O fracasso da utopia das cidades planejadas levantou várias críticas desde a década de 1960. Autores como Jane Jacobs, através da estreita observação do cotidiano das cidades, entenderam as paisagens planejadas como monótonas e não comprometidas com a diversidade estética e funcional, essencial para a vida urbana. Estas críticas reforçaram a ideia defendida por Jan Gehl e outros autores de que as cidades devem servir às pessoas. O espaço da rua experimentado por pedestres, antes esquecido em propostas modernistas, recuperou nas últimas décadas a sua importância como um palco de urbanidade. [1]
Em 2007, uma organização não governamental chamada Jane's Walk, foi criada em Toronto com o objetivo de difundir as ideias de Jacobs. Este instituto incentiva as pessoas a realizar passeios comunitários a pé, trazendo as pessoas para as ruas para experimentar e discutir a qualidade do ambiente urbano em que vivem.
O Legado de Jane Jacobs
Jane Jacobs foi uma jornalista americana que no início da década de 1960 escreveu o seu mais importante livro, o Morte e Vida de Grandes Cidades, que influenciou a partir de então o pensamento mundial sobre urbanismo. Jacobs fazia parte de um grupo de pensadores que criticavam severamente o planejamento urbano produzido em sua época, baseado no urbanismo de modelos que, segundo eles, desrespeitava as preexistências e era muito subjugado aos automóveis.
Assim como Jacobs, também William Whyte, Jan Gehl, Kevin Lynch e outros autores defendiam que a prática do urbanismo deveria se basear nas realidades concretas do cotidiano das cidades para a produção de ambientes que suportassem o convívio social entre as pessoas, principal propósito da vida urbana. Defendiam portanto, a humanização dos ambientes urbanos através da concepção de espaços na escala humana.
Nesta linha, Jacobs defendeu de forma muito contundente em Morte e Vida a importância da vitalidade urbana para a qualidade de vida das pessoas e a sustentabilidade das cidades, vendo estas como sistemas vivos complexos. Defendia que as paisagens monótonas criadas pelos planejadores prejudicavam o convívio entre as pessoas e enfraqueciam a economia das cidades, devido principalmente à falta de diversidade estética e de usos nos ambientes criados. A Tabela 1 apresenta um breve resumo da teoria urbanística defendida por Jacobs.
A maior contribuição de seus estudos foi o reposicionamento da importância das ruas no tecido urbano. O planejamento urbano praticado àquela época, em suas diferentes vertentes – progressista ou culturalista – reduzia a quantidade de ruas e limitava seu papel enquanto vias de circulação de automóveis e bens, reservando aos pedestres grandes áreas ajardinadas, frequentemente sem nenhum propósito de uso.
De suas observações do cotidiano do tradicional bairro onde vivia em Nova Iorque, Jacobs entendeu que a vitalidade das ruas, especificamente das calçadas, tinha um grande poder na garantia da segurança emocional das pessoas, na medida em que fortalecia o convívio social e enriquecia as possibilidades da vida urbana. A quem quisesse conhecer os problemas reais de uma cidade, Jacobs aconselhava que o melhor método era sair e caminhar por suas ruas.
Unindo a observação das estruturas e da vida urbana a uma boa dose de engajamento cívico, Jacobs e outros moradores de seu bairro, o Greenwich Village, conseguiram evitar que nele acontecessem grandes transformações urbanas com a execução de obras viárias e de ‘revitalização’ protagonizadas por Robert Moses, responsáveis pela descaracterização de tradicionais tecidos urbanos em Nova Iorque. Tal ativismo inspirou anos mais tarde a criação do Jane’s Walk.
O instituto Jane’s Walk
O instituto Jane’s Walk foi criado em Toronto, em 2007, um ano após o óbito de Jacobs, com o propósito de difundir suas ideias. Sua principal atividade é a promoção de passeios comunitários, liderados por voluntários e de acesso livre, com o propósito de levar pessoas a conhecerem suas cidades, vivenciando-as e discutindo sobre elas. Objetivam com isso, incentivar o engajamento cívico e solidificar o sentido de pertencimento, contribuindo portanto para o fortalecimento de comunidades.
Desde então os Jane’s Walks (JWs) já foram produzidos nos cinco continentes, com um aumento progressivo na quantidade de passeios, cidades experimentadas, número de participantes e variedade de temas discutidos. Dentre esses temas o mais comum é a caminhabilidade, assunto presente nos demais trabalhos realizados pelo instituto, especialmente em Toronto.
Em sua cidade sede, o instituto realizou em 2011 em parceria com a Universidade de Toronto uma pesquisa sobre as condições da caminhabilidade dos bairros residenciais suburbanos, formados por arranha-céus. A pesquisa durou três anos e foi feita de forma participativa com os moradores. Os resultados desse e de outros estudos têm sido utilizados pela administração municipal na elaboração de planos para a revitalização da cidade, focada nos aspectos do trânsito e da caminhabilidade.
Acreditando no potencial educativo de seus passeios, o JW adaptou-os para uso em sala de aula e como atividades extracurriculares em algumas escolas de Toronto. O programa é voltado para o ensino médio e formado por quatro dias de atividades em sala de aula e um dia de passeio. Professores e alunos são reunidos em atividades que os levam a pensar e interagir de forma diferente com a vizinhança e o ambiente construído em que vivem. As atividades compreendem técnicas participativas para o mapeamento das localidades, a introdução de conceitos sobre planejamento urbano, história local e vida em comunidade.
Anualmente, o instituto promove na primeira semana de maio, quando seria o aniversário de Jacobs, o Festival Jane’s Walk. Ao longo de três dias são realizados passeios em todo o mundo, provocando um grande buzz sobre a importância do hábito de andar a pé nos ambientes urbanos e a curiosidade de conhecê-los melhor. No Festival de 2015, foram realizados mais de mil passeios em 189 cidades em 36 países diferentes, distribuídos em todos os continentes do planeta.
Para facilitar a produção desses passeios, o instituto disponibiliza ferramentas em seu site, que apoiam a metodologia descrita na Tabela 2, além de promover capacitações presenciais em Toronto. Para a condução dos trabalhos, é utilizada uma hierarquia de atores com diferentes papéis a desempenhar, sempre conectados entre si, desde o nível local da produção dos passeios até a rede internacional formada pelas pessoas participantes conforme a seguir:
- Project office - Coordenação central do instituto, baseada em Toronto
- City organizers - Representam suas cidades e coordenam a realização dos vários passeios nela, tendo uma ligação mais direta com o instituto
- Walk Organizers - Coordenadores de cada passeio
- Walk Volunteers - Apoiam o trabalho dos walk organizers durante os passeios
- Walkers - Participantes dos passeios
Com o propósito de incentivar o engajamento cívico, o instituto orienta que os temas dos passeios partam de necessidades reais das localidades, levantando pautas que precisam ser discutidas ou revelando narrativas locais, características da vizinhança a ser explorada. Os JWs não são passeios turísticos nem precisam da formalidade de uma aula: tem que abordar temas os quais os participantes se sintam à vontade para discutir e para receber a contribuição dos presentes, além de referenciarem aos aspectos característicos da localidade visitada. Assim, contribuem para fortalecer o sentido de pertencimento e possuem grande potencial para apoiar processos participativos em gestões democráticas de cidades.
No Brasil, várias cidades já realizaram Jane's Walks desde 2011 e um número recorde se prepara para o Festival de 2016, que decorrerá de hoje dia 06/05 até domingo dia 09/05. Já constam no site do instituto passeios agendados para as cidades de Aracaju, Brasília, Curitiba, Recife e Goiânia. A capital de Goiás receberá no próximo domingo seu oitavo passeio, sendo a cidade com o maior número de Jane's Walks já realizados no Brasil, todos promovidos pela Sobreurbana, um estúdio de intervenções urbanas sediado na cidade. As imagens abaixo mostram momentos dos dois passeios realizados durante o Festival de 2015.
A metodologia proposta pelo Jane’s Walk revelou nas experiências de Goiânia ser um importante instrumento de mobilização de comunidades em torno das questões urbanas. A adesão das pessoas demonstrou que mesmo numa localidade onde não há gestão participativa nem condições atrativas a passeios a pé, como é o caso de Goiânia, ainda assim há o interesse da população em participar de iniciativas que revelem a cidade e que insiram o cidadão num esforço coletivo de construção de cidades melhores. Em todos os questionários aplicados ao final dos passeios, os participantes afirmaram que a experiência do JW mudou a forma como eles se relacionam com a cidade, reforçando laços afetivos com o meio em que vivem.
Dessas experiências é possível concluir que o JW pode ser um instrumento eficaz para garantir o protagonismo do pedestre na configuração do espaço urbano, legitimando intervenções participativas e bottom-up enquanto visão de mundo da sociedade mundial contemporânea.
Nesta última semana comemorou-se o centésimo ano do nascimento de Jane Jacobs, cuja obra mais do que nunca permanece atual e inspiradora. Vamos para as ruas!
Notas:
[1] Excerto do artigo:
Ana C. C. Farias e André Gonçalves, "Jane’s Walk Experience as Tool to Foster Critical Mass in Goiânia/Go - Brazil", em: CityCamp Papers, Vol. 1, Chiripa | CityStarters, Buenos Aires, 2014. Disponível em < http://citycamp.la/>
Referências:
Jane Jacobs, Morte e Vida de Grandes Cidades. Ed. Martins Fontes, 2ª ed., São Paulo, 2009.
Jane’s Walk Office, Jane’s Walk Event Report 2012. Toronto, 2012.
Jane’s Walk Office, Jane’s Walk Event Report 2013. Toronto, 2013.
Carol Farias é Arquiteta e Urbanista (UEG), especialista em Reabilitação Ambiental Sustentável Arquitetônica e Urbanística (UnB), mestranda no Programa Projeto e Cidade da UFG. Co-fundadora da Sobreurbana, estúdio de intervenções urbanas sediado em Goiânia.
André Gonçalves é formado em Ciências da Comunicação pela Universidade Nova de Lisboa. Vive no Brasil desde 2011, co-fundador da Sobreurbana, estúdio de intervenções urbanas sediado em Goiânia.