Durante o século passado temos construído as ruas para os automóveis, para assegurar o seu deslocamento. No entanto, a partir de uma mudança de paradigma no uso e fruição da rua e em consonância com os recentes debates internacionais, nossas cidades têm começado a devolver os espaços públicos aos cidadãos. Trata-se, de fato, da aplicação do conceito das "Ruas compartilhadas" que apela ao projeto de espaços nos centros urbanos para melhorar sua qualidade de vida.
O desafio é diminuir a segregação da rua por cada modo de deslocamento, eliminando os dispositivos de controle de trânsito, nivelando em um só nível para criar uma superfície contínua que não priorize o trânsito veicular, de modo que todos os atores interajam e negociem seu deslocamento através do espaço. Isso implica retornar a rua como um espaço público, mais do que uma via de circulação, a partir de estratégias de pacificação do trânsito motorizado, assim como intensidade e em nível de serviço.
A deterioração das ruas impõe efeitos nos padrões de mobilidade e na qualidade de vida urbana. Sendo menos atrativa, os usuários serão menos atraídos a passar tempo nela para realizar suas atividades sociais. Dessa maneira, caminhar e andar de bicicletas tornam-se situações indesejáveis. Isso incide na sensação de segurança, gerando que cada vez mais atividades que tradicionalmente realizavam-se no espaço público passem a se desenvolver no espaço privado.
A rua é o principal espaço público tanto por sua extensão como pela sua acessibilidade e atividades que contêm. Ali produz-se o encontro social e o fortalecimento das relações de vizinhança. E se caracteriza também porque ali se estabelece a articulação entre distintos modos, com notável supremacia de uns sobre outros. A vitalidade que supõe a vida urbana demanda um projeto sensível e flexível que reconheça a diversidade de papéis que a rua cumpre nos diferentes contextos urbanos.
Espaços de trânsito e de segregação
A cidade atual estabelece, promove e reproduz relações baseadas em uma divisão social marcada -- representada em questões econômicas – por barreiras físicas e simbólicas sobre o território, onde os tradicionais locais de socialização que se davam sobre a trama aberta da cidade vêem-se substituídos por outros bem diferenciados em termos de usos, e separados no espaço urbano. Por sua vez, esses lugares são voltados a uma demanda de consumidores determinada e são localizados em espaços privados.
Neste sentido, a horizontalidade que deveria caracterizar o uso e as relações no espaço público, e que se expressam em sua estrutura física, são confundidas e entram em conflito. Assim, os espaços públicos são transformados em meros meios de trânsito, os cidadãos tornam-se usuários e as soluções são dominadas por apostas privadas. Consequentemente, observa-se uma forte tendência na qual as ruas de hoje desenvolvem um comportamento proeminente de trânsito e segregação.
Sob esse paradigma, a cidade atual parece ser composta por um conjunto de partes, fragmentos conectados por redes e fluxos (de informação, de comunicações, vias, relações sociais). Propõe-se um atravessamento do espaço para deslocar-se de um fragmento a outro, mas esse tráfego é dado de maneira fugaz e isolado, o que não permite (ou melhor, restringe) relações interculturais, o pluralismo, a diversificação das atividades e, finalmente, o usufruto das atividades da vida urbana.
Demandar um projeto sensível e flexível
Os espaços de trânsito, que atualmente são atravessados rapidamente com a ganância de chegar de um ponto a outro, poderia ser abordado, por outra perspectiva, como um um fim em si. No lugar de induzir o deslocamento mais rápido possível, convide a ser desfrutado, compartilhando atividades e grupos sociais, promovendo a permanência e a empatia simbólica e alternativas de usos. Trata-se de recuperar os atributos que caracterizaram historicamente as cidades e seus espaços públicos.
A rua, portanto, aparece como elemento fundamental do espaço público e, para isso, é necessário recuperar sua essência; sua capacidade como facilitadora da comunicação e interconexão entre pessoas e lugares; e evitar que seu uso se dê em detrimento dessa necessidade de encontro, comunicação; mobilidade e acessibilidade. Que a supremacia que foi concedida ao transporte automotor seja ao menos avaliada com o objetivo de atingir espaços mais equitativos, amáveis, transitáveis e "usáveis".
Para que os cidadãos sejam os principais atores, as ruas não tem que orientar sua predominancia a um modo de locomoção, geralmente o maior, o mais forte, ou o mais pesado. O conceito de "Ruas compartilhadas" propõe uma mudança de paradigma no uso da rua, eliminando a segregação por velocidades, tipos de transporte e locais de trânsito, promovendo espaços verdadeiramente compartilhados em que o direito de livre trânsito é exercido na forma de solidariedade, empatia, respeito e cuidado mútuo.
Critérios para compartilhar o espaço público
Nesta situação, é imperativo tratar os fatores de segregação da rua para cada modo de deslocamento, nivelar o solo em um único nível, gerando uma superfície contínua que não priorize o tráfego de veículos, de modo que todos os movimentos interajam e negociem sua passagem. Isto significa retornar as ruas como um espaço público integrante, em vez de uma mera pista, a partir de estratégias de manutenção da paz do tráfego motorizado, tanto em intensidade como em nível de serviço.
O crescimento exponencial do tráfego de veículos gerou congestionamentos, poluição e acidentes. Para tentar mitigá-los sucederam tentativas de reconstrução das ruas, reconhecendo a sua importância crítica para a vida urbana. No entanto, esta reconstrução foi orientada principalmente ao automóvel, para garantir e melhorar a sua circulação, mesmo nas áreas centrais. Devemos criar espaços sistêmicos e integrados, que tendem a recuperar essa qualidade de vida urbana.
O desenho das ruas compartilhadas tende a qualificar o ambiente construído, aumentar o capital social, melhorar a segurança, incrementar a vitalidade e, em vez de exercer o controle, promover a liberdade de movimento. Requer uma mudança substancial na forma de percepção da rua, onde os motoristas sintam-se convidados a um espaço eminentemente orientado aos pedestres para a recreação, socialização e o lazer e, portanto, deve conduzir de acordo com essa premissa para evitar situações caóticas e / ou perigosas.
Isto implica então: reduzir a velocidade dos veículos, facilitar a mobilidade das pessoas e fomentar a interação social. Então, isso requer eliminar o domínio do automóvel em ruas residenciais, promover o sentido de comunidade, incentivar uma maior diversidade de atividades, reduzir a segregação social, particularmente entre os idosos, aumentar as oportunidades de brincadeiras infantis, melhorar a segurança e recuperar o uso ativo do espaço público.
Elementos frequentemente utilizados no projeto de ruas compartihadas: