As relações entre as águas e as diferentes vidas que habitam a Amazônia. Este é o ponto de partida para a primeira Bienal das Amazônias, que reúne 120 artistas de todos os países que abrigam o território da maior floresta tropical do mundo. Sob o título “Bubuia: Águas como Fonte de Imaginações e Desejos” a mostra tem a curadoria de Keyna Eleison e Vânia Leal, com colaboração de Sandra Benites e Flávia Mutran na conceituação do projeto, e está em cartaz em Belém. A exposição ganhou forma num edifício que foi remodelado para recebê-la e traz em sua expografia um diálogo constante com os materiais e culturas da região. Conversamos com a arquiteta Juliana Godoy, responsável pelo projeto expográfico, para saber como as subjetividades amazônicas foram traduzidas e conceitualizadas no âmbito espacial.
(Victor Delaqua/ArchDaily): Esta é a primeira Bienal das Amazônias, qual é o conceito por trás da exposição?
(Juliana Godoy): O tema proposto pela curadoria da exposição é inspirado na obra de João Paes Loureiro. Escritor e poeta, é ribeirinho e mora no interior do Pará. Há algum tempo, ele discorre sobre o termo “bubuia”, que é muito interessante como conceito da natureza e sua força. Bubuia remete à imagem do pescador que está navegando pelas correntezas do rio e amarra seu barco num tronco de árvore, ou outro objeto que esteja flutuando no sentido da correnteza, de modo que as águas façam às vezes do remo e dos braços do pescador e então este esteja de bubuia pelo rio, seguindo o tempo e o ritmo da água. Um estado no qual a pessoa se permite tirar o foco do próprio trabalho e a exaustão do dia a dia. Assim, é possível relaxar o corpo, deixar o pensamento livre e estar mais à disposição do fluir da natureza.
É deste ponto de vista que o tema da exposição e também a expografia se desdobram, sobre como o fluir das águas entre os territórios amazônicos os conecta. Um pensamento curatorial que busca compreender quais fatores ligam os artistas que além de nascer numa mesma região, lidam com a natureza, vivem nela ou refletem ela. Essa intersecção é dada pela questão da água e seus contornos que influenciam o projeto expográfico e também os diferentes cotidianos de quem habita aquele lugar. Assim, a expografia tem como partido um espaço que seja fluído como um rio, que fuja da rigidez e da obviedade, que não seja hermético ou que se trate unicamente de exibir as obras de arte sistematicamente.
Como você traduz este pensamento para o espaço?
Essa imagem da água como ponto de partida faz com que tudo tome novos sentidos. É um convite para se deixar estar de bubuia pelo espaço expositivo. Se imaginar dentro d'água por todo o percurso. Fugindo da ideia da criação de um cenário contundente, ela se expressa através da sutileza dos materiais.
As cortinas, em tecidos naturais de algodão com tonalidades terrosas, correm pelo espaço em formatos curvos, desenham os ambientes, criam salas para vídeos e também carregam obras suspensas em seu caminho. Os painéis, feitos em estruturas mistas de madeira e dispostos em implantações ortogonais, são responsáveis por gerar novos espaços expositivos e serem suportes de obras bidimensionais. A contraposição entre o fluir dos rios e a materialidade das construções ribeirinhas surgem sutilmente pelo caminho, enquanto o público vai se deparando com as obras de arte. Tudo flutua, nada toca completamente o chão.
A mostra acontece num edifício que não foi pensado para abrigar exposições. Como ocorreu esta implementação?
O prédio se tornou uma surpresa muito boa. Os pontos mais interessantes são a sua localização e sua amplitude. Com aproximadamente 8 mil metros quadrados e localizado na área do comércio - como é chamada na cidade, bem na zona central de Belém -, antigamente abrigava uma grande loja de departamentos. Muitas pessoas têm nele uma referência de histórias de infância e uma certa nostalgia. A área do comércio, por sua vez, é um lugar muito pulsante, colorido, fluorescente, com muita música, ruídos e cheiros diversos. As pessoas que circulam nesta região, em sua maioria, não conformam um público que costuma frequentar exposições de arte, e enxergamos isso como uma oportunidade para lidar com o recorte dessa instituição que está sendo criada. Assim, o projeto expográfico buscou responder ao desafio de estar no centro e atrair este público espontâneo para conhecer a fundação e a exposição.
Para isso, uma das primeiras intervenções do projeto se dá no térreo. Deixamos uma área de quase mil metros quadrados com grandes espaços sem muita ocupação, além de algumas infraestruturas da bienal, um painel de entrada e um grande redário. Praticamente nenhuma obra de arte se encontra nesse ambiente, com isso foi possível manter as portas sem catracas ou detectores de metal comumente utilizados em entradas de espaços museográficos e responsável por afastar muito do público espontâneo. Além disso, o fato de não ter tantas obras logo no início, possibilita que o corpo vá sutilmente se acostumando com o espaço e possa entrar mais solto, sem aquela rigidez que muitas vezes nos exigimos ao entrar repentinamente em algumas exposições. A vontade era de que as pessoas se sentissem convidadas a entrar, a usar as redes como um descanso do tempo quente lá de fora e, uma vez lá dentro, o interesse em descobrir o que mais teria naquele espaço talvez viesse de forma natural.
Outro fator importante do prédio está no fato de sua configuração estrutural ortogonal, que oferece grandes vãos livres e distintos pés-direitos com tamanhos consideráveis no térreo e no último andar, enquanto os níveis intermediários possuem alturas menores. São configurações espaciais distintas que foram fundamentais para distribuir as obras de arte de acordo com suas especificidades. Assim, as diferenças foram utilizadas a nosso favor para criar escalas diversas, de lugares mais reservados, das salas de vídeo às grandes instalações.
Na sua prática, você costuma fazer uma pesquisa de materiais que envolvem o contexto a ser abordado pela exposição para compor o projeto. Como essa experimentação ocorreu aqui?
Além de como utilizar o material, gosto de imaginar como ele vai se transformar em conceito. Para mim, a escolha de poucos materiais e a forma de abordá-los é sempre suficiente para trazermos certas conexões de forma sutil, como se encontrássemos a essência material de cada projeto.
Na pesquisa para a Bienal das Amazônias, me vinha sempre essa ideia sobre o que é natural em contraste ao que é sintético, materiais de qualidades distintas que, apesar de contrastantes, são familiares a quem habita a região. Os tecidos dos três primeiros pavimentos são todos de algodão natural com tingimento em tons terrosos. Utilizamos redes e cordas de pesca em nylon tanto para o redário como para o mobiliário dos educativos, onde elas aparecem de formas diferentes como fechamento e espaço de descanso. Trabalhamos com madeiras legalizadas da região que possuem uma tonalidade escura muito específica e, por último, optamos pelo espaço de encontros e performances ter um tecido contrastante, fluorescente e sintético.
Junto disso vem sempre a pergunta, o que eu realmente preciso construir? Sempre me pergunto isso quando começo um projeto. Nesse conceito de expografias que se desmontam a cada pouco tempo e acabam gerando muito descarte, para mim é importante construir o mínimo e reaproveitar ou criar formas que se aproveitem sempre que possível, além de optar por materiais que permitam essa mobilidade.
Por isso, todo o projeto da Bienal das Amazônias é pensado de forma construtiva modular, tanto para os painéis - as estruturas são todas de encaixe e trabalhadas dentro da modulação das chapas de MDF, permitindo a desmontagem e novas montagens -, como para as cortinas, em que as estruturas se desconectam e formam salas menores, que podem se adaptar a outros espaços. Assim, é possível reaproveitar todo o material de inúmeras e distintas formas.
É a partir dessa modulação e da materialidade que os espaços educativos também se destacam, certo?
Sim. São quatro espaços educativos e todos foram nomeados de acordo com materiais. Cada espaço tem um pensamento de fazeres e materialidades. Um deles se remete ao Miriti, a “madeira mole” utilizada no Norte para fazer brinquedos e outros objetos. Nele, a manualidade é trabalhada, o contato com sementes e outros objetos surge como partida para o diálogo com o público. Outro espaço é o de encontros e performances que é inspirado na aparelhagem, nas luzes fluorescentes, nesse contraste que convive juntamente. É o único espaço no qual utilizamos o tecido sintético com uma cor mais aberta, para criar uma experiência que lembra o encontro com um guará no meio da floresta: um ponto vermelho em meio à imensidão verde. Além disso, os mobiliários são todos modulares, tanto as mesas quanto as arquibancadas, o que também permite essa possibilidade de diferentes usos tanto na edição da Bienal quanto para destinos futuros.
Para mais informações sobre a Bienal das Amazônias, acesse o site oficial.