também é uma qualidade, já que não requer mão-de-obra especializada, o que torna a situação semelhante a um canteiro experimental, ou ao canteiro cujo nome nem é esse. É parte do cotidiano, o saber-fazer da forma mais explícita e aplicada possível.