As cores da favela: o que um pouco de tinta pode fazer pelas comunidades

No imaginário de grande parte da população, a favela assume representações muitas vezes paradoxais e proporcionalmente opostas. Sob o olhar de quem não a vive, ela é constantemente associada ao crime, a sujeira ou a doenças, ao mesmo tempo em que é considerada a expressão estética de um país, sendo o berço de elementos culturais reconhecidos mundialmente, como o samba no caso do Brasil.

As cores da favela: o que um pouco de tinta pode fazer pelas comunidades    - Imagem 2 de 5As cores da favela: o que um pouco de tinta pode fazer pelas comunidades    - Imagem 3 de 5As cores da favela: o que um pouco de tinta pode fazer pelas comunidades    - Imagem 4 de 5As cores da favela: o que um pouco de tinta pode fazer pelas comunidades    - Imagem 5 de 5As cores da favela: o que um pouco de tinta pode fazer pelas comunidades    - Mais Imagens

Essas representações não são criadas à toa. Quase sempre há motivos velados que servem como justificativa para ações políticas, urbanas e sociais. Para ilustrar, vejamos o histórico das favelas brasileiras. No início do século XX, a favela era vista como um reduto dos pobres e vagabundos; entre os anos 30 e 50 houve uma frente de ação do governo que começou a entender as favelas como um problema passível de solução. Nos 80, entretanto, criou-se a noção da favela como abrigo do crime organizado e do tráfico de drogas, trazendo de volta à tona a imagem da favela-problema, culminado anos depois na criação das Unidades de Polícia Pacificadora (UPP).

Mais recentemente, o termo favela vem sendo trocado por comunidade, indicando uma "aceitação" da favela não mais como acontecimento acidental, mas como parte integrante da cidade. Uma nova representação construída não só a partir do ponto de vista de quem a vê de fora, mas embasada pela visão de quem está dentro dela. Nessa onda, entretanto, surge uma romantização desses lugares o que inclui, entre outras questões, a criação dos passeios turísticos guiados pelas comunidades. Trata-se, inevitavelmente, de uma exploração da favela como objeto feita por diferentes agentes externos mas, ao mesmo tempo, também apropriada pelos próprios moradores para que possam se inserir em mercados como comércio e turismo.


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Diante dessa situação complexa, a pintura em massa das fachadas nas favelas pode ser inserida nessa nova perspectiva, fortalecendo a identificação da favela quanto imagem. O conjunto de casas coloridas chama atenção do turismo e inspira artistas locais figurando como um mecanismo para aumentar a aceitação da realidade da favela como algo positivo, como bem cultural.

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Santa Marta, Rio de Janeiro, Brasil. Imagem © Shutterstock

Se engana, no entanto, quem pensa que a ideia é nova. Servindo a outros propósitos, na história das favelas brasileiras, por exemplo, já teve secretário municipal afirmando que a pintura poderia dar um “ar grego” para as favelas e até traficantes mobilizando a população para pintar suas casas (ao todo foram 100) do mesmo tom de verde para dificultar a localização dos fugitivos pela polícia.

Como qualquer iniciativa social, a complexidade é extrema, e a mesma ideia pode ser utilizada para diferentes fins. No entanto, para além de reforçar um ideal romântico da favela, existem algumas iniciativas desse gênero que se destacam como modelos generosos que abraçam a comunidade e demostram a potência de pequenas intervenções no cotidiano dos moradores, o que definitivamente as diferenciam de iniciativas vazias como as descritas anteriormente.

Não se pode negar o impacto das cores na arquitetura e na cidade. A cor pode ser usada para criar uma ligação com a tradição, representar renovação e mudança ou gerar evocação e surpresa. Ela pode definir o sentimento do usuário e, porque não, o seu próprio comportamento social. O próprio Renzo Piano já provou como a cor pode se tornar uma ferramenta para injetar uma nova vida em uma região por meio do seu projeto de reabilitação urbana em Central Saint Giles, Londres, no qual ele entende a cor como resposta do edifício ao “organismo milagroso que é a cidade, onde tudo deve basear-se na participação, no sentimento de pertencimento e na urbanidade”. Três diretrizes importantes que podem ser vistas também em algumas intervenções que marcaram as favelas latino-americanas nos últimos anos.

Em 2006, imagens da comunidade de Santa Marta, no Rio de Janeiro, rodaram o mundo. As fachadas pintadas com cores vibrantes foram desenvolvidas pela dupla de artistas holandeses Jeroen Koolhaas e Dre Urhahan por meio de um projeto chamado Favela Painting. Como mais um caso no qual foi necessário um olhar estrangeiro para criar (ou validar) uma intervenção desse porte, após algum tempo de discussões e debates com a comunidade, o mar de construções iguais, todas em tijolos aparentes, foi sendo colorido. Uma ideia que definitivamente agradou aos moradores, afinal quem não queria ver sua casa rebocada e pintada? No processo da construção civil essa é a etapa derradeira, a que atesta que a obra está finalmente terminada.

Para desenvolver o projeto, os artistas, que já eram amigos dos moradores da comunidade, viveram por tempo no local, com isso, uma importante rede de apoio foi estabelecida. Seus processos de criação não apresentavam uma lógica ou uma estrutura definida, mas sim, partiam da organicidade natural – algo que aprenderam ao vivenciar a favela e entender suas lógicas, por muito tempo consideradas inexistentes. Fez parte do projeto ensinar os jovens da comunidade a pintar, dando a eles a possibilidade de se expressar artisticamente. Além disso, todas as intervenções foram feitas em comum acordo com a própria comunidade. O sucesso do projeto fez com o grupo se consolidasse como programa social, nele moradores locais foram formalmente incluídos e empregados.

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Paraisópolis. Imagem de Vilar Rodrigo, sob licença CC BY-SA 3.0

Outro exemplo similar aconteceu em 2015, quando um coletivo de artistas mexicanos criou uma intervenção multi-perspectivada em uma comunidade próxima a Cidade do México. Inspirando-se no tradicional muralismo mexicano, o coletivo Germen Crew interviu em mais 200 casas e 20 mil metros quadrados. Através a convivência próxima como os habitantes do bairro, Germen inspirou-se em suas histórias para criar os murais. Esse novo muralismo mexicano, que deriva de um consenso com a comunidade, envolveu diretamente as 450 famílias também na sua produção. Segundo dados do governo, o índice de delinquência em Las Palmitas diminuiu a partir do início do projeto, o que pode estar relacionado ao fato da iniciativa evidenciar o potencial da comunidade e dos seus moradores, mostrando alternativas para sua realidade ao mesmo tempo em que incentiva a comunhão e o senso de pertencimento.

Mais recentemente ainda, na favela de Paraisópolis, São Paulo, o projeto Cores da Favela parte do objetivo de transformar as fachadas da comunidade, mas através disso procura contribuir também com o conhecimento, segurança e experiência dos trabalhadores responsáveis pela pintura, disponibilizando treinamentos como “Trabalho em Altura” e “Técnicas de Pintura”, para fins de capacitação profissional. Além disso, todos os materiais para a obra foram adquiridos no comércio da comunidade para fortalecer a economia local.

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Santa Marta, Rio de Janeiro, Brasil. Imagem © Shutterstock

Nesse contexto, mesmo sabendo que a real necessidade dessas comunidades está atrelada principalmente a questões básicas de infraestrutura como saneamento, água potável ou coleta de lixo, intervenções pontuais e em pequena escala como essas não devem ser desmerecidas. Compreendendo todas as nuances que uma iniciativa social apresenta, vale a pena citar esses exemplos ao entender que eles vão muito além de uma paleta de cores, abordando o “embelezamento” como um propósito para elevar a autoestima da população, resguardando a saúde mental dos moradores, trazendo mudanças tímidas, mas que melhoram algum aspecto da vida cotidiana e geram um ambiente mais confortável e valorizado. Com atenção à não romantização das iniciativas é possível entender o colorido não apenas como forma de aceitação social, mas também como oportunidade.

Este artigo é parte dos Temas do ArchDaily: A pele do edifício. Mensalmente, exploramos um tema em profundidade através de artigos, entrevistas, notícias e projetos de arquitetura. Convidamos você a conhecer mais sobre os temas do ArchDaily. E, como sempre, o ArchDaily está aberto a contribuições de nossas leitoras e leitores; se você quiser enviar um artigo ou projeto, entre em contato.

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Sobre este autor
Cita: Camilla Ghisleni. "As cores da favela: o que um pouco de tinta pode fazer pelas comunidades " 20 Mar 2024. ArchDaily Brasil. Acessado . <https://www.archdaily.com.br/br/1014578/as-cores-da-favela-o-que-um-pouco-de-tinta-pode-fazer-pelas-comunidades> ISSN 0719-8906

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