Julia King
Independentemente se Shigeru Ban mereceu ou não ser reconhecido com a mais alta premiação da profissão este ano (existem opiniões fervorosas em ambos os lados da questão), existe uma questão que é certa: arquitetura está passando por um momento delicado. E talvez ninguém represente melhor a mudança de direção da arquitetura do que Julia King, premiada com o Emerging Woman Architect of the Year pelo Architecture Journal.
Em busca de um PhD prático através do ARCSR, (sigla em inglês para o Arquitetura para as Mudanças Rápidas e Recursos Escassos) nas favelas da Índia, King percebeu muito rápido que a última coisa que essas comunidades precisavam era arquitetura - ou melhor, do que é tradicionalmente considerado "arquitetura". Afinal, os membros de comunidades já eram especialistas na construção de casas e edifícios. Ao invés disso, ela coloca seu conhecimento arquitetônico em prol de projetar e implementar o que era verdadeiramente necessário: sistemas de esgoto. E então - quase por acidente, ela me confessou - o título de "Garota Penico" surgiu [potty girl em inglês].
Na entrevista a seguir, conduzida via email, conversei com King sobre seu fascinante trabalho, o novo paradigma que isso representa para a arquitetura, a necessidade de renunciar a divisão "urbano e rural" (ela prefere "conectado e desconectado"), as sérias limitações da educação em arquitetura e o próprio futuro da arquitetura. Leia mais a seguir.
AD: Você poderia descrever o trabalho para aqueles que não estão familiarizados? Quais projetos você iniciou ou em quais trabalhou e o que a inspirou a fazer isso?
JK: Em 2010 ganhei uma bolsa para obtenção de um PhD prático pelo Departamento de Arquitetura de Rápidas Mudanças e Recursos Escassos (ARCSR, sigla em inglês) na London Metropolitan University. Um programa fantástico sob a direção de Maurice Mitchell, e o departamento de PhD por Peter Carl. Fazer um PhD prático significaria que minha pesquisa seria baseada em projetos reais iniciados por mim. A pesquisa foi facilitada por uma relação existente entre a ARCSR e uma ONG Indiana, o Centro para Excelência Urbana e Regional (CURE, sigla em inglês). Foi quando comecei a fazer projetos num colônia de assentamento de favelas na periferia de Delhi, chamada Savda Ghevra.
Até o momento, concluí projetos de habitação e saneamento e dirigi vários workshops de ferrocimento – todos projetos que eu iniciei, juntamente com o CURE agindo como uma agência de implementação. O maior projeto - um sistema descentralizado de saneamento - criou infraestrutura que permitiu que 322 famílias (aproximadamente 2000 pessoas) tivessem acesso a um banheiro numa comunidade que antes desta intervenção, basicamente defecava à céu aberto.
Agora incorporei minha pesquisa e prática de arquitetura dentro da mesma ONG, o que permitiu a abertura de muitos outros projetos. Atualmente estou trabalhando numa reforma (hidráulica, inclusive) de Complexo de Banheiros Comunitários em Delhi, um plano de melhorias de favela para duas alas em East Delhi (que inclui drenagem, banheiros, paisagismo, central de resíduos sólidos e habitação) e um projeto ao longo do Taj East Drain em Agra. Outras iniciativas são reformas de habitações - planejo em breve lançar uma campanha no kickstarter para um projeto de "Casa Mínima" - e continuo a trabalhar em Savda Ghervra, principalmente conectando casas à infraestrutura de esgoto.
Simplesmente não consigo expressar quão importante é minha relação com CURE. Com a recente publicidade em torno do Prêmio Emerging Woman Architect of the Year me senti um pouco desconfortável, pois estou ciente que como estrangeira eu quase ganho pontos apenas por estar aqui (numa favela na Índia) quando o trabalho pesado de verdade foi feito por pessoas que trabalham na ONG CURE. Espero, porque nenhum homem ou mulher é uma ilha, é que meus sucessos seja o sucesso de todo mundo.
Minha inspiração: quando cheguei em Savda Ghevra em 2010 eu era jovem (e ainda sou), mas terrivelmente ingênua. Me lembro de pensar que viria aqui e construiria casas, mas rapidamente me dei conta que se você quer construir casas, você tem que construir esgotos primeiro. Então minha primeira inspiração nunca veio muito de mim - e sim do lugar.
Eu poderia ter construído uma biblioteca ou uma estação de ônibus mas o que era mais necessário era esgoto - fazer o que a comunidade não poderia fazer por si só para que pudessem seguir com o que eles fazem muito bem, que é fazer cidades a partir de casas. Então neste sentido eu nunca decidi ser uma "potty-girl" - isso aconteceu por acidente. E agora percebo que me deparei com um dos maiores problemas na Índia hoje em dia. E agora, saneamento para mim não se trata apenas de cocô, mas é um assunto feminino e algo pelo qual me apaixonei. Então acho que minha inspiração vem da exposição às pessoas e suas esperanças e aspirações.
Procuro inspiração (ou oportunidades) nas pessoas e lugares ao invés de procurar por pessoas e lugares que recebam minhas ideias.
AD: Você fez do trabalho em projetos que fornecem serviços para comunidades carentes sua missão. Quais são os desafios envolvidos nesses tipos de projetos - eles são de natureza mais financeira? Burocrática? Prática?
JK: Eu sempre me interessei pelo complicado, aqueles pedaços de cidade que não entendemos. Que no contexto da Índia, me levaram à espaços favelizados e assentamentos marginalizados.
E sim, trabalhar em assentamentos pobres e até mesmo desconectados é difícil, e todos os tipos de desafio estão envolvidos. Para reduzir e simplificar isso, falo por experiência, existem três desafios principais:
1. Dinheiro. Financiamento de projetos - sempre um grande desafio - os doadores adoram financiar escolas, mas não se interessam muito por esgotos.
2. Disposição. Participação comunitária - isso é importante não apenas para fazer o que é certo, mas também para gerar um sentimento de propriedade e pertencimento e garantir um legado.
3. Permissão. Normalmente do Estado, o que envolve trafegar por complexas barreiras burocráticas, um aspecto muito conhecido da Índia.
AD: Quando você trabalha nestes projetos - quem é seu cliente? Como é a relação cliente-arquiteto?
O cliente é sempre beneficiário do que você está fazendo no sentido de que não estão pagando pelo serviço, o que requer um certo tipo de moralidade. Eles as vezes pagam (como as melhorias nos banheiros que estamos trabalhando atualmente) desafiando o mito de que as habitações de favelas são recipientes passivos de ajuda.
No entanto, geralmente o cliente "real" é o doador que está pagando pelo projeto e algumas vezes o estado. Como uma ONG, CURE é inerentemente uma organização de base buscando capacitar os beneficiários dos projetos a serem parte do processo - e como tal, o sucesso é muito baseado nessas relações que levam tempo para serem fomentadas. Eu mesma me beneficio de seus trabalhos, há uma base de mobilização comunitária posta para que eu possa ser informada pela ONG, mas também os moradores, sempre que estamos trabalhando.
AD: Em quais áreas do mundo você está interessada em trabalhar e por quê?
Meu interesse principal de pesquisa está na tentativa de entender uma descrição/interpretação mais concreta do que é a 'cidade' e a 'ordem urbana'. E por isso, talvez, os problemas na Índia são tão básicos e viscerais que não é surpresa que eu tenha acabado trabalhando aqui. E aqui estou agora, exatamente onde quero estar trabalhando.
A princípio sou uma pessoa muito do "sim" - então se alguém me disser "eu tenho um projeto em (qualquer lugar do mundo) você está interessada?" minha resposta sempre seria sim. Não existe lugar neste planeta que eu não esteja interessada em trabalhar. No entanto, um trabalho significativo requer comprometimento com o lugar e boas conexões com parceiros locais e isso leva tempo para se estabelecer. Eu acho que só agora, depois de três anos trabalhando em Delhi, e tendo morado aqui quando adolescente, estou finalmente confortável: Entendo minhas limitações, onde eu posso contribuir mais, onde eu tenho uma formação adequada para ser capaz de trabalhar, pensar e agir. E isso é em grande parte devido à minha relação exitosa com a CURE. Então, num futuro, adoraria trabalhar em outros países - sempre fui muito curiosa sobre o Oriente Médio - mas para isso acontecer, precisaria achar organizações a partir das quais uma relação possa crescer organicamente.
AD: No próximo século a população mundial será superior à urbana - e cerca de um terço da população viverá em favelas. Considerando quão grande será essa população - e quão necessário serão os projetos de qualidade - por que você acha que tão poucos arquitetos estão trabalhando nesses ambientes urbanos?
Meu mais recente pensamento nisso é que o rural e o urbano dividido é um equívoco (muito similar a quando paramos de falar sobre o informal e o formal). O que estamos vendo particularmente na Índia e na China é a peri-urbanização em massa caracterizada por uma mudança não planejada de uso agrícola para uso urbano misto, desenvolvimento urbano disperso, mau uso dos recursos naturais, degradação ambiental e prestação inadequada de serviços de infraestrutura.
Além disso, a distinção entre o rural e o urbano perdem um ponto crucial: a distinção entre estes assentamentos com acesso à infraestrutura e os benefícios da educação, saúde, emprego e moradia (o que é necessário para preencher a capacidade) e os assentamentos sem isso. Estou tentando encontrar uma frase melhor, mas precisamos começar a falar em populações "conectadas" e "desconectadas".
Como tal, com a maior parte do mundo "desconectada" (rural e urbana), existe uma grande necessidade de projetos de qualidade. Eu digo isso com frequência - que a peri-urbanização da Índia é ao mesmo tempo o maior desafio mas também a maior oportunidade. Se feita da maneira correta, pode resultar num desenvolvimento positivo retirando milhões de pessoas da linha de pobreza, mas se feito de maneira errada esses espaços desconectados serão fontes de conflito (como por exemplo o caso do Egito).
Favelas na América Latina são espaços emblemáticos de conflito e não espaços de produção. O principal problema, não importa como você o vê, é que ambos são problemas de uma cultura de mau planejamento. Porque quando se tem uma cidade como Delhi que está somando milhões ao longo das décadas, e vai continuar a fazê-lo, planejamento é sempre reativo, o que resulta numa incrível desconexão entre o que é imaginado e o que é a forma física real.
Por que existem tão poucos arquitetos nesta área? Acho que existe uma grande desconexão de como a arquitetura é ensinada, praticada, e a realidade das cidades e um ambiente mais construído. O foco na arquitetura como uma forma de arte é ainda endêmica; no entanto isto está mudando, ainda que lentamente. Então acho que a profissão em geral percebeu que nós somos irrelevantes - é difícil assumir este fato, mas parece certo para mim - arquitetos em todo o mundo estão envolvidos com apenas 2% do ambiente construído.
E se observarmos especificamente a Índia, muito do crescimento está acontecendo em duas ou três cidades - muitos indianos nunca nem saberão os nomes destas. Essas cidades não possuem planejamento central, pouca infraestrutura e certamente nenhum arquiteto envolvido. Esta é a "bomba relógio urbana". Simplificando, arquitetos precisam reentrar (ou melhor dizendo, participar mais) no discurso do pensamento e construções de cidades.
AD: Por que você acha que tantos arquitetos de países em desenvolvimento não estão interessados nos desafios de projetar na esfera pública de seus próprios países?
Mais especificamente porque pouquíssimos arquitetos trabalham em áreas de favela é que, como arquiteto, você não se sente muito útil. Por experiência própria, posso dizer que nenhum dos meus treinamentos formais ou a prática profissional me deram as habilidades para trabalhar em espaços tão contestados. Caminhar por uma favela é uma experiência de humildade. É um ambiente muito complexo e em constante mudança.
O projeto de construção de cidade inclusiva é universal. Muitas cidades hoje em dia estão se tornando essencialmente comunidades fechadas onde os pobres estão sendo rechaçados - então o discurso que eu sempre acabo falando é que a marginalização e o deslocamento de milhares é tão relevante para Delhi quanto para Londres.
AD: Você sente que a educação de arquitetura que você teve te preparou para o tipo de trabalho que está interessada em seguir?
O que eu aprendi na escola de arquitetura é: 1. como trabalhar duro (ser capaz de trabalhar consistentemente por horas) e 2. como comunicar ideias. É aqui que nos diferenciamos de sociologistas, antropologistas, agentes sociais e economistas que dominam o campo de desenvolvimento - nós podemos visualmente comunicar nossas ideias - e quando falamos sobre participação isso é fundamental.
AD: Em uma entrevista para o Architects Journal você disse: "é uma visão muito míope de arquitetura se você apenas enxergar através das lentes dos edifício... trata-se do processo." O que você quis dizer com isso? Como os arquitetos podem utilizar o "processo" para criar uma mudança real em nossas cidades?
O que eu quis dizer com o processo é que se nós olharmos para a produção do "lugar" - seja uma casa ou uma parede - acredito que a arquitetura está na ordem e localização institucional muito mais do que apenas o processo que resulta num edifício. Então quando falamos deste processo - e, digamos, de obras institucionais especificamente - é quando nós podemos começar a projetar ambientes inclusivos onde as pessoas possam realizar as suas capacidades.
AD: Você acha que projetos de interesse público estão se tornando mais legítimos aos olhos dos arquitetos? Você sente uma mudança cultural acontecendo na arquitetura?
Definitivamente. Lembro de quando eu estava começando na escola de arquitetura senti que tinha que fazer uma escolha entre, digamos, "arquitetura do desenvolvimento" / me dar bem, e o sucesso nos olhos de meus semelhantes, mas também a grande mídia. Não é mais o caso e o fato de eu ter ganhado o esse prêmio é uma prova disso. E então vemos uma mudança cultural acontecendo na arquitetura. Acho que a questão corrente é como os arquitetos intervém de maneira significativa e como evitar as armadilhas envolvidas com os patrocínios e questões financeiras.
AD: Fiquei impressionada que um dos membros do júri que premiou você foi Marta Thorne diretora executiva do Prêmio Pritzker, que elogiou seu trabalho por "ampliar" o que entendemos como arquitetura... O que você acha que sua conquista significa para a arquitetura? O que isso diz sobre a maneira que estamos reconhecendo e definindo arquitetura e os arquitetos atualmente?
Acho que como Marta Thorne colocou foi brilhante e isso me fez sentir muito orgulhosa. Ela ainda disse que se trata de "incentivar uma promessa, uma promessa de ação social", e acho que esse é o melhor elogio que já ouvi ao meu trabalho.
Escritórios como o Urban Think Tank, URBZ e arquitetos como Anna Heringer e Teddy Cruz (e sei que estão faltando muitos outros) estão todos estampados em capas de revistas e certamente trilharam seu caminho. Premiações como o Holcim Awards também estão ajudando a guiar essa mudança cultural tão necessária e acabar com essa obsessão com a arquitetura enquanto forma de arte - o que é bom - mas precisamos abrir o leque de nosso entendimento da arquitetura e o tipo de cidades que queremos viver.
Esta entrevista foi conduzida e editada por Vanessa Quirk. Saiba mais sobre o trabalho de Julia King em sua página.