Há duas importantes questões que dizem respeito à frágil condição atual do campo da Arquitetura. Com muita dificuldade, e reticência, é possível perceber um direcionamento coletivo, dentro da pluralidade individual que o contemporâneo sugere. Uma homogeneidade díspar que encontra semelhança, por exemplo, na dificuldade que a Política moderna tem na distinção prática de esquemas em vigor – como Esquerda e Direita. Ou seja, o cenário anterior dicotômico, mas exposto, substituído por um cenário novo, plural, e funcionalmente convergente.
Por décadas, a arquitetura serviu, sobretudo, como instrumento de manifesto político, e os próprios objetos arquitetônicos denunciaram em matéria construída os discursos substancialmente antagônicos de seus autores. Uma compilação de textos desaforados, com direito a réplicas e tréplicas em veículos das massas atestam a diligência da disciplina na metade do século passado. Mas falecidos seus artífices e esmaecidas suas Escolas, seus corpos têm deambulado catatônicos. O que resta hoje é um embrulho sem presente.
Um centenário após ao outro, comemorados coletivamente, reúnem discípulos de mestres que não apertariam as mãos. A produção da virada do século, daqueles que com sorte tangenciaram aos mestres, inaugura o verdadeiro pós-moderno brasileiro. Vazios de significado, elementos do vocabulário arquitetônico que compunham a linguagem do arquiteto político, e socialmente responsável - na singeleza de seu tempo - hoje são escolhidos eventualmente entre o Carrara e o Pau-ferro. Do movimento ao estilo foram necessárias apenas cinco décadas; o bloco de concreto como revestimento, o soquete como luminária, os cortes e encaixes básicos de marcenaria são apenas alguns dos elementos recorrentes na Fantasia do Precário. A descoberta tardia dos estudantes sobre a atividade prática – sobre o processo de produção dos artefatos que compõem o produto arquitetônico – faz do elementar uma eufórica novidade; vale dizer, suprimida em um curso profissionalizante de seis meses no Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial. Para a academia, o pouco não basta – ou não deveria bastar. Resolveria, compreender a qual momento histórico respondemos; se duvidou-se em algum momento da existência de uma Arquitetura Brasileira, hoje, a pergunta é outra – ainda faz sentido almejar uma Arquitetura Brasileira? Diante dos polifórmicos meios de intercâmbio cultural e da informação que chega da esquina e do Japão simultâneas, não é mais possível inquirir uma arquitetura legitimamente, e exclusivamente nacional. Fantasiar sobre uma produção importante como a nossa do século XX, e recortar dela figuras aistóricas na tentativa de uma colagem mambembe, certamente não é o prelúdio de uma nova posição de destaque.
Em adição, e complementarmente, a segunda questão está ligada a ressurreição do Urbanismo. Uma série de medidas gestadas pelo poder executivo da cidade de São Paulo, nos últimos três anos, trouxeram à luz o tema do espaço público e eclodiram movimentos sociais sobre o direito à cidade. Depois da Brasília de Lúcio Costa até os dias de hoje, sobreluziram na grande cena, apenas os Planos de Curitiba de Jaime Lerner, das década de 1970-80 – o que nos ajuda a mensurar a extensão da ânsia daqueles que têm dedicado seus estudos ao campo teórico do Planejamento Urbano, sem terem tido grandes oportunidades de experimentação efetiva. Com este espaço reconquistado dentro da sociedade e academia, os programas de ensino e interesse ao urbano têm, não apenas se ampliado, como vêm sendo sobrepostos à Arquitetura. Não obstante, há um discurso rarefeito, mas a ponto da condensação, de que os aspectos da urbe sejam mais relevantes que o da própria confecção do objeto arquitetônico. Portanto, o que difundem alguns poucos, mas influentes, é a afirmação veemente do Urbanismo, pela negação da Arquitetura, uma espécie de Urbanismo Anti-arquitetônico. Muito sutil, esta retórica incute nos estudantes, ainda sem uma agenda e auto-estima de arquitetura, um desestímulo na produção esmerada do objeto arquitetônico, como se o ato fosse infinitesimal colocado frente às questões da metrópole. Este dissabor parte daqueles que projetam a cidade, e que buscam reconhecimento e legitimação, conferida historicamente, aos que desenham edifícios. Em busca de validação da disciplina de Urbanismo – e em alguns momentos como subterfúgio da inaptidão ao desenho intrincado de arquitetura – estes autores imponderadamente se esforçam em promover uma agremiação “das grandes causas”, esquecendo que podem coexistir, e devem sugerir, dedicação aos dois âmbitos, às duas escalas – da cidade e do edifício.
Visto dessa maneira, a arquitetura deve enfrentar nas próximas décadas a dificuldade de reconhecer seu campo e fazê-lo nutritivo, para que não sirva de muleta aos que de fato têm o que dizer.
Felipe SS Rodrigues é arquiteto e urbanista formado pela FAU-Mackenzie (2014) com estudos complementares na New Jersey Institute of Technology (2012), e no Pratt Institute em Nova Iorque (2013). Colaborou com o arquiteto Isay Weinfeld (2011), e com Rem Koolhaas no OMA de Roterdão (2013).
Ilustração cortesia de Danilo Zamboni.
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