“O caminho tradicional de um arquiteto é muito limitante”: entrevista com Johanna Hurme

O que há de especial na arquitetura na América do Norte — sua história, políticas, mas também códigos e leis de construção — que a torna particularmente vulnerável à crise habitacional global? E como essas falhas inerentes podem ser combatidas com um desenho habitacional com propósito e uma abordagem mais inclusiva para a disciplina da arquitetura?

Em uma apresentação no World Architecture Festival 2023, sob o tema do programa 'Catalyst', Johanna Hurme e Sasa Radulovic, Co-Fundadores da 5468796 Architecture com sede em Winnipeg, Canadá, mostraram como essas e outras questões são fundamentais para seu estilo de construção e também abordadas em seu próximo livro platform.MIDDLE: Architecture for Housing the 99%.

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O refúgio residencial e o conforto são centrais para a ética do escritório, como visto em seu projeto vencedor na categoria Casa Veil, juntamente com o esforço para tornar a prática arquitetônica mais holística e colaborativa entre gerações. A equipe do ArchDaily teve a oportunidade de conversar com Hurme sobre como ela espera alcançar isso e por que questões relacionadas à urbanização rápida, busca por lucros e nossa emergência ambiental acelerada exigem um tipo de construção de cidade que seja mais social e economicamente sustentável.


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Johanna Hurme. Imagem © Bruce Heinrichs

O que torna a América do Norte particularmente vulnerável à crise habitacional atual?

Acredito que o principal problema da América do Norte é que estamos posicionados de uma maneira a qual permite que o setor privado conduza todas as questões relacionadas à habitação, cada vez mais. No Canadá, por exemplo, tivemos uma situação em que mais de 20% do estoque de habitação ou produção era pública. E isso foi nos anos 70. E então, mudanças na regulamentação de dados e tributação desencorajaram cada vez mais ou impediram o desenvolvimento de grandes projetos de habitação pública. Sem uma estratégia para canalizar mais unidades habitacionais para as mãos de organizações públicas ou sem fins lucrativos, não iremos resolver a atual crise da habitação. Certamente, no Canadá, a transferência de fundos públicos para o setor privado com fins lucrativos não produziu o resultado desejado ao longo dos últimos cinquenta anos.

Em Winnipeg, cerca de um quarto das pessoas estão fora dos critérios para os quais o dinheiro federal está disponível. Então, os construtores que estão no setor privado recebem fundos para construir unidades habitacionais, mas apenas têm de fornecer as unidades à chamada "taxa de aluguel acessível" por um período limitado – dez anos – momento em que a renda volta ao valor de mercado. Há algo fundamental e sistemicamente errado nisso.

Ao mesmo tempo, as questões que guiam a forma arquitetônica também são bastante limitantes. Os EUA têm um requisito de saída dupla em seus códigos de construção para as unidades habitacionais com mais de 2 andares, o que geralmente impede a circulação de ar e a ocorrência de apartamentos com duas fachadas em habitações multifamiliares. Nós realmente não temos nenhuma política que exija qualidade. Eu sei que em Sydney, eles têm um código de projeto o qual exige que uma certa quantidade de luz solar chegue à parte de trás da unidade.

A habitação multifamiliar na América do Norte é impulsionada principalmente pelo setor privado. O que geralmente resulta em desenhos que maximizam a eficiência e reduzem a metragem quadrada invendável e não alugável em um edifício, em detrimento da qualidade para o usuário final. Juntamente com a exigência de duas saídas de incêndio e a falta de políticas públicas, os arquitetos estão presos na tentativa de criar uma boa arquitetura a partir de parâmetros muito limitantes.

Não é de se admirar que habitações multifamiliares não sejam a tipologia onde as pessoas realmente desejam morar. Mas há razões para isso além das regulamentações - acho que simplesmente não entendemos o espaço coletivo ao ar livre na América do Norte. Não valorizamos isso e o que ele oferece às famílias. Tendo crescido na Europa, onde nosso pátio coletivo consistia em caixas de areia, balanços, quadras de jogos, bancos e churrasqueira para todos os moradores, comecei a acreditar que são os espaços coletivos de qualidade entre os edifícios que permitiriam uma melhor adoção de cenários de habitação familiar na América do Norte. E quando pensamos no meio ambiente, quando pensamos na energia incorporada, quando pensamos em todos os fatores relacionados a isso, estaríamos muito melhor se alojássemos uma proporção maior da nossa população em condomínios e apartamentos com comodidades compartilhadas.

Também acho que muitas vezes as escolas de arquitetura não lidam com custos, realidades regulamentárias ou expectativas dos clientes investidores. Os alunos não estão preparados quando saem da escola para saber que estes são os fatores que têm de combater – que é uma eficiência de 85% que têm de ser atingida. Dito isto, também penso que é responsabilidade da profissão de arquitetura fornecer valor ao nosso cliente – e indiretamente ao usuário final – isso não se trata necessariamente de metragem quadrada. E mostrar outras possibilidades de cumprimento de metas financeiras.

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5468796 Architecture: platform.MIDDLE: Architecture for Housing the 99%. Imagem

Quais são algumas das medidas que vocês desenvolveram para enfrentar essas questões? Existe um conjunto de ferramentas em particular que vocês recomendariam para arquitetos e designers?

Não é que necessariamente tenhamos projetado algo em particular, mas queríamos compartilhar lições que reunimos a partir dos projetos que fizemos no livro. É tudo uma questão de encontrar maneiras de conseguir um pouco mais de espaço para investir na qualidade dos projetos. Tentar responder à questão do que podemos fazer para melhorar a eficiência dos apartamentos, para que possamos alocar esse dinheiro em outro local.

O livro contém um conjunto de estratégias que funcionam dentro da estrutura regulatória em que temos que operar. O que podemos fazer para melhorar os resultados arquitetônicos? Existem várias categorias no livro com questões e condições típicas que encontramos no projeto de habitações multifamiliares e respostas que esperamos serem úteis para outras pessoas em nossa profissão, colegas que estão iniciando no projeto de moradias ou para a geração mais jovem que sai das universidades e deseja inovar dentro da tipologia. Esperamos que eles não tenham que pesquisar e absorver as questões mais amplas durante anos, ou passar por tentativa e erro durante décadas, mas que possam obter uma certa vantagem. É isso que esperamos fazer com o livro. Tentamos sinceramente compartilhar conhecimento para que outros possam usá-lo de forma positiva.

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62M Apartments / 5468796 Architecture. Imagem © James Brittain
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62M Apartments / 5468796 Architecture. Imagem © James Brittain
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62M Apartments / 5468796 Architecture. Imagem

Você consegue identificar algumas dessas táticas em um de seus projetos construídos?

Se analisarmos o 62M Apartments, um projeto que está ganhando ocupação agora em Winnipeg, ele tem questões como passagens externas, que em um clima frio são muitas vezes desaprovadas. Mas com a COVID, percebemos que as pessoas se sentem mais confortáveis em espaços ao ar livre quando estão em público. É um local onde se tem uma ligação visual e auditiva com a rua e ainda se tem uma espécie de espaço comum e relação com as atividades no terreno.

Também implantamos corredores sem interrupção, que nos permitem melhorar a eficiência geral do projeto. E a passagem exterior faz o mesmo. Portanto, não estamos construindo espaços internos que o proprietário não possa alugar ou vender. Isso afeta os resultados financeiros, e então teremos mais dinheiro dentro do orçamento para investir em arquitetura. Além disso, por causa do exterior e das passagens, temos diversas unidades de passagem – o que significa que você tem janelas em ambos os lados da suíte. Novamente, isto é muito atípico para o contexto norte-americano, mas oferece ventilação e acesso à iluminação muito superiores. Além disso, estamos usando madeira laminada para abranger toda a largura de cada unidade, que tem apenas 15 a 20 centímetros de profundidade, um pouco menos do que seria uma montagem típica. Acreditamos que os forros de madeira exposta humanizam o interior, ao mesmo tempo em que otimizam a estrutura, reduzindo a altura do edifício e, consequentemente, a quantidade de envolvente exterior necessária. Há todas essas camadas de aprendizado tornam o projeto mais viável, mas também o tornam melhor para os moradores.

Você pode elaborar a ideia de um ecossistema de prática arquitetônica apresentada em seu livro?

Esta é uma ideia na qual olhamos para a prática da arquitetura de forma holística, de modo que não se trata apenas do trabalho encomendado, mas também de todas as coisas que consideramos nossa responsabilidade para com a comunidade. Isso inclui trabalho auto iniciado que apenas assumimos para tentar melhorar a cultura arquitetônica dentro da nossa cidade e dentro do nosso contexto e país. Tudo isso tem um impacto no tipo de trabalho e cultura que criamos localmente e na forma como podemos promover o valor da arquitetura e do design para os outros e chegar a comunidades que de outra forma não entrariam em contato com a disciplina.

O que também se enquadra na nossa definição de ecossistema de práticas são aspectos como administrar um negócio inteligente. Não há nada para se envergonhar. Normalmente pensamos que se você tem mentalidade empresarial, de alguma forma diminui a arte da arquitetura. Mas, ao fazer isso, podemos nos dar ao luxo de realizar iniciativas extracurriculares e oferecer melhores oportunidades para as pessoas que trabalham conosco. De certa forma, conseguimos ampliar a qualidade de vida. Questões como envolver-se na política também contam – penso que o caminho tradicional de um arquiteto é bastante limitante e o que podemos fazer é dificultado por permanecermos nesse caminho. Portanto, é realmente importante envolver-se na política, na elaboração de políticas e na comunidade empresarial, ou em qualquer lugar onde decisões importantes estejam sendo tomadas – apenas estando envolvido em um espectro de influência mais amplo do que os arquitetos "tradicionais".

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Casa Veil / 5468796 Architecture. Imagem © James Brittain
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Casa Veil / 5468796 Architecture. Imagem © James Brittain

O que vocês esperam alcançar ao divulgar essas ideias para o mundo?

Esperamos continuar aprendendo e compartilhar nossas descobertas com a comunidade estudantil, jovens profissionais ou qualquer pessoa que esteja iniciando no projeto habitacional, fornecendo exemplos de como alguém pode criar mais espaço para a arquitetura em seus próprios projetos. Mas, ao mesmo tempo, é um apelo à ação para todos nós, para tentarmos influenciar questões que não estão naquele micro-livro arquitetônico, mas sim no macro-livro, de uma forma positiva e a serviço da qualidade – política, regulamentação e finanças.

Talvez você esteja se envolvendo na política ou na câmara de comércio local, ou em algum tipo de órgão de arquitetura que pode pressionar governos e tomadores de decisão para fazerem melhor. Acreditamos que o papel do arquiteto é mais o de estrategista do que o de desenhista. O ato de praticar arquitetura é um ato estratégico. Acreditamos que a profissão de arquiteto tem muito a oferecer e, para ter mais impacto, podemos fazer melhor do que apenas esboçar soluções de projeto em um canto.

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Sobre este autor
Cita: Brodka, Claire. "“O caminho tradicional de um arquiteto é muito limitante”: entrevista com Johanna Hurme" [“An Architect’s Traditional Lane is Pretty Limiting”: In Conversation with Johanna Hurme of 5468796 Architecture] 13 Jan 2024. ArchDaily Brasil. (Trad. Ghisleni, Camilla) Acessado . <https://www.archdaily.com.br/br/1011063/o-caminho-tradicional-de-um-arquiteto-e-muito-limitante-entrevista-com-johanna-hurme> ISSN 0719-8906

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