«Pavilhão alemão oficial
O arquiteto van der Rohe fez algo modernista muito acentuado, somente com linhas retas horizontais e verticais, e com materiais ricos, como blocos de mármores, do país e italianos, e paredes duplas de vidro misterioso.
Resulta distinguido seu conjunto: raro por sua estrutura, com dois espelhos d’água, sala oficial e amplos corredores. Foi dito que os cristais são misteriosos porque uma pessoa colocada em frente a um desses muros se vê refletida como num espelho, e se se traslada para trás daquele, então vê perfeitamente o exterior. Nem todos os visitantes se fixam em tão curiosa particularidade, cuja causa se ignora.» —Eliseo Sanz Balza, Notas de um visitante, Barcelona, 1930
Para um explorador é importante prestar a máxima atenção a quanto digam os indígenas, porque aí irá encontrar pronunciadas –sem tradução nem reserva alguma– as ingênuas emoções que desperta no imaculado selvagem cada impressão recebida. Remontando então o curso em direção às fontes –partindo da palavra pronunciada, passando pelo sentimento expressado, deixando para trás a impressão recebida– o explorador poderá chegar assim ao objeto que produziu tudo: o Pavilhão da Alemanha, em nosso caso, de outra forma desconhecido para qualquer investigador moderno.
Porém, para conseguir esse reencontro com o objeto primitivo, não serve qualquer indígena: só os ingênuos. Nunca os ressabiados, que acrescentam surpresas por sua conta, que traçam pistas falsas que não conduzem a lugar algum, que descrevem emoções produzidas só pelo afã de interessar ao estrangeiro.
Um exemplo de maus indígenas: os havaianos, que sempre levam roupas íntimas debaixo de seus colares de flores e suas cinturas de palha de coco.
Outro exemplo: como cita Nicolás Rubió em seu emotivo artigo sobre o Pavilhão, publicado durante o mesmo 1929: “De turistas a indígenas de extrema vanguarda, todos haviam reprovado: ‘Esse pavilhão não é nada inovador’. Estavam contra o arquiteto, disseram que ele não deveria trazer essas sub-novidades a Exposições Internacionais”. Não sabemos, ou não nos atrevemos a imaginar, quem poderiam ser esses irredutíveis nativos, que, na Barcelona de 1929, achavam pouco “moderno” o Pavilhão de Mies: Rubió, discreto, esquece de mencionar seus nomes.
Mais exemplos, porque esses indígenas perversos formam uma raça resistente e prolífica: quem escreve, no nº 57 da revista CAU, que talvez já vá sendo hora de opor “novas interpretações” às “velhas interpretações” que sempre outorgaram o monopólio da qualidade e do interesse ao Pavilhão da Alemanha. É muito possível que haja mais de um que chegue a encontrar interesse nos pavilhões da Iugoslávia, dos Armazéns Casa Jorba, da Confederação Hidrográfica do Ebro ou em qualquer outro dos rançosos exercícios que combinam grosseiramente piadas futuristas, efeitos expressionistas mal recordados e decomposições neoplasticistas rapidamente congeladas. E talvez alguém chegue a desfrutar com isso. Afastado desses matizes, a mim só ensinaram que o Pavilhão de Mies se basta por si só para explicar o trânsito da arquitetura moderna desde os confiáveis anos heróicos das vanguardas até a lânguida contemplação mais resignada do International Style, e que o Pavilhão é ademais, ou talvez sobre tudo, um objeto belo e emotivo, indiferente a competições de maior ou menor modernidade com quem passe por seu lado.
Pelo prazer que sempre me deu olhar suas fotografias ou seguir os desenhos que o representam, sou grato, como recordo desse prazer e como agradecimento ao seu autor –que tanto se parece, ademais, com Gregorio López Raimundo–, por escrever sobre o Pavilhão.
É uma casa sem portas. Aberta ou fechada?
A pergunta não é irrelevante. Durante muitos anos, os críticos de arquitetura outorgaram, ninguém sabe muito bem por que, que um espaço aberto, fluído em seu desenvolvimento interior e derramado ao seu exterior, deve ser julgado de maior qualidade que um espaço compartimentado, encaixado.
Talvez tenha sido pela emoção do descobrimento do espaço tardorromano que, da mão de Wickhoff e Riegl, chegava aos arquitetos naturalmente com várias décadas de atraso com respeito ao público culto, ou talvez tenha sido pelo recordo, ainda mais distante, de que aquele mítico nascimento de uma arquitetura autóctone nas pradarias norte-americanas, na casa do pioneiro que se identificava a si mesmo com a Natureza com a que competia, construindo seu domicílio como mais uma prolongação dela, como a expressão e o resultado do pacto entre ambos, e não como uma oposição defensiva: o certo é que o mito “dos espaços abertos” foi alimentando todo gênero de valorizações, mais que descrições, da arquitetura de nosso século.
Ao Pavilhão de Mies o correspondia, posto que era uma obra de qualidade, vir explicado como espaço aberto e fluído, máxime quando tão manifesta era a ausência de clausuras entre exterior e interior. Um exemplo caricaturesco: no gracioso artigo já mencionado da revista “CAU”, em apenas dezesseis linhas de coluna estreita, pode ser lido, referido ao Pavilhão: “Os temas da fluidez e continuidade espacial (...), a fluidez e a transparência espacial (...), um espaço em que a fluidez, a continuidade...”
O Pavilhão de Mies é um espaço fechado.
Como pode ser isso, numa casa sem portas, sem tetos, quase sem paredes e com paredes de vidro? Nicolas Rubió, no mesmo artigo do ano 29, foi o primeiro a adverti-lo e explicá-lo: “Alguns desses quartos não têm teto: eles são verdadeiros meio-pátios, onde o espaço é limitado apenas por três paredes e a superfície horizontal da água da piscina, mas onde ele está ‘retido’ pela geometria."
O espaço do Pavilhão fica “retido pela geometria”, segundo um procedimento constante em toda a arquitetura de Mies. Trata-se da disposição de um ou de vários planos horizontais, destacados do solo, onde o plano inferior sempre designa uma superfície estrita. Pense numa bandeja de garçom de cafeteria ou na superfície de uma mesa: não há “limites” ao espaço virtual que constroem, mas esse espaço fica exatamente detido, cilíndrico num caso e prismático no outro, apesar da ausência de clausuras materiais que se oponham ao seu desenvolvimento. Estar nesse espaço significa estar sobre o plano recortado; enquanto que na arquitetura norte-americana, por exemplo –para citar um caso de verdadeira continuidade espacial–, estar em um espaço nunca significa estar sobre o solo, senão estar a uma ou umas direções, precisas ou ambíguas.
No Pavilhão, no plano que separa do solo e retém o espaço é o formado pela plataforma retangular de travertino, alta mais de um metro. Uma base que esconde, a quem se aproxima frontalmente do Pavilhão, o meio de encarar-se a ela: os oito degraus foram ocultados atrás da peça que serve de rodapé, ao rés da plataforma.
Essa segregação da plataforma fica ainda reforçada pela própria situação do Pavilhão no espaço da Exposição: do outro lado da gigantesca colunata que acabava a avenida transversal. A primeira imagem do Pavilhão sempre era a de um objeto solitário colocado detrás desse fragmento de peristilo virtual, de jaula formada pelas colunas e o interminável plano cego do Palácio de Victoria Eugenia. O visitante devia deixar atrás o lugar da Exposição e cruzar o limite para aproximar- se do Pavilhão.
Se basta a plataforma para definir como distinto o espaço do Pavilhão, para segregá-lo como um cenário à parte do solo que pisa o público da Exposição, o plano definido pelas dois cobertas, reduzidas à lâmina, servirá para converter esse espaço, não só em distinto, senão em encerrado, em interior.
Trata-se de um tema presente em toda a arquitetura de Mies, desde seus primeiros projetos até sua morte. Num artigo escrito há alguns anos, Architettura per i musei, Aldo Rossi afirmava: “Creio que o primeiro princípio de toda teoria é a obstinação sobre alguns temas, e que é próprio dos artistas, dos arquitetos especialmente, o fato de centrar-se sobre um tema a desenvolver, efetuar uma opção no interior da arquitetura e de querer resolver sempre um mesmo problema”. Isso é certo para os mestres do nosso século, para Wright, Le Corbusier e Gropius, para Mies. Em Mies encontraríamos sempre repetida essa obcessiva vontade de construir um espaço segregado e fechado, do que todo habitante vai ficar excluído.
Em seus primeiros projetos dos anos Dez –na casa Kröller ou no monumento a Bismarck, por exemplo–, a arquitetura não se definia depositada sobre o solo, senão elevada, distanciada desde uma plataforma construída previamente, claramente estranha ao terreno natural. Essa mesma elevação, mas repetida indefinidamente, é a que dará lugar, nos anos Vinte, a seus projetos de arranha-céus de vidro, que não são um traço vertical, senão a trabalhosa ascensão piso a piso de uma série ilimitada de plataformas horizontais que se originam todas num solo distinto ao da cidade, mais profundo, e que crescem por entre os edifícios vizinhos sem aceitar colóquio com eles.
Já não será indiferença, senão obstinada clausura o que demonstram os projetos de casas com pátio de seus últimos anos alemães, fechando herméticamente o espaço interior com um recinto infranqueável, como se a arte ou o cenário amistoso –o domicílio– só pudesse surgir alí onde foram cortadas todas as dependências com a vida. Suas casas norte-americanas –a Resor, a Farnsworth, a “Fifty-by-fifty” – apresentam um exagero mais amargo e radical dessa censura. A incomunicação entre interior e exterior, entre arte e vida, está tão assegurada, desde antes já da arquitetura, que não parecem necessárias as clausuras. É mais: apresentar a desnecessidade de barreiras demonstrará o infranqueável das diferenças. Nesses projetos o espaço fica definitivamente retido como uma fresta entre as plataformas, extendido por capilaridade e levitando à margem do solo natural.
Em toda a arquitetura de Mies o primeiro traço sobre o papel é horizontal. A definição formal do espaço se produz sempre e somente por planos horizontais. Os planos verticais aparecem mais tarde, uma vez que o cenário tenha ficado disposto. Por isso exibem então sua mobilidade, sua capacidade de deslizar-se ou deter-se arbitrariamente sobre qualquer ponto do plano fundacional, que não podem alterar. Aparecem então os biombos, as divisórias de ébano, ônix, ou sedas, as placas de mármores ou os recortes de uma paisagem através do vidro. Ou aparecem também esses objetos sobressaturados de forma, involuídos, ansiosos somente de si mesmos: as poltronas, as esculturas, todos os sujeitos queixosos que povoam em solitário o cenário miesiano. Pode-se chama-los móveis? O que não é “móvel” sobre a plataforma de uma arquitetura de Mies?, poderia ser respondido. O próprio procedimento técnico da representação do projeto –o collage, colando sobre uma lâmina já desenhada, na que aparecem os planos horizontais e, portanto, o cenário, recortes que representam os objetos verticais, errantes, irremediavelmente alheios ao espaço, depositados fragilmente sobre ele –indica bem às claras o distinto instante de geração de uns e outros, sua condena a serem heterogêneos e a estarem constituídos de materiais e em tempos distintos.
Os objetos nunca formarão parte do cenário. O cenário está disposto para permanecer vazio. “Ele não contém senão o espaço”, escrevia Rubió sobre o Pavilhão. Poderia exagerar seu comentário, aumentando ainda mais sua exatidão: ele não contém senão o espaço contido.
Advirtamos por outro lado essa coincidência, não só funcional, senão inclusive visual, que se produz nas fotografias de interiores das casas de Mies –na casa Tugendhat, especialmente, da qual todas as fotografias costumam ser velhas–, entre os veios da borrosa jardinagem do exterior e os veios das placas de mármore do interior. O exterior ficou negado como paisagem mais ou menos longiquo e se converteu numa placa aderida à janela, numa representação de si mesmo: até o ponto de que um projeto como o da casa Resor pode ser explicado simplesmente pelas intersecções da pirâmide visual de quem está olhando para fora, com o plano do vidro. O exterior nunca conseguirá estar presente, fazer-se advertir como realidade material, nem sequer quando seja mais imponente, nas montanhas de Wyoming: só se aceitará sua representação.
A referência às pirâmides visuais –a Alberti, portanto, e, correlativamente, a umas matrizes conceituais thomistas ou platônicas– não é arbitrária. A de Mies é uma arquitetura antisensorial, formada mais por representações que por valores plásticos. Tanto como a fachada de Sant’Andrea em Mantua, de Alberti, que representa num plano a estrutura tridimensional das naves de San Lorenzo de Florência, de Brunelleschi, o que forma as fachadas interiores da casa Resor é uma paisagem mentalizada, representada em duas dimensões, reduzindo a imagem de si mesma.
É possível que mais de um já esteja pensando, desde muito tempo, num projeto de Mies que assinalaria uma exceção ou inclusive um desmentido à interpretação ensaiada até agora. Estou me referindo ao projeto da casa de campo em tijolos, de 1922: um evidente exercício wrightiano, colocado no início da atividade madura de Mies, fechando seus anos de experimentação. A partir daí poderia ser interpretado em outro sentido o resto de seu trabalho. Mas tentemos, antes de mais nada, entender esse projeto, o mais predisposto, aparentemente, a vir explicado em termos de interpretação espacial.
A influência de Wright chega a Mies numa onda dupla. A primeira, em seus anos de trabalho com Peter Behrens, procederá sem dúvida do portfolio Wasmuth, diretamente conhecido ou assinalado talvez por Gropius, que também trabalha no escritório de Behrens durante esse tempo e que, em 1914, em sua fábrica modelo da Exposição de Deutscher Werkbund, demonstraria com sobras seu interesse pelo arquiteto norte-americano chegando até a citação textual de alguns fragmentos. A segunda onda, mais referida ao projeto de casa de campo em tijolos, chegaria dos Países Baixos, com Van’t Hoff, Oud, e o grupo gravitando em torno da revista “Wendingen”.
A influência consciente de Wright não pode, pois, ser negada. Mas tampouco pode ser que nada tenham a ver entre si o protagonismo do espaço em Mies ou em Wright. O que é que cresce, se desenvolve, flui, e se derrama ao exterior no projeto de Mies? O espaço? De nenhum modo, o que cresce são os muros: exatamente o contrário do espaço. No projeto de Mies, os espaços ficam perfeitamente definidos, estáticos uma vez que tenham alcançado sua forma, em contato mas sem contagio entre si. Só o que não é espaço, ou o espaço no que nunca conseguimos penetrar, que nos é negado –ou seja, o maciço da parede– demonstra sua capacidade de desdobrar-se, de fundir-se organicamente com as linhas de força do mundo exterior.
Trata-se da situação inversa à de Wright, para quem, a partir de uma etapa que a casa Husser fecharia –na qual o espaço, embora já em continuidade, ainda está definido desde seu perímetro, desde os valores distintos que adota a parede, sendo um resultado do muro, como já ocorria nas bibliotecas de Richardson, antecedente primitivo ao sentido espacial wrightiano–, o espaço possui entidade própria, desenvolvendo-se para as paredes como o vento sobre os juncos: inclinados, assinalam e parecem canalizar as rajadas.
O aparentemente wrightiano projeto de Mies é o exato negativo fotográfico de qualquer prairie house. Poderíamos interpretá-lo supondo que o monumento a Karl Liebknicht e Rosa Luxemburg fosse um detalhe agrandado da casa de campo em tijolos, um fragmento agigantado de qualquer de seus muros, que exibe, provocativamente, nossa exclusão, como fazem também os espelhos do Pavilhão, rebatendo nossa mirada sem lhe permitir penetrar nele, devolvendo-nos nossa imagem colocada sempre fora do Pavilhão.
Olhar no Pavilhão é advertir-se excluído.
O “tema” de Mies não é o de Wright, nem sequer nesse projeto de 1922, embora possa estar comprovando nele os materiais de Wright. Vale a pena advertir que idênticas relações se estabelecem também entre Mies e os neoplasticistas. Mies não é van Doesburg, embora esteja experimentando os instrumentos próprios da composição neoplasticista. Zevi valorou, corretamente, que “talvez não haja somente um arquiteto culto (...) que não tenha recorrido, em alguma fase de seu desenvolvimento pessoal, às investigações de descomposição derivadas do grupo holandês”; mas também há que medir exatamente quanto neoplasticismo há no Pavilhão de 1929.
Recordemos um canto importante, aquele onde está situada a escultura de Kolbe. O que é, aí, um diedro? Não há dúvida: é a intersecção de dois planos. Veja, ao fundo, a parede escura: vem desde algum lugar da esquerda, por esse corredor do que se descobre a desembocadura, e vai crescendo para a direita, até encontrar-se com outro muro de seu mesmo material e dimensões, que foi crescendo em sentido inverso, desde algum lugar à nossa direita, constantemente para o fundo. Onde ambos se encontram, produz-se a reta, resultado final de ambos, conclusão de seu movimento. O que é um diedro num projeto de Rietveld, de van Eesteren ou van Doesburg? O contrário que no Pavilhão de Mies: é o eixo inicial da composição ou da análise, não seu resultado final; é o apoio e o impulso do movimento tridirecional ao que irão se referindo todos os planos do espaço. Também por isso, nos desenhos neoplasticistas, a reta que assinalaria um diedro ocupa um lugar que está vazio ou que é central: os planos, ou que já escaparam, deslizados mais além da sua guia, ou se repartem ultrapassando sua reta intersecção, formando então quatro diedros. Isso nunca ocorre no Pavilhão de Mies, onde não se conhecem rebarbas, sobreposições ou prolongações na intersecção de dois planos. Voltando ao canto do espelho d’água pequeno: advirta a exata equivalência entre os dois planos horizontais de cor clara, que se detêm exatamente sobre uma mesma reta, ou a repetição entre os dois planos, de valores visuais inversos e, portanto, simétricos e equivalentes, da capa profunda e clara do céu e a capa profunda e escura da água, ou a tela escura de vidro, à esquerda, e a tela virtual transparente que une o final da coberta com a borda do espelho d’água, no centro. Esses múltiplos pares de planos paralelos vão definindo e envolvendo uma série de espaços prismáticos perfeitamente recortados, de valores plásticos ou conceituais inversos. O conjunto do Pavilhão poderia ser descompo, assim, em distintos prismas unidos só pela tangência, sem oferecer nenhuma dúvida na hora de atribuir, a uma ou outra caixa, qualquer dos lugares do Pavilhão.
Uma casa sem portas, fechada, da que todo visitante fica excluído, e formada por espaços impermeáveis uns a outros: esses são os materiais do Pavilhão. Com que objeto pode havê-los reunido Mies aqui?
“Nada arde na Casa de Cristal, nela não é necessário guardar o fogo”; “O inseto daninho não é amável, nunca entrará na Casa de Cristal”: são dois dos quatorze versos que Paul Scheerbart escreve para serem incorporados à Casa de Cristal que Bruno Taut constrói em Colônia, em 1914, como pavilhão das indústrias do vidro na exposição da Deutscher Werkbund. Quinze anos mais tarde, em Barcelona, Mies quererá construir esse pavilhão.
Restaram para nós poucas fotografias e somente alguns desenhos gerais do pavilhão de Taut; inclusive a maquete, como recorda Scheerbart em sua correspondência, se perdeu ao mesmo tempo que o pavilhão, e nada já restitui o efeito que produziu àqueles que penetraram em seu interior. No exterior, a forma pode ser interpretada, simultaneamente, como a de uma gema vegetal e a de um cristal talhado. Imagem da síntese, pois: representação da harmonia reconquistada entre a Natureza e o Pensamento, entre o impulso orgânico do crescimento e a estrutura conceitual do Universo. O pavilhão se levantava, precisamente, sobre essa mesma contradição exposta sem resolver: a base era um bulbo inconsciente, brando e maleável de concreto, sobre o qual se havia depositado, milagrosamente sem rolar para baixo, quatorze duríssimas esferas de vidro, brilhantes. Penetrar no pavilhão significava, para o visitante, uma inequívoca cerimônia de iniciação. Primeiro, se garantia a purificação das condições do mundo exterior superando a não pacificada plataforma: um neófito sobe por uma escada de planta curva, com superfícies de vidro à sua direita, à sua esquerda, abaixo de seus pés e sobre sua cabeça. Avança sem direção, entre impressões translúcidas, iluminadas e imateriais. Toda referência a uma orientação estabilizada foi eliminada. “Estamos suspensos no espaço e ainda não conhecemos a nova ordem”: quando Gropius responde em 1919 à pesquisa do Arbeitsrat für Kunst, está descrevendo exatamente esse instante da purificação, no ingresso à Casa de Cristal. O neófito purificado adentra-se num espaço desconhecido. Quando esteja debaixo da cúpula de vidro e se desloque, compreenderá que não é o ambiente o desconhecido, senão ele mesmo, seu próprio corpo, que passa a ser o ponto de interesse do pavilhão: a cúpula dupla, de vidro branco romboidal, por fora, e de centenas de vidros talhados, coloridos, por dentro, tinge qualquer objeto –e pessoa– que esteja em seu interior com dezenas de cores e manchas de luz.
Mover-se, sob essa cúpula, significa ir-se advertindo mudando a si mesmo de cor, a cada passo. A força do vidro revelou a enorme energia que estava no interior do visitante: dormida, desconhecida antes para ele. A Glasarchitektur, advertia Adolf Behene, não anuncia mundos novos, não os imagina: os constrói. O visitante se aproximou à Casa de Vidro como o espectador que acode frente a um cenário, porém uma vez ali advertiu que era ele mesmo quem estava representando a ação: como teatro total, a Casa de Cristal cobrirá qualquer distância entre olhar e fazer, entre espectador e ator, entre Arte e Vida.
Explicar essa reconquistada ressonância entre o universo revelado e o Sujeito, advertir no Sujeito o desdobramento escavador da energia do vidro: esse é o exultante aviso do pavilhão de Taut. Na gruta do pavilhão – realmente, na planta terreno, à que só se chegava descendo desde o interior da cúpula– o novo homem reconhece nos outros objetos do mundo de vidro qualidades idênticas às recém-descobertas em si mesmo: a cascata sobre uma escalinata de vidro pela que saltava água tingida pela luz de cores cambiantes, as projeções de diapositivos abstratos e de figuras de caleidoscópio, o recobrimento de todas as superfícies com mosaicos de vidro, a mesma presença da cúpula entrevista pelo vazio central do piso superior, o som ritmado da água...: uma inequívoca Gesamtkunstwerk em harmonia –e isso é o importante– com as qualidades que o visitante reconheceu em si mesmo.
No Pavilhão de Barcelona haverá desaparecido, precisamente, essa harmonia revelada. O visitante se advertirá estranho nesse espaço que nunca conseguirá atravessar, que foi construído precisamente para se demonstrar vazio, e que a presença de multidões não conseguirá preencher.
“Uma casa não deve ser outra coisa mais que bela. Não deve ter outra finalidade, deve estar –seguindo a máxima de Meister Eckhart– vazia: ‘Eu nunca rezarei a Deus para que se aproxime de mim; rezarei para que me esvazie. Porque quando eu esteja vazio e puro, Deus, por sua própria natureza, se dirigirá a mim e se cumprirá em mim’.” Assim inicia Bruno Taut o seu Haus des Himmels, apresentando o projeto de mesmo nome.
O Pavilhão de Mies é, outra vez, a Casa de Cristal, mas agora não só a luz não nos tingirá, outorgando-nos sua confiança, senão que nunca alcançaremos para tocá-la. A única fonte de luz no interior do Pavilhão está encerrada entre quatro telas de ônix rosado, translúcidas, no interior dum espaço pelo que nunca circularemos. Sabemos de sua presença, do outro lado da parede: proibida. Resta, ainda, uma luz mais, que só pode advertir quem está no corredor ao fundo do Pavilhão. Desde aí, a escultura de Kolbe é percebida inundada por uma avalanche de luz terrível, mais brilhante e clara pelo contraste com a penumbra do corredor onde está o observador. Mas a dançarina não a irradia, senão que, esmagada por seu peso, trata de recusá-la com os braços. A seus pés vai crescendo o escuro espelho d’agua onde se recolhe o vidro fundido, inerte, sem capacidade já para convocar a Deus na casa vazia e pura.
Se, ainda, pode ser propostar uma Gesamtkunstwerk, o Pavilhão de Mies a constrói, ou como cenário vazio, ou como teatro do que o Sujeito deve estar ausente, olhando desde o outro lado da parede. Manfredo Tafuri, em “Il teatro come ’cittá virtuale’. Dal Cabaret Voltaire al Totaltheater”, explicou o Pavilhão de Mies precisamente como presença cênica: “Em 1929, Mies van der Rohe, no Pavilhão de Barcelona, constrói um espaço cênico cuja neutralidade tem profundas afinidades com aquela, de rítmicas geometrias, das cenas de Appia ou Craig. Nesse espaço, lugar da ‘ausência’, vazio, consciente da impossibilidade de restaurar ‘síntese’ uma vez que se compreendeu o ‘negativo’ da metrópole, o homem, o espectador dum espetáculo realmente ‘total’ por inexistente, fica obrigado a seguir uma pantomima que reproduz o vagar no labirinto urbano de seres-signos, entre signos privados de sentido; experiência cotidianamente repetida por ele. No absoluto do silêncio, o público do Pavilhão de Barcelona pode, assim, ‘reintegrar-se’ com aquela ‘ausência’.
Já não mais tentativas de síntese entre ‘a máscara e a alma’. Num lugar que recusa oferecer-se como espaço e que está destinado a desvanecer-se como o toldo de um circo, Mies dá vida a uma linguagem feita de significantes vazios e solos, nos que qualquer ‘familiaridade’ é exibida como mentira. Os sortilégios do teatro de vanguarda se apagam nas voltas sem fim do espectador no Pavilhão miesiano, no interior da ‘selva’ dos ‘dados’ puros. O riso libertador fica congelado ao advertir o novo ‘dever’: a utopia já não reside na cidade nem em sua metáfora espetacular, senão somente como jogo ou como estrutura produtiva vestida de imaginário.”
A pergunta pode reaparecer, constantemente: Por que essa amarga distância entre o pavilhão de Taut e o de Mies? Não só por quanto separa às pessoas de ambos –embora o conceito de espaço de Mies possa ser facilmente explicado desde as características de seu pensamento católico, tão distante do comunismo cósmico de Taut. Entre 1914 e 1929, em apenas uma geração, haverão sucedido a Magdeburgo colorida, os Arbeitsrat für Kunst, a participação nos ajuntamentos sócio-democratas, mas também a Grande Guerra, o esmagamento da revolução, o corpo de Rosa Luxemburg flutuando num canal, com o crânio esmagado a culatradas também sócio-democratas, a crise de 24...
1929: não vale a pena insistir nesse ano emblemático. Não por casualidade, dois anos mais tarde a proposta das vanguardas já será, somente, Estilo Internacional.
Esse trânsito é o que quer explicar o misterioso vidro quando devolve o olhar do visitante, sem lhe permitir entrar nele, sem lhe animar a entressonhos, esperando em vão a chegada de Deus nesse cenário vazio e puro.
“Só estava feito para ser belo”, costuma-se dizer do Pavilhão que construiu Mies van der Rohe em Barcelona. E isso é bem certo se, como disseram os anjos a Rilke, o belo não é mais que esse grau do terrível que ainda conseguimos suportar.
Referência:
Josep Quetglas, Pérdida de la síntesis: Pabellón de Mies, Carrer de la ciutat n. 11, Barcelona, 1980.
Primeira edição em português. © Tradução: Igor Fracalossi. Colaboração: Audrey Migliani.