«Falamos ainda do ‘nascer’ e do ‘pôr’ do sol. Fazemo-lo como se o modelo copernicano do sistema solar não houvesse substituído irreversivelmente o ptolomaico. Metáforas vazias, figuras erodidas de discurso, habitam nosso vocabulário e gramática. Elas são pegas, tenazmente, nas andaimadas e recônditos de nossa fala comum. Lá elas vagam como velhos trapos ou fantasmas de desvão.»
Assim George Steiner começa seu livro Presenças Reais: falamos ainda do pôr-do-sol. Que paradoxo este entre o saber e o querer, entre conhecimento e vontade, entre verdade e beleza. Não nos interessa o porquê de que seguimos falando do pôr-do-sol, senão o fato de que seguimos falando. Sim, seguimos falando, todos os dias. Ainda. E, sim, seguimos sabendo que o sol é imóvel e é o centro do sistema solar. Um não altera o outro. Eis o paradoxo. Que a certeza de um não supere a beleza do outro nos parece o ponto. Que o objetivo e absoluto de um não negue o subjetivo e o relativo do outro nos abre as portas para escrever este ensaio.
Distinções
Neste escrito foram utilizados termos terminados por –ção para reforçar o caráter de ação de cada um deles. Eles são os termos fundamentais e que tem por si mesmos e em conjunto a condição de hipóteses. Para precisar cada termo, se faz uso da lógica linguística, mais que de definições de dicionário. Mas também buscamos evitar e superar as banalizações e derivações, digamos, invertidas, para assim voltar ao uso de termos que conservam de fato seu caráter essencial. Para cada termo se designará uma letra maiúscula, que serão retomadas ao longo do escrito. Concepción (C) é a ação de conceber ou produzir conceitos (C’); conceitos em quanto ideias, imagens mentais inacessíveis. Projeção (P), por sua vez, é a ação de projetar ou elaborar um projeto (P’). Utiliza-se o termo projeção, e não projetação, deliberadamente. Projetação é um termo derivado inversamente de projeto; projeto tomado em quanto fato ou produto do labor do arquiteto, no sentido de que um vaso é o produto do oleiro. Projetação produz a conotação ou indica mais acertadamente a ação de fazer um projeto, não a ação de projetar; um projeto despojado de sua condição projetiva, isto é, como algo que não projeta para mais além. Ao contrário, o termo, original, projeção conserva esta condição: ainda indica a ação de lançar para além, e não de produzir algo. Logo, se utiliza o termo original que denota movimento e tempo, projeção, e não o termo derivado que denota estática e espaço, projetação. No entanto, o termo projeto (P´) é utilizado carregado por ambas condições: o movimento e o fato, ou se poderia dizer que o projeto é um fato em movimento. Edificação (E) é utilizada em quanto a ação de edificar ou de materializar um edifício; edifício em quanto produto material de um labor construtivo num sitio determinado. Não é utilizado em seu lugar o termo construção, pelo motivo que indica a criação de um constructo, que é um termo mais universal e que, portanto, se adequa a mais ofícios e âmbitos, podendo ser material ou não. Utilizam-se duas adjetivações do termo edifício: o edifício imaginário (I) e o edifício real (R). O edifício imaginário (I) é aquele que se produz através da concepção (C); para isso também se utilizará, embora em poucas ocasiões, o termo edificação imaginária ou edificação virtual. O edifício real (R) é aquele que se produz pelo labor construtivo material, a edificação (E), o mero edifício definido anteriormente. Retração (T) é utilizada em quanto a ação de trazer novamente ou de elaborar um retrato (T’); retrato em quanto o produto gráfico da tradução mimética de uma imagem vista ou imaginada, tendo portanto o caráter de representação. Ademais, utiliza-se retração (T) como ação oposta à projeção (P), e em consequência, retrato (T’) como oposto a projeto (P’). Não se utiliza o termo retratação pelo mesmo motivo dado à projetação.
O ato arquitetônico[1]
Aqui descreveremos exploratoriamente o ato empreendido pelo arquiteto com o propósito de materializar um edifício. Utilizaremos como ponto de partida o caso hipotético relatado no frontispício deste ensaio (ler A Obra). Temos claro que não se trata do caso normal, este sendo aquele onde o corte entre o âmbito da projeção e o âmbito da edificação é sobressaliente, sendo o arquiteto o encarregado pela concepção e projeção, mas não diretamente pela edificação. Nesse sentido, o caso hipotético é um caso excepcional. Não trataremos de casos parciais, onde o edifício não se materializa, ou onde não há projeção, por exemplo, O ato arquitetônico é o conjunto de ações entrelaçadas no tempo e no espaço empreendidas pelo arquiteto e que determinam a obra de arquitetura.
Assim temos que C + P + E → O
Antes que se inicie qualquer movimento e se gaste qualquer energia em busca de forma, um catalizador (Z) é necessário. Sem ele, não se ativa a reação interna do arquiteto. Sim, uma reação interna ao arquiteto, individual, única, incomensurável. O catalizador não é mais que uma mera vontade: uma decisão, desde a qual não se pode voltar atrás, que determina um ponto inicial preciso. Quero uma casa, dizem ao arquiteto. Farei uma casa, se diz o próprio arquiteto. Diz-se, porém também escuta a si mesmo como se fosse outro. Tal é a sutileza de falar a si mesmo ou ler em voz alta: fala-se e escuta-se, duas ações simultâneas, dois sujeitos. Escuta-se como uma ordem, e a aceita como verdade. A decisão torna-se necessidade, necessidade de algo: uma casa. Algo preciso, e ao mesmo tempo tão genérico. O som casa interpela o arquiteto, que se infla de vontade. Seus instintos são atacados e se exaltam. A onda sonora casa ativa o que lhe é mais natural. Aqui tem lugar o início da reação que lhe levará por uma longa busca por forma. Obviamente a reação só ocorre quando o arquiteto carrega a capacidade da arquitetura. Em outros casos, será como por a nona sinfonia de Beethoven a uma pessoa que gosta de techno. Ou seja, no arquiteto devem existir os reativos (A) em estado latente, à espera do catalizador que vai ativá-los.
Assim temos que A + Z → C + P + E → O
1 Concepção
O catalizador da reação –a vontade, a decisão, o pedido, a ordem, a alucinação– instala o gérmen de conceito que se instala na mente do arquiteto. O som casa é esse gérmen. Interpela o conceito de casa já formado na mente do arquiteto. Isso é a ativação Z + A, quando a função tempo é igual a 0. E sua primeira fase é a concepção. Não pode ser outra. A não ser que o arquiteto tenha o despropósito e a inocência de uma criança, que é um ente meramente ativo, e ainda não reflexivo. O arquiteto reflete; reflete tão logo escuta casa. Então vem uma primeira imagem, uma primeira forma. Esta ainda não é o esboço do edifício ao qual se propõe, senão sua forma universal; no exemplo: a forma de casa, que somente depois começará a ser transformada, recriada, subvertida, negada, etc. A concepção detém também seu âmbito menos formal, quase aformal, aquele desde onde surge o pensamento reflexivo sobre uma condição, ação ou circunstância. Por exemplo, a reflexão sobre a condição e a ação de habitar, que irão interferir no desenvolvimento da projeção e edificação. A esse âmbito é o que chamaremos de concepção, enquanto que seu âmbito formal chamaremos de edificação virtual ou imaginária.
Assim temos que quando t = 1, Z + A → C. E quando t = 2, C → E | E ⊂ C
O edifício imaginário surge da edificação virtual, que se desenvolve em dois frentes: um construtivo-material e outro plástico-formal, embora ambos operem em base a imagens. Porém o primeiro frente da conta de uma previsão da faina mesma da edificação, enquanto o segundo é em grande medida independente dela, estando vinculada à geometria. O edifício imaginário deve surgir de uma conjunção de ambos os frentes em proporções diferentes.
Assim temos que quando t = 3, E → I | I ⊂ E
Não obstante, o sistema é dinâmico. A edificação virtual surgida da concepção prontamente começa a retroalimentá-la, e logo a alimentar o surgimento do edifício imaginário, que tão prontamente retroalimentará a edificação ao mesmo tempo que a própria concepção.
Assim temos que C ↔ E ↔ I ↔ C
Logo o edifício imaginário começa a crescer em importância dentro da concepção, criando certa independência tanto dela quando da edificação virtual. Em outras palavras, o edifício imaginário começa a cobrar razão de ser; já possui alguma formação.
Assim temos que quando t = 4, o sistema universo U = I ∪ C | C ⊃ E
2 Projeção
Há quatro frentes desde os quais surge a projeção.
Possibilidade 1: a projeção surge de uma tradução mimética do edifício imaginário, isto é, a tradução de uma imagem mental a uma imagem real. É uma operação formal que se desenvolve num contexto de totalidade a partir do frente plástico-formal da edificação.
Trato de copiar o edifício em minha mente.
Possibilidade 2: a projeção surge do desenvolvimento de um método/etapa/fragmento/detalhe da edificação virtual. É uma operação formal mas que surge de um contexto de parcialidade a partir do frente construtivo-material da edificação.
Trato de precisar um método.
Possibilidade 3: a projeção surge de uma tradução indireta da concepção; a tradução de uma ideia, contida no âmbito aformal da concepção, a uma imagem formal. Surge a partir de um contexto de totalidade.
Trato de compatibilizar uma forma a um conceito/ideia.
Possibilidade 4: a projeção surge do projetar mesmo, do traçar linhas. É a criação de imagens. Surge; sem uma origem determinada.
Trato de desenhar despreocupadamente.
Os quatros frentes irão em seguida hipertrofiar e se interceptar entre eles, para logo se tornar uma única ação projetiva. A projeção é então o resultado de quatro frentes simultâneos: um mimético-formal, um construtivo-material, um conceitual, e um poético-formal, respectivamente.
Assim temos que quando t = 5, U = (C | C ⊃ P3, (C ⊃ E | E ⊃ P2)) ∪ (I | I ⊃ P1) ∪ P4
E quando t = 6, (P1 ∪ P2 ∪ P3 ∪ P4) → P ∴ U = (C | C ⊃ E) ∪ I ∪ P
A projeção, desde seus frentes originários, começa a retroalimentar cada ação que lhe deu origem. No entanto, a existência semi-independente do edifício imaginário produz um diálogo-contraste mais direto e mais forte entre essas duas instâncias em relação às demais, que começam a hipotrofiar, enquanto aquelas hipertrofiam; o edifício imaginário primeiramente. Ele é, nesse momento, o guia da projeção, a qual lhe é submissa. O arquiteto é aí um tradutor desesperado. É justamente quando o edifício imaginário começa a hipertrofiar e ganhar cada vez mais independência, e portanto forma, que a projeção perde aparentemente seu caráter projetivo. Em outros palavras, é nesse momento quando a projeção se torna retração, e o projeto, um retrato; a fase de inconsciência do arquiteto: vê o projeto como produto, e não como processo. Este é o caso normal do labor do arquiteto, que então deixa de ser um projetor para se tornar um retrator, e assim sendo, não seria tão banal dizer um retratista.
Assim temos que quando t = 7, I → P | P ≈ T
A hipertrofia máxima do edifício imaginário coincide com a ciência da impossibilidade do retrato fiel daquele edifício imaginário, o que leva em seguida ao recobro da ciência da condição projetiva do projeto, ou, nos casos pouco afortunados, da desistência do impossível retrato preciso, em prol de um possível retrato impreciso.
Assim temos que quando t = 8, P ≉ T ∴ P → I
3 Edificação
Concepção, projeção, edificação e edifício imaginário seguem se retroalimentando entre eles levando à hipertrofia da edificação virtual. O auge dessa fase é a irrupção da edificação real propriamente dita, e com ela sua independência parcial da concepção e projeção. Faz-se patente, então, a sequência cronológica concepção-projeção-edificação. Somente em raras exceções, das quais não temos notícias, a edificação é anterior à projeção. A edificação refere-se ao início da materialização do edifício real num sítio determinado. O irremediável avanço da edificação, e em consequência a germinação de um edifício real, leva a hipotrofia do edifício imaginário, que diminui até voltar a fazer parte do interior da concepção. A edificação toma o mando do sistema. Concepção e projeção agora a alimentam, embora sigam sendo retroalimentadas por aquela. No caso do relato hipotético (A Obra), aqui se inicia o momento de maior conjunção entre as três ações: é quando as três ações adquirem cada uma o caráter de todas, abrindo a possibilidade de que a edificação conceba e projete, que a projeção edifique e conceba, e que a concepção edifique e projete. Sendo que o caráter fundamental adquirido por elas é o da projeção: cada ação lança às seguintes. O sistema se torna finalmente uma tríada dinâmica indissolúvel.
Assim temos que quando t = 8, (C ∪ P ∪ I) → E ∴ U = (C ∪ P ∪ I ∪ E)
E quando t = 9, I ⊂ C ∴ U = C ∪ P ∪ E
É quando o edifício imaginário alcança sua importância mínima que se produz sua metamorfose e a irrupção do edifício real, desde a interseção entre concepção, projeção e edificação. No entanto, nos casos normais, quando o projeto adquire a condição de retrato, o edifício imaginário persiste em sua existência, o que leva à deformações tanto do projeto quando do edifício real por motivo da constante disputa comparativa entre eles. Nesses casos, não se produz uma tríada dinâmica, senão um trio inter-competitivo.
Logo, quando t = 10 temos que I ≈ R | (C ∩ P ∩ E) → R
O edifício real, surgido da interseção entre as três ações fundamentais, se hipertrofia unindo as três. A edificação hipotrofia de tal modo que se torna parte do edifício real. Concepção e projeção mantêm sua independência parcial.
Assim temos que quando t = 11, E ⊃ R
Chegado a esse ponto, o edifício real está próximo da sua consolidação e a faina do arquiteto próxima a seu fim. Com a preponderância do edifício real, como o primeiro produto a se revelar definitivamente no sistema, projeção e concepção iniciam sua divisão, decantação e independência do edifício real. Estando ainda unidas dinamicamente, projeção e concepção atraem em seu movimento centrífugo parte das demais ações. Esse movimento produz uma tripartição de cada uma das três ações, que passam a configurar três tríadas idênticas. O núcleo independente da projeção dá lugar ao projeto. O núcleo independente da concepção dá lugar aos conceitos. A divisão e decantação do projeto e conceitos coincide com a formação do edifício.
Assim temos que quando t = 12, C → C’ | C’ ⊂ (C ∪ P ∪ E), P → P’ | P’⊂ (C ∪ P ∪ E)
Cria-se então, uma nova tríada formada pelos três produtos do ato arquitetônico: o edifício, o projeto e os conceitos, cujos núcleos são formados cada um pela mesma tríada de ações: a edificação, a projeção e a concepção. Cada produto, então, conserva a presença de cada uma das três ações que o geraram. Em outras palavras, através de cada produto é possível entrever cada uma das três ações.
Finalmente temos que quando t = 13, U = (R ∪ P’∪ C’) | R ⊂ (C ∪ P ∪ E), P’⊂ (C ∪ P ∪ E), C’⊂ (C ∪ P ∪ E)
Notas
[1] Ato arquitetônico é um termo tomado emprestado de Juan Borchers e Alberto Cruz, arquitetos chilenos que iniciaram sua atuação teórica e prática nos anos 50, embora utilizassem o termo para fins distintos e com significados distintos, inclusive entre eles.
Referencia:
Igor Fracalossi e Ruth Verde Zein, La Paradoja de la Puesta del Sol: una Inútil Aproximación a la Obra de Arquitectura (extrato: parte 2 de 3), Atas Digitais do I International Conference on Architectural Design & Criticism, Critic|All Press, Madri, 2014, pp. 442-448 (pp. 443-446).
* Leia a terceira parte do ensaio: