Acertos e contradições no retrofit dos centros urbanos: o caso de São Paulo

Considerada em 2022 a quinta cidade mais populosa do mundo, São Paulo é formada por uma imensidão de desafios “dignos” dos seus mais de 22 milhões de habitantes. Entre os inúmeros problemas urbanos enfrentados, o esvaziamento do centro histórico da cidade tem sido notícia recorrente há pelo menos quatro décadas,§ com governos anunciando medidas que poderiam reverter a situação. Nesse meio tempo, o mesmo centro presenciou o aumento das ocupações de moradia em prédios abandonados, trazendo à tona não apenas a importância da sua ressignificação, mas também sua vocação habitacional.

Nesse contexto, entre as medidas estatais para “reviver” o centro de São Paulo, uma em específico ganhou notoriedade. O Programa Requalifica Centro foi divulgado em julho de 2021 e estabeleceu incentivos fiscais para estimular os projetos de retrofit do centro da cidade tendo como alvo edificações localizadas no perímetro especificado e construídas até setembro de 1992. Alguns dos incentivos apresentados são isenção de IPTU nos três primeiros anos, emissão do certificado de conclusão de obra; aplicação de alíquotas progressivas para o IPTU pelo prazo de cinco anos, redução para 2% da alíquota de ISS para os serviços relativos à obra de requalificação (engenharia, arquitetura, construção civil, limpeza, manutenção, meio ambiente); isenção de ITBI aos imóveis objetos de requalificação, isenção de taxas municipais para instalação e funcionamento por cinco anos, entre outros.

Acertos e contradições no retrofit dos centros urbanos: o caso de São Paulo  - Imagem 3 de 4
Centro de São Paulo. Image by José Marques de Oliveira licensed under the Creative Commons Attribution-Share Alike 3.0 Unported license.

Ainda na época da divulgação do programa, a arquiteta e professora Raquel Rolnik apontou os possíveis problemas que prática poderia acarretar. Entre eles, Rolnik citava a ausência de garantias e incentivos especiais para que se produza habitação acessível nesses prédios. Ou seja, “a luta pela habitação de interesse social em nome da qual a prefeitura justificou a pressa e o interesse público do projeto, está ausente nesta lei”.

Em 2023, completando dois anos desde que o programa entrou em vigor, os moradores de São Paulo começaram a colher os frutos da iniciativa. Estima-se que ao longo desse último ano, a prefeitura de São Paulo autorizou em média uma obra de retrofit de prédios centrais a cada 18 dias. Desde março, 11 projetos receberam Alvará de Requalificação, dentre eles, nove terão espaços destinados à moradia e dois irão abrigar salas de escritórios e espaços de eventos.

Na teoria parece a fórmula perfeita. Entretanto, em outubro deste ano, foi inaugurado o primeiro imóvel contemplado no programa Requalifica. O edifício Renata Sampaio Ferreira é considerado um ícone modernista da região, projetado pelo arquiteto Oswaldo Bratke e localizado em frente ao famoso Edifício Copan, no bairro República. O prédio permaneceu praticamente abandonado por dez anos, com somente dois inquilinos distribuídos em seus 12 andares.

A reforma foi feita pela construtora Planta.Inc. e a proprietária irá alugar as unidades do edifício em parceria com outra empresa, a Tebas by Blueground, em um modelo de negócios semelhante ao do Airbnb. Segundo o site Metrópoles, os valores de aluguel variam de R$ 5,5 mil a R$ 20 mil para locações mensais, já as estadias curtas variam de R$ 500,00 a R$ 2 mil por noite. Valores elevados quando comparados à realidade da maioria da população e que servem como um demonstrativo do público que esses novos edifícios esperam contemplar, concretizando o problema alertado por Rolnik e endossado por diferentes frentes ainda em 2021.

Acertos e contradições no retrofit dos centros urbanos: o caso de São Paulo  - Imagem 2 de 4
Edifício Renata Sampaio Ferreira. Image by Ana María León. Flickr licensed under CC BY-NC-ND 2.0 DEED. Attribution-NonCommercial-NoDerivs 2.0 Generic

A história, no entanto, ganhou um capítulo a mais quando na mesma festa de inauguração do edifício Renata Sampaio Ferreira, o atual prefeito da cidade, Ricardo Nunes, anunciou um novo incentivo aos retrofits do centro de São Paulo que contará com a injeção de R$ 1 bilhão no programa Requalifica Centro. Essa estratégia vai além dos incentivos fiscais, tributários e urbanísticos inicialmente concedidos pelo programa. Com ela, o município destinará recursos para a subvenção dos retrofits, ou seja, a prefeitura fará uma transferência direta de receita para as empresas qualificadas.

O anúncio do prefeito feito justamente na inauguração de um edifício com uso voltado para um público bem específico causou descontentamento e estranhamento por parte da população. Ricardo Nunes, quando confrontado, citou o conjunto de ações que tem sido feito neste âmbito, provavelmente referindo-se à reforma do Edifício Prestes Maia.

Esse prédio no centro de São Paulo foi ocupado por um movimento de moradia em 2002, em 2015 foi desapropriado pela prefeitura na gestão do ex-prefeito Fernando Haddad (PT), e repassado à Companhia Metropolitana de Habitação (Cohab), responsável pelo programa habitacional batizado como Pode Entrar. A reforma, no entanto, contemplará apenas 287 famílias das quase 500 que viviam ali e a FLM (Frente de Luta por Moradia) será a responsável pela seleção. Quando a obra terminar, as famílias terão de pagar prestações de seus imóveis, que irão variar conforme a renda. Quem ganha um salário mínimo (R$ 1.320) pagará 15% do que recebe. Quem ganha até três (R$ 3.960), arcará com 30% e também pagarão taxa de condomínio e as contas de consumo.

Acertos e contradições no retrofit dos centros urbanos: o caso de São Paulo  - Imagem 4 de 4
Edifício Prestes Maia. Image by Wikimedia Commons licensed under Creative Commons - CC0 1.0.

A caso do edifício Renata Sampaio Ferreira e do Prestes Maia ilustram dois projetos de retrofit inseridos no mesmo contexto, mas com abrangências muito diferentes mostrando que sim, o prefeito estava certo quando afirmou que é necessário um conjunto de ações para ressiginificar o centro de São Paulo. O próprio retrofit em si é uma prática que deve ser incentivada, ainda mais por estar alinhada com diminuição dos gases de efeito estufa advindos de demolições e novas construções, entretanto, espera-se um equilíbrio nessa política de retrofit, com a democratização do acesso também nos edifícios contemplados no programa e que recebem investimentos públicos.

Lidar com os problemas urbanos de uma metrópole de 22 milhões de habitantes definitivamente não é nada fácil, mas todas as soluções parecem partir de uma mudança na mentalidade e no entendimento sobre qual é a cidade que se deseja construir e para quem. Renato Cymabalista, professor da USP, quando abordado sobre o tema dos retrofits no centro de São Paulo, cita em entrevista o exemplo de Viena, onde metade dos imóveis pertencem ao Estado, cooperativas ou associações. A capital austríaca, comparada com São Paulo, apresenta uma diferença de escala gritante, no entanto, deixa como lição o entendimento da moradia como um serviço e não um investimento, construção de patrimônio ou mercadoria que pode ser comprada e vendida no mercado especulativo. E essa talvez seja uma das principais diretrizes que deveria nortear o conjunto de ações de todas as cidades.

Galeria de Imagens

Ver tudoMostrar menos
Sobre este autor
Cita: Camilla Ghisleni. "Acertos e contradições no retrofit dos centros urbanos: o caso de São Paulo " 11 Dez 2023. ArchDaily Brasil. Acessado . <https://www.archdaily.com.br/br/1010760/acertos-e-contradicoes-no-retrofit-dos-centros-urbanos-o-caso-de-sao-paulo> ISSN 0719-8906

¡Você seguiu sua primeira conta!

Você sabia?

Agora você receberá atualizações das contas que você segue! Siga seus autores, escritórios, usuários favoritos e personalize seu stream.