O conceito de “olhos da rua” talvez seja o mais famoso dentro da literatura arquitetônica e urbanística quando o assunto é segurança urbana. Jane Jacobs utiliza essa expressão para se referir às pessoas que – de forma consciente ou inconsciente – utilizam os espaços públicos ou os contemplam desde suas casas, gerando uma vigilância natural. Um movimento que, no âmbito da nossa disciplina, é fomentando tanto por meio de espaços públicos de qualidade quanto pela potente relação entre o público e o privado criada através das fachadas das edificações. Defendendo esse controle cotidiano, Jacobs acredita em um modo de fazer arquitetura e cidades que condena a verticalização em excesso, reforçada por edifícios isolados e de uso único os quais negam o contato com rua.
Divulgado no início dos anos 1960, o conceito foi sendo discutido e aplicado em diferentes escalas e para diversos propósitos. Um dos exemplos de como sua materialização ao longo dos anos abarcou uma nova perspectiva e influenciou o desenho arquitetônico foi visto em Viena nos anos 90. Promovidos pelo Departamento de Gênero da Cidade, os conjuntos habitacionais chamados de Frauen-Werk-Stadt I, II e III foram pensados sob a perspectiva de gênero, aplicando o conceito dos “social eyes” para um fim bem específico. Suas fachadas foram marcadas por janelas voltadas para os pátios centrais, principalmente para os locais onde as crianças brincavam. Dentro de cada apartamento, as janelas estavam estrategicamente posicionadas na cozinha permitindo que as mães vigiassem seus filhos enquanto exerciam seus afazeres domésticos.
A aplicação do conceito no caso dos conjuntos habitacionais e seu importante papel na melhoria da qualidade de vida das moradoras reforça a abrangência do tema. Seu protagonismo, no entanto, pode ser visto ainda hoje, apesar das várias décadas que nos separam do conceito original.
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Relendo Jane Jacobs: 10 lições para o século XXI de "Morte e Vida de Grandes Cidades"A ideia não apenas permanece válida em muitos aspectos, como também segue sendo amplamente discutida e divulgada. Tanto que é possível, inclusive, percebê-la em aplicações um tanto quanto curiosas, como um caso bem comum nas cidades brasileiras – principalmente nos bairros residenciais unifamiliares - nos quais se instaura uma “rede de vigilância compartilhada” com dizeres e imagens que rementem aos “olhos da rua” e à vigilância do espaço público feita por um grupo de vizinhos. Uma situação que, apesar da apropriação do termo, se distancia do conceito original de Jacobs, visto que essa “união contra a insegurança” não só aumenta a reclusão dos moradores como também fortalece a empatia apenas entre os seus, denunciando qualquer “movimento suspeito” vindo de pessoas externas. Nesse sentido, é importante ressaltar que o conceito de Jacobs defende que a segurança urbana pode ser alcançada não apenas por meio da vigilância, mas também pela vitalidade e diversidade fundamentais para uma cidade saudável.
Da potência de uma interface bem elaborada com o espaço público à vigilância paranoica dos vizinhos, o conceito rende discussões. Mas, independentemente da abordagem, a lição fundamental é compreender o papel os envoltórios arquitetônicos em relação aos espaços públicos, enaltecendo essa relação tão rica entre as aberturas e a rua. Os preceitos de Jacobs nos mostram, portanto, que nenhum gesto arquitetônico é isolado ou único e que qualquer decisão projetual pode impactar na vida urbana e social dos habitantes. Essa constatação faz com que seja importante nos mantermos vigilantes a respeito da forma como estamos desenhando nossas arquiteturas e estabelecendo sua relação com a cidade.
Fazendo um recorte temporal específico e focando nas arquiteturas brasileiras de uso residencial, muitas questões podem ser abordadas sob a ótica do conceito de Jacobs. Aqui, nos limitaremos a apresentar alguns exemplos nos quais o envoltório arquitetônico se torna a peça fundamental para que a relação entre interior e exterior aconteça de forma saudável.
O SEHAB Heliópolis,em São Paulo, foi construído em 2014 e inserido dentro da maior favela da cidade. Rompendo a configuração típica das torres isoladas, o projeto define a quadra e cria um pátio interno para uso dos moradores e da comunidade em geral, uma configuração que remete inclusive aos exemplos austríacos citados acima. O SEHAB, no entanto, não apenas conecta-se com os pátios e jardins centrais por meio das janelas, mas oferece à rua um grande um envoltório permeável o qual convida à passagem e interação entre público e privado.
Em uma escala menor e com implantação horizontal, mas ainda abordando a tipologia multifamiliar, o projeto das Casas Populares Paudalho apresenta uma configuração interessante. Nele, a permeabilidade visual para a rua é favorecida através da porta e da janela da sala de estar – e não mais da cozinha como nos Frauen-Werk-Stadt. Uma situação possível graças ao cuidado com a baixa altura do muro. Além disso, o projeto também cria um espaço de estar coberto aberto sob a varanda frontal o qual se torna uma interface potente entre o domínio público e o privado, tradicionalmente presente não apenas na cultura brasileira, mas em outros países também.
Para finalizar, selecionamos alguns exemplos de casas unifamiliares que apresentam soluções arquitetônicas interessantes no que diz respeito ao conceito de “olhos da rua”. Entre eles se destaca a Casa 711H, em Brasília. Voltada para um parque, a casa apresenta um sistema de painéis perfurados retráteis que envolve a fachada frontal e cria a possibilidade de integração total entre o jardim privado e a área pública. Além dela, ressalta-se também a Casa 4x30, construída em São Paulo. Em um contraste gritante com as casas do entorno, sua configuração é aberta para rua, sem muro ou cerca delimitando o público e o privado. Apesar da marcação desse limite no térreo se dar por meio de uma fachada fechada e isolada da rua, a ausência de muros cria uma relação mais próxima e interessante, favorecendo a aproximação da janela superior com a cidade.
Infelizmente, quando abordamos as arquiteturas residenciais contemporâneas no Brasil, a grande maioria dos exemplos apresenta configurações isoladas do espaço público. Ao tratar principalmente das casas unifamiliares, quando não estão situadas em condomínios fechados, apresentam um significativo afastamento em relação a rua – muitas vezes imposto pelo próprio Plano Diretor - reforçado pela construção de muros ou cercas altas. Uma situação complexa que desencadeia discussões e debates, como os já citados neste artigo. Entretanto, no duelo entre segurança, privacidade e urbanidade, alguns projetos conseguem se destacar apresentando esforços para gerar determinadas relações entre arquitetura e rua. De qualquer forma, independente da dimensão estrutural e social da questão, é sempre útil revisitar os preceitos de Jane Jacobs para entender a forma como estamos desenhando nossas arquiteturas e estabelecendo sua importante relação com a cidade.
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