Escrever em Arquitetura (e a crítica em Arquitetura) é uma ação supérflua. Se você não tem interesse, não perca seu tempo. Mas alguém duvidará que os grandes arquitetos da história foram grandes escritores?
Na semana, passada publiquei a primeira parte do artigo Observação, Desenho e Descrição. Hoje, dou continuidade a ele, detalhando as etapas de trabalho e os exercícios desenvolvidos durante o Workshop ArchDaily Brasil: Clássicos da Arquitetura Brasileira.
1. Escritura coletiva
O primeiro módulo de aula (em torno de três horas) era dedicado à descrição coletiva de uma obra. Era preciso pensar em voz alta. Os dez alunos haviam sido divididos em duplas e a cada aula uma dupla era responsável por já ter reunido previamente planimetrias e fotografias sobre a obra em questão. Essa mesma dupla ficava responsável por escrever aquilo que íamos discutindo em voz alta. Eu fazia o papel de guia da escritura. Foi a melhor maneira que encontrei para de fato guiar a escritura dos alunos. Se eu os deixasse escrever livremente, escreveriam como antes e sempre. As correções e revisões seriam mais longas, perderíamos muito mais tempo, e temo que os resultados seriam pobres.
Utilizamos o Google Docs para a escritura coletiva. Cada aluno acompanhava no seu próprio notebook o que íamos escrevendo, e quando julgasse necessário poderia escrever ele mesmo no mesmo documento ou fazer alguma correção. Essa ferramenta atendeu perfeitamente aos objetivos (lembre-se apenas de ter um bom sinal de internet). Era fundamental que cada aluno estivesse com seu notebook aberto, para que todos fossem pesquisadores independentes, e ao mesmo tempo escritores coletivos. Às vezes se formavam duplas ou trios para discutir melhores entre eles algum aspecto, e em seguida a ideia, ou a frase, era lançada à discussão entre todos. Relíamos em voz alta várias e várias vezes uma mesma frase, até que ela estivesse clara, com os melhores termos, a pontuação e conectores adequados, e de maneira direta.
Utilizamos o projetor para ampliar as fotografias e planimetrias que fossem necessárias para discutir algum tema ou aspecto importante para a descrição. No quadro, ao mesmo tempo que eu guiava a escritura, fazia esboços daquilo que íamos descrevendo: eixos, matrizes, detalhes, plantas, seções. Escrevia as medidas (ou as várias possíveis medidas corretas que os alunos iam descobrindo). Procurava mostrar aos alunos que através do desenho especulativo poderíamos chegar a algo concreto e inegável sobre a obra, sem a necessidade de nenhum conhecimento histórico, teórico ou crítico prévio. E o que é mais importante: através de uma busca que também é projetual.
Nossa observação era direta. Ao início das aulas sempre pedia aos alunos: —alguém diga alguma coisa sobre essa obra, qualquer coisa. E daí partíamos. Agora: “qualquer coisa” quer dizer qualquer coisa objetiva, medível, concreta. Quais são as medidas da seção transversal dos pilares? Era uma pergunta frequente. Quais são as medidas fundamentais da planta geratriz do edifício? Há relações entre as medidas? Como foi a cronologia da sua construção? Descrevamos o detalhe do encaixe entre o piso da escada e o seu mastro central. Esse foi um desafio quando nos enfrentamos à escada do Solar do Unhão. “E se?” e “não seria talvez assim?” são especulações importantes para o processo de descrição. É preciso checar as possibilidades. É preciso saber duvidar de si mesmo.
Em três horas conseguíamos escrever três parágrafos. Uma boa extensão (muitos artigos têm apenas um ou dois parágrafos de interesse). As primeiras aulas foram conturbadas. É aceitável a descrença dos alunos. Muitos ainda estavam interessados nos “motivos secretos” das obras ou nas “intenções inconscientes” do arquiteto ou nas emoções causadas nos usuários. A descrição que eu propunha ia por um caminho bem diferente. Era seca, sem nomes próprios, com vírgulas estranhas, muitos pontos-finais, muitos cujos, e todos os números por extenso. Assim, perdemos um bom tempo discutindo sobre os porquês de escrever assim e não como eles (e todos) estavam acostumados. Era difícil convencer com palavras. O jeito era apelar para o trabalho: —se você não fizer como eu digo, não haverá resposta que te convença.
2. Escritura e desenho individual à "mão solta" (postais)
O segundo módulo das aulas (entre uma hora e meia, e duas horas) era dedicado a um avanço individual sobre a descrição que havíamos começado no primeiro módulo. A obra era a mesma. Porém os alunos não poderiam dar continuidade a um tema já iniciado ou a um aspecto ou detalhe da obra já descrito. Teriam que avançar a outros lados.
As regras eram poucas e simples: 1) utilizar o verso de um postal, de tal modo que quando fosse aberto não resultasse de cabeça para baixo, 2) elaborar um desenho a modo de esquema ou croquis que revele ou destaque algum aspecto da obra, 3) realizar uma descrição curta de um ou dois parágrafos, 4) não escrever a lápis, e 5) desenhar e escrever segurando na extremidade da caneta e com o papel levantado sem o apoio da mesa, como um pintor sem cavalete. Esta última regra tem seu motivo: fazer com que os alunos desenhem e escrevam segunda uma técnica nova que eles não dominam. Essa técnica exige mais concentração no traço e mais delicadeza no contato com o papel. Os alunos queixavam-se ao início dizendo que suas letras estavam horríveis. Mas “letra bonita” não estava entre as regras. Não escapatória: a letra ficará tremida. Se eles fossem capazes de dominar essa técnica, haveria sem dúvidas um avanço em qualidade na técnica comum que eles utilizavam antes. Uma técnica mais difícil seria utilizar a mão esquerda, mas achei que seria demais. O desenho à mão solta é de uma beleza singular.
Também aqui atuei como guia, um guia particular nesse momento. O conjunto texto-desenho deveria criar uma composição bela aos olhos. Pedia aos alunos que não escrevessem do modo comum: de margem à margem a partir do canto superior esquerdo, preenchendo a página inteira. Não. O branco do papel é importante. O desenho deve pedir pelo texto. O texto deve ser capaz de criar uma imagem completa sobre aquilo que se está descrevendo e deve prescindir do desenho. O desenho não é uma muleta do texto, como usualmente é, como usualmente é utilizado, como ilustração. Nosso desenho não é ilustrativo. É uma busca, uma especulação, uma revelação.
Além da dificuldade óbvia com a nova técnica de ortografia e desenho, ir além do lugar comum da forma da escritura (ou seja: margem à margem) foi um dificuldade inicial importante. As dificuldades de composição, de criar um conjunto harmonioso, que fosse belo aos olhos independentemente do seu conteúdo, perduraram durante as cinco aulas. Mas evolução houve em todos os casos e em todas as frentes, em menor ou maior grau: na capacidade descritiva, na objetividade, na técnica de desenho, na composição, no poder de observação. Restaria saber: no poder de projeção?
3. Escritura e desenho individual digital
Ao final das aulas, os alunos tiveram mais um mês para desenvolver uma descrição curta, porém mais extensa do que as que estávamos fazendo em classe, um desenho técnico digital que enfatizassem as medidas fundamentais para a descrição, e um levantamento completo do material gráfico existente e disponível sobre a obra. Esta última etapa deveria ser uma síntese dos exercícios realizados em classe, uma simulação do trabalho que realizo nos Clássicos da Arquitetura: a mesma pesquisa gráfica, os mesmos desenhos especulativos, a mesma escritura objetiva.
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A evolução dos trabalhos realizados pelos alunos foi perceptível e confortante. Das duas primeiras aulas, com fervorosas discussões sobre os porquês das coisas (por que escrever assim? por que não de outro jeito? por que a obra é assim? por que o arquiteto fez isso?), demos um salto em direção às próprias coisas e a como são (quais suas dimensões e as relações entre elas, de que é feita e como foi feita). As discussões, a partir da terceira classe, estiveram enfocadas em saber exatamente os comos, e em poder descrevê-los (qual a melhor palavra para descrever tal objeto?).
A técnica da mão solta também avançou, e produziu belas obras. Claro que alguns alunos mantiveram sua descrença até o fim, tanto sobre a técnica quanto sobre a metodologia, o que criou uma barrera ideológica importante, que não deixa ver tudo aquilo que se poderia. Afinal, eram alunos de mestrado e doutorado, e não se deixavam convencer facilmente. Porém alcançamos um fato indiscutível: vimos, a cada aula, e a cada obra, algo que nunca havíamos visto antes, apesar de todo o nosso conhecimento e até proximidade àquelas obras. Vimos e entendemos como foram projetadas e construídas e como são exatamente (algo que tínhamos apenas uma nebulosa ideia). Vimos suas relações e suas configurações internas, sua gestação. Fomos capazes de desenhá-las com mais precisão (isso não quer dizer mimeticamente) e a discernir sobre seus aspectos fundamentais e singulares. O que faz de uma obra ela mesma e não outra?
Ao final, pude demostrar aos alunos, sem que eu houvesse respondido de antemão, pude fazê-los responder a si mesmos o porquê de escrever em Arquitetura.
* Releia a primeira parte do artigo:
Observação, Desenho e Descrição [Parte 1]
Sobre o Workshop: realizado no PROPAR-UFRGS em Outubro de 2014.
Sobre a Exposição: a expografia e montagem estiveram a cargo de Igor Fracalossi, assim como a concepção e diagramação dos postais e posters.