«De fato ninguém pode imaginar ou projetar algo moderno. Por definição existe uma contradição essencial entre os termos “projeto” e “moderno”. Projetar significa literalmente lançar adiante. Porém, de modo a lançar algo adiante, ambos atirador e projétil devem estar atrás. Todo projeto é um emissário do passado.» —Josep Quetglas
Em 1925, El Lissitzky escreveu: “No período entre 1918 e 1921 um monte de antigas futilidades foram destruídas. Na Russia também nós arrancamos a A. [arte] do seu sagrado pedestal ‘enquanto cospíamos no seu altar’”. Para os artistas revolucionários desse tempo, as antigas formas de representação não poderiam mais ser mantidas sob a pressão da inovação contínua. “A perspectiva”, explicava Lissitzky, “limita o espaço; ela o fez finito, fechado”. O mundo é posto numa caixa cúbica, que cria uma estática “vista de fachada” do mundo. “O suprematismo” por outro lado, “estendeu o ápice do cone visual finito da perspectiva ao infinito. . . . Ele rompeu a azul pantalha dos céus”. No espaço “irracional” de Lissitzky, ponto de vista e ponto de fuga estão ambos localizados no infinito. A extensão em profundidade coincide com a suspensão do privilégio de auto-localização do sujeito. O sujeito que vê e o objeto da representação habitam ambos o mesmo campo estendido. A projeção opera para simultaneamente prolongar e comprimir as distâncias: “O espaço suprematista pode ser formado em frente à superfície bem como em profundidade. . . . O suprematismo varreu a ilusão do espaço tridimensional em um plano, substituindo-o pela máxima ilusão do espaço irracional com atributos de extensibilidade infinita em profundidade e primeiro plano”.
A perspectiva e a anamorfose, apesar de suas naturezas como construções, são ainda essencialmente pictóricas, e operam no registro simbólico. A perspectiva, enquanto aspira a ser científica e generalizável, esteve sempre vinculada a um ponto de vista fixo. Ao estender o ponto de fuga ao infinito, as construções da perspectiva são reproduzidas a um mesmo e único tempo mais flexível desde um ponto de vista instrumental, e mais universal desde um ponto de vista filosófico. Esses artistas revolucionários das vanguardas do início do século XX queriam ir além do tradicional papel da arte de interpretar o mundo, a imaginar uma arte capaz de construir novos mundos. Por isso a atração da projeção axonométrica. A axonométrica, que poderia transmitir informações abstratas, e que era mensurável e precisa, foi a ferramenta ideal para delinear a visão da vanguarda de um novo mundo. A perspectiva registra o que já existe, enquanto que a projeção axonométrica constrói aquilo que ainda não.
Ainda na abordagem de Lissitzky, como em outros pintores abstratos do início de século XX (ou como eles eram algumas vezes referidos, artistas “não objetivos” –Kasimir Malevich, Wassily Kandinsky, ou Piet Mondrian por exemplo), uma curiosa contradição emerge. Por um lado, Lissitzky quer que o progresso das artes visuais seja entendido como um paralelo ao progresso científico e matemático. A objetividade da ciência contesta o tradicional conceito do artista: o novo artista constrói uma nova realidade com conceitos científicos, em vez de representar a realidade existente com convenções existentes. Por outro lado, Lissitzky preserva para a arte sua capacidade de fazer o infinito e o inmensurável visíveis e concretos. Lissitzky alcança esse “movimento do cavalo” através da apropriaçãode instrumentos das disciplinas técnicas. Desenho mecânico, óptica e balística são atraentes para Lissitzky por sua objetividade e precisão técnica –ou seja, moderno e progressivo desde um ponto de vista científico. Porém essas técnicas instrumentais estão dadas como um novo significado no contexto da prática da vanguarda. Para esses artistas, a abstração visual dessas técnicas –a indeterminação do campo espacial representado– torna-se primordial. A instrumentalidade pode operar contra o simbólico, mas uma nova metafísica do espaço infinito opera contra o instrumental. Uma dimensão simbólica é enxertada nessas práticas técnicas.
A axonométrica tem sua origem em práticas visuais antigas, e Massimo Scolari defendeu uma história de desenvolvimento contínuo da projeção paralela lado a lado à projeção perspectivada. A projeção paralela aparece sempre que questões de mensurabilidade, previsão e verificabilidade surgem. Portanto, não é surpreendente que a descrição sistemática mais recente da projeção axonométrica ocorra num contexto militar, onde era originalmente usada para traçar as trajetórias tridimensionais dos projéteis de artilharia. Nos séculos XVIII e XIX, o desenho axonométrico foi ensinado nas escolas de engenharia e seu desenvolvimento estava intimamente relacionado à mecanização e à industrialização. O uso da projeção axonométrica na arquitetura estendeu a base científico/matemática para a representação arquitetônica já iniciada com o ensino difundido e uso da geometria descritiva. É uma história mais intimamente vinculada à École Polytechnique que à École des Beaux-arts. Para esses arquitetos ou projetistas técnicos, a axonométrica combina o imediatismo de uma visão perspectivada com a mensurabilidade e transmissibilidade da projeção ortográfica. A projeção axonométrica, originária no mundo abstrato e instrumental das disciplinas técnicas, não tem pretende mapear a visão. Ao contrário, está preocupada com a construção e consistência da medida.
A diferença técnica entre perspectiva e axonométrica é a ausência de um ponto de fuga. Os projetores não convergem mas assim como nas projeções ortográficas de plantas e seções, elas são paralelas. Uma maneira de descrever essa condição matematicamente é dizer que o ponto de fuga está localizado no infinito. E isso foi precisamente o que atraiu artistas abstratos como Lissitzky: a capacidade de fazer o infinito visível no contexto de uma construção quase-científica. Esses artistas não objetivos não estavam interessados em distorção, mas em geometrias ideais e aplicabilidade universal. Eles eram fascinados pela reversibilidade do campo espacial na axonométrica, o qual parecia reproduzir um espaço mais aberto, e extensivo. A projeção axonométrica era um instrumento ideal para representar geometrias universais e o espaço infinito. Esses artistas sugeriram, implicitamente, que a axonométrica, embora originalmente derivada das disciplinas técnicas, poderiam afinal mapear uma nova condição de visão –uma visão moderna marcada pela abstração fundamental da tecnologia e geometria universais da matemática moderna.
Não foi apenas o espaço infinito que foi feito visível na projeção axonométrica, mas também novos conceitos de tempo. Se a perspectiva, dependente de um único ponto de vista, parecia congelar o tempo e o movimento, o espaço atópico da axonométrica sugeria um espaço contínuo no qual os elementos estão em constante movimento. A mesma propriedade que fez da axonométrica tal ferramenta útil para explicara construção de maquinário ou espaços complexos (a qual pode ser representada em forma "explodida" e reconstruída na imaginação movendo os elementos em projetores paralelos) poderia ser explorada aqui para sugerir a simultaneidade do espaço e tempo. A reversibilidade do campo espacial permitida pela apresentação simultânea de múltiplas vistas. A suspensão do sujeito que vê desloca a atenção para a constituição do objeto em si, suspenso no tempo num campo espacial ambíguo. Distanciado do observador (quem, na projeção axonométrica é usualmente localizado não em frente ao objeto, mas acima ou abaixo) o objeto representado pode ser livremente rotacionado, desmantelado ou reconstruído. Axonométrica e desenhos técnicos emprestam-se para a multiplicação de vistas num esforço para descrever a totalidade complexa do objeto.
Para esses artistas de vanguarda, a projeção axonométrica aproximou algo como o que o filósofo Edmund Husserl identificou como objetividade ideal da geometria: “O Teorema de Pitágoras, igualmente como toda a geometria, existe só uma vez, não importa quantas vezes ou mesmo em que língua possa estar expresso”. É identicamente o mesmo na ‘língua original’ de Euclides e em todas as ‘traduções’, e dentro de cada língua é novamente o mesmo, não importa quantas vezes ele tenha sido sensatamente pronunciado, a partir da expressão original e registrado nas inumeráveis declarações orais, ou escritas ou outra documentação.
Escrevendo em 1936, Husserl sinalizou a capacidade especial de conceitos geométricos de existirem independente de qualquer representação particular. Os objetos geométricos são objetos ideais, dados como conceitos, e distintos de ambos: a instrumentalidade científica e os caprichos do sujeito individual. A geometria, para Husserl, existe a priori da história, circunstância, ou qualquer instância particular de sua expressão. O projeto de Husserl visto no contexto histórico dos anos 1930 é, em certo sentido, paralelo ao projeto teórico daqueles primeiros modernistas que também buscavam novos paradigmas de representação a fim de renovar o contato com a “origem da geometria”.
Para Husserl, geometria é indiferente à tradução. Sua origem é sempre presente e sua objetividade ideal é inalterada pela particularidade da declaração ou a linguagem de sua expressão. Não há nada faltando para a tradução suplementar, nenhuma diferença a ser posta em jogo. Essa transparência perfeita não é incontestável; Husserl tem plena consciência de que necessita de um escalonamento das contingências da linguagem e prática para alcançar tal objetividade ideal. Em oposição à multiplicação de linguagens e à fragmentação de sinais (que ele se refere como a "sedução da linguagem"), Husserl procura por uma noção de linguagem estabelecida em geometrias universais e formações ideais. Ele usaria a geometria como um modelo para a linguagem, não a linguagem como um modelo para descrever a geometria. O sonho de Husserl é de um retorno à linguagem em geral, e uma série de formações ideais capazes da inteligibilidade universal: “a existência geométrica não é a existência física; não existe como algo pessoal na esfera pessoal da consciência: é a existência do que está objetivamente lá para ‘todos’ (para geômetras reais e possíveis, ou aqueles que entendam de geometria).” Ele quer resgatar a geometria, como algo cheio de significado, a partir da instrumentalidade que ele vê no emprego irrefletido de geometria em atividades técnicas.
Por isso, para Husserl, é precisamente a abstração da geometria –sua falta de sentido específico que a faz possível ser objetivamente disponível “lá fora” para todos. Mas para Husserl –como para os artistas não objetivos do início do século XX– a abstração não significa um afastamento do significado ou uma mudança em direção à instrumentalidade, mas sim em direção a um significado mais profundo. Husserl sublinha a universalidade das práticas geométricas: “A medida pertence a todas as culturas”, afirma, sugerindo que o pensamento geométrico está além de convenções e diferenças culturais. E há também uma correspondência ao nível da estética formal; a objetividade ideal favorece a regularidade da expressão: “linhas retas são especialmente preferidas, e entre as superfícies, as planas. . . . Assim, a produção de superfícies planas e sua perfeição (polimento) sempre desempenha um papel na práxis”. A visão estética que corresponde ao sonho de Husserl de uma objetividade universal tende para a eliminação da imperfeição e a suavização da diferença.
Arquitetura tende, na teoria, rumo à objetividade ideal de Husserl. Ainda na prática essa suavidade perfeita se prova inatingível. A abstração do desenho arquitetônico é tanto um produto de sua instrumentalidade como um resultado do contato com as origens da geometria. A representação arquitetônica faz uso da transparência geométrica de Husserl, e é de fato marcada por ela, contudo sua objetividade nunca pode ser incontaminada. Os desenhos arquitetônicos sempre mantém algum contato com a instrumentalidade. A arquitetura como uma construção matemática pura permanece como um sonho utópico. Na prática arquitetônica moderna mais primitiva, a axonométrica mantém a linearidade e objetividade –a mensurabilidade– dos planos do arquiteto, e isso é, portanto, atraente para arquitetos tais como Hannes Meyer ou Walter Gropius não por suas qualidades irracionais ou metafísicas, mas por sua objetividade. A transparência implica aqui não o contato privilegiado com as origens (Husserl), mas uma garantia de desempenho técnico. A axonométrica como um meio útil de explicar objetos arquitetônicos complexos precisa ser distinguida da axonométrica concebida como um privilegiado ponto de contato com as verdades geométricas universais.
Mesmo no caso de um artista abstrato tal como El Lissitzky, o suave espaço da projeção axonométrica trabalha contra múltiplas resistências quando traduzido para três dimensões. Se compararmos o espaço subentendido dos desenhos do Proun com a construção Proun Space de 1923, torna-se evidente que a extensão infinita do campo visual é mais presente como representação do que como experiência. A "metafísica do infinito" só pode ser incompletamente realizada. Lissitzky mantém o privilégio da arte da "ilusão final"no espaço tridimensional.O Proun Space é ainda um instrumento de representação, uma construção sugerindo algo além de si mesma. As indeterminações espaciais dos desenhos do Proun de duas dimensões não são postas em jogo liberando novas dimensões, mas sim reduzida a uma série de relevos esculturais rasos contra a estável armação retilínea do recinto. Modificações foram introduzidas, mas a estrutura básica da geometria Euclidiana é intocável. O simbolismo clássico do espaço mensurável figurativo é trocado por um novo simbolismo do espaço abstrato infinito. O apelo à matemática como transcendental e fundacional não é diminuído. As coordenadas estáveis do espaço Cartesiano persistem,agora como uma estrutura para a visualização de um objeto fragmentado. O privilégio do sujeito que vê é mantido. A dupla metafísica do modernismo primitivo –espaço infinito e tempo simultâneo– está disponível apenas como metáfora.
Embora os efeitos espaciais complexos da ambiguidade, transparência ou reversão sejam evidentes na experiência dos primeiros edifícios modernos, esses efeitos não são sempre diretamente antecipados na forma de desenhos.A distância entre as projeções axonométricas de Theo van Doesburg e suas construções realizadas –a decoração do Café Aubette (1927), por exemplo– ensaia a mesma dificuldade de tradução descrita no caso de Lissitzky. O neoplasticismo queria identificar o espaço atópico da projeção axonométrica com um novo senso de um campo espacial infinito. Esses artistas e arquitetos propuseram uma estética utópica que poderia estender-se a todos os aspectos da vida urbana e cotidiana. Mas tornou-se cada vez mais difícil conciliar essa visão estética com a experiência do espectador no espaço concreto físico. A reinterpretação da projeção axonométrica pelos artistas de vanguarda, como um veículo para o pensamento universal e abstrato, nunca foi totalmente integrada na prática arquitetônica. Como Yve-Alain Bois apontou, isto é somente na prática mais recente –as projeções de Daniel Libeskind ou os modelos axonométricos de Peter Eisenman, por exemplo, em que uma investigação dos significados de representação tem precedência sobre edifícios realizados– estes arquitetos tem explorado plenamente a reversibilidade da profundidade implícita e do primeiro plano que caracteriza a projeção axonométrica. Mas neste caso as representações só podem referir-se a outras representações. A obra (mesmo quando construída) permanece bloqueada dentro do compasso limitado da disciplina, sem tirar vantagem da capacidade instrumental da projeção arquitetônica para transformar a realidade e assim, necessariamente, envolver o social.
Referência:
Stan Allen, "Axonometric projection: new geometries and old origins", em Practice: Architecture, Technique and Representation, G+B Arts International, Amsterdã, 2000, pp. 17-26.
© Tradução: Igor Fracalossi. Colaboração: Audrey Migliani.