Quando os primeiros raios de sol atingem a superfície da cidade sueca de Jukkasjärvi, no momento em que o inverno dá lugar a primavera, este hotel de gelo começa a derreter. São quinhentas toneladas de água que escorrem rumo ao Rio Torne. O que antes eram paredes, pisos e tetos, agora são gotas de água em busca do seu curso natural. Nessa cena que acontece todos os anos desde 1989, tudo é contradição. A solidez e a longevidade da construção, a efemeridade e a transitoriedade da escultura de gelo.
No final da década de 80, nessa cidade localizada a 200 km do Círculo Polar Ártico, Yngve Bergqvist, fundador do Icehotel, inspirou-se na tradição japonesa de esculpir gelo e convidou dois profissionais da área para um workshop. Durante o inverno, foi construído um iglu com 60 metros quadrados, o qual recebeu o nome de ARTic Hall e servia como galeria de arte. Nos anos seguintes, além das exposições artísticas, o espaço acomodava também eventos religiosos e projeção de filmes. Uma noite, um grupo de convidados perguntou se poderia passar a noite no ARTic Hall e, equipados com cobertores feitos com pele de rena e sacos de dormir, adoraram a experiência. Nascia assim a ideia do hotel de gelo.
Apesar a origem trivial, o hotel e sua peculiar ode à efemeridade, diz muito sobre o nosso tempo ao romper com um dos pilares fundamentais da arquitetura — justamente a ideia de permanência. Os preceitos seculares de Vitrúvio — firmitas, utilitas, uenustas — nele são questionados. Instaura-se uma arquitetura com prazo de validade a qual alimenta o nosso fascínio, cada vez mais presente, pela efemeridade. Impossível não associar suas 500 toneladas de gelo derretendo com a metáfora da liquidez consagrada pelo sociólogo Zygmunt Bauman, ao explicar a grave crise de ideologias e valores pela qual estamos passando. Um hotel temporário para um momento em que ideias sólidas e consistentes dão lugar a uma cultura fluída, líquida, caracterizada pela rapidez do movimento, pela fugacidade e pela incerteza.
Se na sociologia a fluidez atual desenha um homem liberto de conceitos histórico, na arquitetura, entretanto, essa fluidez pode se materializar em projetos livres de amarras que não mais impõem um tempo de resistência e uma simbologia como monumentos permanentes e que nos coloca – mesmo que sem a intenção – frente à impermanência da própria vida. Uma metáfora similar aos templos japoneses que são reconstruídos a cada 20 anos, os quais, de uma forma mais espiritual, evocam com a degradação material o ciclo de vida e morte de tudo que é vivo.
Tão durável quanto o inverno sueco, o IceHotel aproveita da sua impermanência também para se reinventar a cada ano. O que começou com uma edificação de 60 m2, na sua última edição chegou a 250. Para construir, é utilizada uma mistura de gelo e neve feitos a partir da água do rio. Chamam-lhe slice. Ela é colocada em moldes até estar totalmente solidificada. O único material adicional usado são molduras metálicas esbeltas que fortalecem a estrutura. O processo de construção leva o ano inteiro, começando com a coleta de 5 mil quilos de gelo do Rio Torne, que ficam estocados durante a primavera e o verão. O hotel, no entanto, é aberto entre dezembro e metade de abril, quando tudo começa a derreter lentamente. Apesar da temperatura externa alcançar extremos, chega a -50 °C, ela nunca passa de -8 °C dentro dos quartos de gelo e neve.
Além disso, o design de cada suíte é executado por um artista diferente que imprime características únicas ao espaço. Para esculpir o gelo, os profissionais usam desde serras elétricas, talhadeiras e até ferros de passar roupa. Tudo isso para alterar a densidade e textura do gelo e criar o formato desejado. Seis semanas depois, a obra está terminada. A construção conta em média com 70 pessoas encarando as temperaturas que variaram entre -25°C e - 40°C
A ideia é conceber um projeto variado a cada ano, já que o conceito por trás da obra é a natureza passageira e mutável das coisas. Uma proposta fortalecida por meio da junção singular entre arte, arquitetura e temporalidade.
As construções em gelo há muito povoam o imaginário da população. Da sua origem como ferramenta de sobrevivência - na forma dos efêmeros iglus do povo inuíte -, até as grandes esculturas em gelo, a manipulação da água em seu estado sólido tem gerado inúmeras possibilidades. A Escola de Design de Harvard criou, por exemplo, um sistema para a construção de um refúgio de rápida implantação - inflável - com a neve e o gelo como materiais de construção, permitindo aos usuários transportar o sistema em uma mochila até que a estrutura seja necessária. Nessa mesma linha, vale citar o invento da Eindhoven University of Technology, do Summa College e do Harbin Institute of Technology (HIT) que usou o gelo para construir uma torre com 31 metros de altura. O segredo por trás do sucesso da estrutura está em usar gelo reforçado com fibras naturais como as da madeira, que são misturadas com o gelo para criar um composto bastante confiável. Esta estratégia poderia gerar soluções para edificações temporárias em regiões frias ou até mesmo em uma possível missão em Marte.