Qualquer historiografia da arquitetura é implicada e incompleta por definição: implicada porque demonstra a interpretação e curadoria dos exemplares daquele que a escreve, e incompleta porque, nessa seleção, exemplos desviantes acabam ficando de fora da linha do tempo “oficial”. Todavia, a possibilidade de rastrear formas, sua aplicação e repetição ao longo de períodos históricos separados por séculos é sempre um bom indício de uma genealogia, uma linhagem que situa exemplares e amplia repertório.
Uma historiografia da arquitetura pode ligar elementos de séculos passados e movimentos entendidos como “superados” com formas e aplicações contemporâneas, criando um campo de relações das quais se pode tirar proveito conceitual e projetualmente. Ao se categorizar alguns estilos, ressaltam-se características marcantes que, postuladas nas fontes bibliográficas, por vezes se emparelham a casos atuais. É o que se pode dizer do rococó, por mais longínqua que a relação pareça.
A própria posição do rococó na historiografia da arte e arquitetura não é um consenso: pode ser entendido como uma variação do barroco ou como um movimento e estilo em si mesmo, surgido em resposta ao anterior. Como o barroco, o rococó tampouco é universal. Os motivos gerais podem até ser categorizados, mas a região onde está inserido, o contexto social particular a essa região e o ano da construção modificam substancialmente a aplicação dos motivos. Tudo isso torna o consenso mais difícil, e os exemplos mais ricos – o que, no fundo, é uma qualidade do movimento.
Se as classificações por datas e funções oferecem poucos problemas, as por estilo, ao contrário, têm o inconveniente grave dos significados variados que podem ser conferidos aos termos estilísticos por historiadores diversos, em diferentes épocas e países. […] Deve-se aceitar preliminarmente que, embora úteis e até mesmo essenciais, os termos estilísticos são até certo ponto subjetivos, carecendo de maior precisão. Discussões como a da classificação de um edifício como pertencendo ao estilo da Contra-reforma, do barroco inicial ou do maneirismo refletem apenas compreensões diferentes do significado dos termos. [1]
Com a devida ponderação em mente, pode-se elencar as características principais do rococó, e traçar o contexto que permitiu sua manifestação. O seu surgimento ocorreu em meados do século XVIII na França. O nome é uma derivação da palavra rocaille, um tipo de ornamentação com conchas e rochas, traduzido livremente como rocalha, uma conta de vidro utilizada em colares e rosários. De certa maneira, seria o ornamento em prol da beleza pura e simplesmente.
É claro que os signos (e nomes) trazem consigo significados e conceitos, e o rococó não é apenas uma questão de ornamentação. Se um dos objetivos do barroco era reforçar o poderio da igreja católica, o rococó marcava a ascensão da aristocracia ao poder, distanciando-se do contexto religioso. Em termos formais, essa mudança indica a transição de temas sacros para aqueles mais “frívolos”: cenas de gênero, festas galantes, pinturas mais suaves e sensuais.
Ora, se o foco principal não é mais o drama e exagero ligados à salvação, os ornamentos ganham outro tratamento. Tanto o barroco como o rococó se valem de dinamismo nas formas, movimento e opulência, mas o último suaviza as cores e as figuras retratadas. Os gestos ficam mais suaves, e a ostentação em mobiliários e objetos decorativos ganham destaque. Como no barroco, existe a opulência extrema, mas desprovida do peso divino. É como se a beleza fosse reivindicada como mundana. Não parece de todo surpreendente que o neoclassicismo e Iluminismo o sucederam.
O período também enfatiza os interiores extremamente trabalhados. Pinturas que imitam mármore, ornamentos, curvas sinuosas, cores claras e suaves e iluminação abundante através de aberturas que se estendem até o chão (as chamadas janelas francesas). Enquanto o barroco ainda se valia de uma base clássica sobre a qual se desenhavam os motivos dinâmicos, o rococó afasta-se das proporções canônicas para exprimir assimetria e movimento puros. Além disso, a escala diminui consideravelmente – afinal, não se trata mais da representação do Paraíso –, o que não significa pequenas edificações, pois ainda se trata da elite europeia.
A abrangência do estilo tampouco contribui para sua unidade. A difusão da linguagem ocorreu por meio de gravuras, mas não teve tanta influência na Inglaterra, Espanha ou Itália. Em contrapartida, o norte de Portugal e Alemanha fizeram uso de seus signos determinados por contextos locais: associados ao barroco, essencialmente religioso. Em parte por isso é possível entendê-lo como uma derivação do barroco, onde prevalecem os temas religiosos e a suntuosidade ornamentados em tons suaves ou pasteis. Considerando-se o tempo cronológico no qual vigorava o estilo e a duração de transmissão e influência, é natural que nas Américas o rococó tenha “chegado” fortemente ligado ao barroco.
Este último estava vigente no Brasil no século XVIII, quando o rococó francês já estava em voga. Por esse motivo, as próprias obras de Antônio Francisco Lisboa (Aleijadinho) são frequentemente interpretadas como barroco-rococó. Cabe a observação de que a primazia e originalidade deste construtor era tamanha que o historiador John Bury defende um estilo próprio dedicado a ele, o Estilo Aleijadinho. Esse tipo de colocação reforça a pluralidade do estilo, e suas inúmeras interpretações de acordo com seus próprios autores, totalmente sujeitos a seus contextos e interesses.
Variação do barroco ou estilo autônomo, o rococó sucumbe aos ideais neoclássicos de harmonia, simetria e solenidade clássicas no final do século XVIII e início do XIX. O dinamismo alegre e “desregrado” passa a ser descreditado como mero capricho e puramente decorativo, sem “grandes valores” subjacentes. Apesar de curto – sua manifestação tem seu apogeu e ocaso em um único século –, o rococó atesta a mudança de valores da elite detentora de poder. Graças a essa transferência, as obras comissionadas deixaram de vir prioritariamente da Igreja, o que certamente contribuiu para maior exploração de técnicas, linguagens e temas.
Situar o rococó (e seu contexto) na historiografia da arquitetura permite relações transeculares, ainda que muito incipientes. Por exemplo, é possível relacionar o uso das cores suaves com a tendência mais contemporânea dos tons pasteis? As aberturas mais generosas podem ter influenciado de alguma forma os grandes panos de vidro modernistas – por mais que os arquitetos modernistas o neguem? Interiores maximalistas evocam o rococó com mais facilidade, mas como não pensar na intenção da “obra de arte total” do Art Nouveau? Uma historiografia arquitetônica permite relações intuitivas, que obviamente carecem de pesquisa e estudo, mas que não deixam de ser fonte de inspiração a qualquer século. Como bem disse Bury, “características específicas de edifícios podem receber graus de avaliação distintos, segundo o crítico que as analisa.” [2]
Notas:
- BURY, John. Termos descritivos de estilos arquitetônicos. In: BURY, John; DE OLIVEIRA, Myriam Andrade Ribeiro (Org.). Arquitetura e arte no Brasil colonial. Brasília: IPHAN / MONUMENTA, 2006, p. 207.
- Ibid., p. 207.